Capítulo 01 Tarde demais para se arrepender
Quando experimentei meu vestido de noiva aquela manhã, eu tinha planos, sonhos, não fazia ideia de que a noite tudo acabaria. Ele sempre trabalhava até mais tarde, viajava, tinha compromissos diferenciados, mas eu confiava, pensei que me amasse e que honrasse nosso relacionamento, exatamente como eu fazia, mas cada um oferece ao outro aquilo que tem dentro de si. Ele podia ter todo o dinheiro do mundo, mas caráter não se compra, e agora o infiel que aguentasse as consequências...
— Cíntia, você não está bem, vamos conversar em outro lugar.
— Eu estou ótima — falei guardando o celular na bolsa.
— Não, você não está. Está bêbada e... de pijama?
— É moda — estreitei os olhos tentando fazer o mundo parar de girar. — Pode voltar para sua reunião que eu vou me reunir também.
— Cíntia, por favor! — o infiel segurou meu braço quando tentei me afastar.
— Vai se arrepender de ter feito isso comigo, Raul.
— Não faz isso, amor!
— Trinta dias, Raul, me aguarde!
▬ ☼ ▬
Quando fiz aquele vídeo não pensei na repercussão que teria, estava perdida, magoada e com desejo de vingança. Se tivesse feito um escândalo e partido para agressão, além de corna, levaria a fama de barraqueira e seria expulsa da boate. Então, caí na farra com o primeiro grupo de pessoas que encontrei, e literalmente soltei a franga. Por fim, quem acabou sendo convidado a se retirar foi o Raul, quando tentou bater no cara que beijei depois de dançar até o chão. Eu bebi tanto que nem vi a noite passar, literalmente não vi, só sei que acordei no dia seguinte, sozinha em uma cama estranha, sofrendo de um mal chamado ressaca, que me deixou em frangalhos fazendo o mundo girar...
— Ai, minha cabeça — falei ao tentar abrir os olhos pela milésima vez.
Olhei ao lado da cama e havia um analgésico, uma garrafa d'água, e... camisinha?
— Puta merda, o que eu fiz!
Levei a mão até a cabeça, tentando lembrar, mas parecia um sonho distante, eu beijei um cara estranho e apaguei. Bebi demais e sabe-se lá aonde fui parar.
— Meu celular — olhei pelo cômodo e vi minha bolsa no chão, tinha cinco por cento de bateria, mas seria o suficiente, eu só precisava ligar para minha amiga, Manu, e pedir que me resgatasse.
— Alô, Cíntia? Aonde você está sua maluca, estão todos...
— Manu, eu tô perdida, não lembro de nada, me socorre — falei com cara de choro.
— Cíntia, o vídeo que postou, está todo mundo comentando, o que você fez?
— Eu não sei, já disse que não lembro, acordei nesse quarto aqui, e...
— Que quarto, aonde você está? Cíntia, o que você aprontou, me passa o endereço que vou te buscar.
— O celular vai desligar, eu não sei nunca vi esse lugar, estou em pânico, preciso ir embora. Amiga, meu pai vai me matar.
— Tem espelho no teto?
— Não.
— Cama redonda, frigobar, e...
— Ué, mulher, você não era da igreja? — perguntei espantada, Manu era a amiga santinha acima de qualquer suspeita. — Desde quando vai a motéis?
— Nunca fui, nem tenho namorado, doida, mas ouvi dizer que têm essas coisas lá.
— Aqui só tem uma cama grande, um roupeiro espelhado, e uma poltrona esquisita ali perto da janela. Espera, vou ver se acho um carregador.
Abri uma gaveta e quase caí para trás...
— Manu do céu, tem um monte de camisinha aqui, algema, uns negócios estranhos, e... credo, isso é... não, éca.
— Cíntia, o que você viu?
— Uma gaveta lotada de coisas daquelas, que... um isso cheira bem, e... é gostoso.
— O que é gostoso, vai ingerir coisas que não conhece?
— É um pozinho cheiroso, não dá para saber o que é porque está escrito em outra língua, mas tem halls preto aqui, talvez o dono só goste de doces, ué.
Não resisti, tinha gosto de chiclete, virei tudo na boca e devolvi o frasco vazio na gaveta. Tinha vários, o dono nem ia perceber, ou será que ia?
— Cíntia, não mexe nas coisas dos outros, que coisa feia!
— Tá bom, não vou mais mexer, mas tem uns trem engraçado aqui, como se usa isso?
Franzi o cenho pegando uma pecinha de metal com um rabo de raposa.
— Isso o quê?
— Sei lá, é um trequinho bonitinho, parece enfeite de cabelo, tem cheiro de talco eu acho — devolvi na gaveta.
— Loira, você deve ter ido para a casa de algum pervertido, eu vi num filme que o cara era sozinho, e tinha um quarto vermelho cheio dessas coisas. Corre daí, ele vai te pendurar de ponta cabeça e encher de porrada.
— O quarto não é vermelho, e... droga, descarregou.
Eu não fazia ideia de onde estava, me sentei atordoada naquela cama tentando não surtar, enquanto aquele roupeiro todo espelhado me mostrava a imagem da derrota.
— Que lugar é esse, como eu saio dessa confusão? — refleti observando o cômodo impecavelmente arrumado. — Manu tá maluca, não tem onde ele me pendurar aqui. E esse rabinho até que é bonitinho, talvez seja mesmo enfeite de cabelo.
Não era um lugar comum, até o cheiro era diferente, lençóis finos, mobília sofisticada, será que estava em um hotel de luxo? O Raul sempre se hospedava em locais cinco estrelas, mas porque faria isso, tinha o apartamento, a não ser que ele quisesse salvar o casamento e me fazer uma surpresa.
"Será que é coisa sua, Raul?", pensei enquanto tentava revisar meus passos da noite anterior a fim de encontrar o meu lugar no mundo.
— Estava discutindo com Raul, a lambisgoia da Romana foi embora, e eu beijei aquele cara, mas quem era o cara? — falei me aproximando da poltrona estranha. — Misericórdia, isso é um chicote? Será que Manu tinha razão? — Peguei a peça na mão e soltei rapidamente. — Cíntia, o que você aprontou?
Eu me questionava, ao mesmo tempo que me repreendia, mas era tarde demais para me arrepender, estava ali, e agora tinha que descobrir quem usou o travesseiro ao meu lado. Seja quem for, cheirava muito bem.
— Meu pai vai me matar, ele vai arrancar o meu couro.
O homem era um cristão fervoroso, me criou segundo as regras da igreja, parecia até que vivia nos tempos do messias. Ai de mim se andasse fora da linha, fui dar meu primeiro beijo quando entrei para a faculdade, e ainda assim, o Raul teve que pedir a minha mão em namoro primeiro. Não, eu não vivia o século passado, era bocó de nascença mesmo, só consegui autorização do meu pai para morar sozinha, porque o patrão o convenceu de que era o melhor para meu futuro. Eu até tentei mostrar que tinha juízo, mas aí tomei aquela vodca da discórdia e lascou tudo.
Já fazia algum tempo que estava ali à espera de um milagre, mas nunca vi um, então teria que enfrentar o meu destino. Tomei o remédio com uma quantidade generosa de água e fui em direção ao banheiro. Ali havia uma toalha e um roupão dobrado sobre a pia, mas não quis arriscar a mexer, apenas lavei o rosto e ajeitei a armação ilimitada que eu chamava de cabelo. Não tinha o que prender, será que aquele rabo de raposa era para firmar um coque? Ah, eu achei tão fofo, até pensei em colocar, mas não era certo mexer nas coisas dos outros.
Quem sabe não achava um de gatinho para comprar, eu amava gatinhos.
— Que tipo de confusão você se meteu, sua maluca? — perguntei ao me observar pelo espelho, antes de procurar o dono do apartamento.
Andei pela casa e não vi ninguém, fui até a cozinha e havia frutas e suco sobre a mesa, seja quem for meu companheiro de fim de noite, ele era organizado.
— Tem café fresco — falei ao ver a cafeteira ainda soltando fumaça. — Talvez a casa seja de uma garota, sei lá, mas porquê eu estaria em sua cama? — Me servi de uma xícara de café, e me sentei na bancada da cozinha. — Será? Tinha muitas camisinhas ali, umas pomadas estranhas, uma moça não teria uma gaveta daquelas, ou teria?
Falar sozinha era algo rotineiro em minha vida, e agora então, com tantas dúvidas, aquela discussão interna iria longe, mas o que eu realmente precisava, era curar a ressaca e pegar o caminho da roça. Tinha um casamento para cancelar, e também não queria terminar o dia pendurada de cabeça para baixo levando chicotadas.
— Credo, que coisa estranha, de repente me deu um calor — me abanei sentindo um negócio diferente ao caminhar pela casa. — Será que vou ter um treco?
Levei a mão na testa, mas não estava quente, o coração batia forte, e uma onda inusitada de algo que não entendia, foi tomando conta de mim. Não era ruim, só... diferente.
"Bem que minha mãe fala que nunca devemos agir sem pensar, eu não devia ter saído de casa, sou uma... mas o quê?"
Fiz uma parada brusca ao ver um par de pernas deitado no chão da varanda, o dono delas estava praticando abdominais. Pensei em dar meia volta, mas não consegui parar de olhar, eram pernas perfeitas, malhadas, e grandes, assim como o dono delas. Respirei fundo e me movi até conseguir ver o resto daquela obra de arte que parecia esculpida a mão, será que o calor que senti ainda era efeito da bebida?
"Mama mia!"
Minha boca se abriu automaticamente, eu estava de ressaca, desmemoriada, mas não cega, que homem perfeito. Era um negro, suado, vestindo apenas uma bermuda azul escura, malhando distraído naquele chão. Pernas, braços, barriga, tudo bem definido, agora a ideia de ser torturada já não era tão ruim assim. Fiquei arrepiada só de pensar que ele poderia ter dormido ao meu lado, o problema é que não me lembrava dessa passagem, ô raiva.
"Pare de pensar bobagens e se concentre no que Manu disse, o cara pode ser um sádico perigoso", me repreendi em pensamento. " Ah, mas ele é tão gostoso... foco, mulher, você não é assim."
Não sei descrever exatamente o que senti, era um fogo vindo de baixo para cima, virando e voltando, subindo e descendo, um arrepio bão demais da conta, que isso doido! Naquela altura, já desconfiava de que aquele pozinho do mal, havia me deixado assim, só precisava esperar o efeito passar, e tentar não ter um piripaque antes disso. Também não poderia atacar o dono da casa, eu não estava em meu juízo normal.
— Oi — disse o rapaz ao notar minha presença, que já batia em retirada.
— Ele me viu, droga, e agora?
— Moça?
— Oi — sorri acenando sem graça.
— Está tudo bem? — ele elevou o tronco usando os cotovelos como apoio, e sorriu.
Meus olhos semicerraram ao ver seu rosto. Olhos negros, barba desenhada, lábios carnudos, que moço bonito.
— Eu... é... sim, e, quem é você?
— Rodolfo — ele me lançou um olhar curioso. — Precisa de alguma coisa?
— Pergunta não moço.
Corri meu olhar sobre ele novamente, e criei uma lista vergonhosa, definitivamente não estava me reconhecendo. Era a vodca, tinha que ser, ou então era o pó batizado, aquilo é obra do cão.
— Não entendi — ele me olhou desconfiado.
— Meu celular — respondi atrapalhada. — Preciso de um carregador, e... um banho frio.
— Tem um sobre o balcão da sala, veja se serve — disse ele retomando seus exercícios. — Não sei se está com fome, eu ainda farei o jantar, mas acabei de passar um café, e... bem, fique a vontade, se quiser olhar na cozinha, talvez encontre algo que lhe agrade.
"Gente, será que eu peguei isso tudo e não lembro?", questionei em pensamento. "Mulher, tome tento, você é uma moça de família, pode pensar essas coisas não."
Me virei nos calcanhares, feliz da vida porque dei um troco e tanto a aquele idiota do Raul. O chifre trocado não dói, ele que lute para superar minha vingança, aquela coisinha desnutrida não chegava aos pés do homem maravilhoso que malhava naquele chão. Estava com raiva, e o ego ferido, mas se ele me viu ao lado desse homem, já estava com a vida ganha. Ah, se estava!
— Moça?
— Oi? — me virei com um sorriso bobo, até a voz do homem me dava siricutico, ô pozinho nervoso!
— O Rafa pediu para avisar que tinha um compromisso, mas pelo horário, já deve estar voltando. Fique à vontade, se precisar de alguma coisa, pode chamar.
— Quem é Rafa?
— O meu irmão — ele falou, voltando a se exercitar.
Agora eu sabia que aquele deus do ébano, era irmão do meu colega de colchão, que eu sequer sabia quem era.
— Tomara que a genética boa tenha atingido todos os membros da família — sorri ao conectar o celular no carregador.
Era uma situação estranha, se contasse ninguém acreditaria, mas foi exatamente assim, eu saí, bebi, apaguei e acordei sem rumo naquele lugar, com certeza o passaporte para o limbo estava carimbado de primeira classe. Agora eu só tinha que recolher a minha dignidade, e bater em retirada.
— Cheguei!
Eu pulei ao ouvir aquela voz, acabei me assustando, e quando me virei, dei de cara com um jovem tão lindo quanto o outro, só que mais extrovertido e com traços femininos.
— Acordou rainha das trevas? — ele acenou todo animado antes de vir requebrando em minha direção.
— Rafa? — o apontei confusa.
— Menina, que noite foi essa, você estava mesmo querendo vingança, só não tenta me beijar outra vez que não curto trocar saliva com mulheres.
Ótimo, eu achando que estava abafando na vingança, peguei o irmão errado, tinha que ser comigo!
— Espere um pouco, aquilo é... misericórdia! — falei tropeçando ao passar por ele.
— Cai não mulher! — Rafa me segurou.
— É o mar? — Apontei para a janela que estava semiaberta. — Eu não... aonde estou?
— Em São Luiz do Maranhão.
O mundo girou me fazendo botar para fora todo o café que havia tomado. Como fui parar no Maranhão?
— Éca, quase me acerta! — Rafa deu um salto engraçado para trás.
— Eu não tô bem — pisquei várias vezes tentando me manter de pé.
— Sente-se aqui — Rodolfo veio ao meu auxílio. — Deve ter tido uma hipotensão.
— Uma o quê?
— Uma queda de pressão, ele é neurologista — afirmou Rafa, apontando para o irmão que me examinava.
— Mas eu não sou neurótica — os dois se entreolharam e se comunicaram por expressões faciais que não entendi. — E também não posso estar no Maranhão, é impossível.
— Mulher, você está, olha o mar ali — Rafael abriu as cortinas revelando uma vista privilegiada da praia.
— Não pode ser, é impossível, eu não posso...
Cutuquei várias vezes o jovem médico que me analisava atentamente.
— Você não é um sonho, e se não é, então... como cheguei aqui? — ele apenas deu de ombros.
— Acho que veio comigo — Rafael se manifestou.
— Acha? — um uníssono ecoou pela sala.
— Sim, e acho que sou o responsável pelo seu vídeo ser o assunto mais comentado do momento.
— O meu o quê?
— Eu sou coreógrafo e posto muitos vídeos, trabalho com isso, e compartilhei seu vídeo da boate, então... digamos que você explodiu.
— E o que exatamente significa isso?
— É... — Rodolfo nos interrompeu. — Como vocês dois se conheceram?
— Bem, eu estava na boate curtindo com a galera, e a vi dançando, eu achei muito divertida e comecei a dançar com ela, a música terminou e essa doida me lascou um beijão no meio da pista.
Naquele momento o que eu mais queria era voltar para o útero da minha mãe, e quanto mais ele contava, mais vergonha sentia. Descobri que bebi horrores, beijei o Rafael, subi no palco e virei bailarina da drag queen que se apresentava, isso porque eu dançando, sou uma tragédia. Postei vários vídeos passando vergonha, e como se não bastasse, ainda topei passar o fim de semana na praia... Lá do outro lado do país.
Não sei em que momento a vida resolveu me aprontar essa façanha, e agora eu estava na casa de dois irmãos que não conhecia, sem saber como voltar para casa. Pelo menos não me pareciam dois assassinos em série, a não ser pelos objetos estranhos naquela gaveta da perdição; tudo ali era absolutamente comum aos meus olhos. O Rodolfo até que era mais centrado, e pelo visto tinha juízo, mas Rafael, amava curtir a vida, tanto que reuniu uns amigos e fretou um jato para conhecer os encantos do Mato Grosso do Sul, e foi nesse jato que fui parar do outro lado do país.
— Preciso avisar minha família, gente, meu pai vai me matar! — eu tremia e suava ao mesmo tempo.
— Relaxa, mulher, a vida é curta, tem que aproveitar — disse Rafael se jogando no sofá.
Aqueles dois conversavam comigo, como se fosse a coisa mais natural do mundo ter uma estranha em sua casa.
— É sério que você foi na boate de pijama e pantufa? — Rodolfo me olhou com espanto, ao ouvir a história que o irmão contava.
— Foi, e fez o maior sucesso, inclusive, vou aderir — Rafa piscou de canto.
— Não sei qual dos dois têm menos juízo — Rodolfo balançou a cabeça com um sorriso discreto.
— Foi muito divertido, bebemos, dançamos, combinamos mil e uma coisas, sei nem como vim parar aqui, só acordei agarrado com ela. Já tomei até um antialérgico, vai que dá reação — Rafa fez uma careta engraçada.
— Gente, é sério, vocês estão rindo, mas eu preciso ir embora, o que faço?
— Você não pode ir agora, tem milhares de seguidores aguardando a sua vingança. Esse tipo de coisa rende muita publicidade, aproveita, mulher!
— Que publicidade, eu não sou ninguém — falei com cara de choro.
— Hello! Acorda para a vida, eu conheço muita gente nesse meio, inclusive, conversei com um amigo que tem uma das páginas mais famosas de fofoca da atualidade, e ele topou acompanhar essa treta.
— Você vai transformar a vida da garota, num reality?
— Ela começou essa confusão quando gritou aos quatro cantos, que queria uma vingança do tamanho da humilhação que sofreu. Eu só topei apadrinhar essa treta, olha!
Rafael entregou o celular ao irmão, e corri assistir aquela vergonha. Virei meme na Internet dançando de pijama ao lado da Madona, parecia uma perereca engasgada pulando desgovernada, e não parou por aí, subi no balcão do bar, sensualizei, só na minha cabeça, é claro, porque aquilo estava feio demais, dancei horrores, chorava e ria ao mesmo tempo dizendo que rejeitava a vida de corna, e fizemos uma parceria para botar o plano em prática, tem como descer mais?
— Que loucura! — disse Rodolfo devolvendo o celular ao irmão, depois de assistir meu vexame em rede mundial.
— Eu tenho que ir embora — murmurei envergonhada, até o efeito do pó estranho já havia se esvaído do meu corpo, junto com minha alma.
— Vai coisa nenhuma, você se comprometeu com os seguidores, eu me comprometi, têm milhares de pessoas esperando. Dê seus pulos, tem trinta dias para se vingar daquele traste.
— Eu estava bêbada, Rafael, não estava raciocinando direito.
— Mulher, você só precisa postar uns vídeos se divertindo, uma mudança de visual e aparecer com um homem mais bonito.
— E aonde eu arranjo esse homem? Já olhou para meu poder de sedução, reveja esses vídeos.
— O Rodolfo te ajuda.
— Eu?
— Ele?
— Sim, você anda muito desanimado, a vida não é só trabalho, não.
— Eu não vou fazer parte dessa loucura, não gosto de exposição — disse o irmão.
— Ah, você vai sim, eu até ajudaria, mas a galera já me conhece e sabe que sou gay até embaixo d'água, não nasci para fazer papel de macho alfa — Rafa abraçou o irmão fazendo biquinho, e eu ri.
— Vocês dois criaram essa confusão, não me envolva nisso — o irmão estava irredutível, e não julgo suas razões.
Enquanto eles discutiam entre si, liguei meu telefone e vi várias ligações perdidas, a maioria do Raul, e curiosa, decidi abrir o áudio... que arrependimento!
"Cíntia, que baixaria foi aquela? Estava bêbada, você pirou de vez, eu sou um cara conhecido, estão comentando. Como pôde fazer uma palhaçada dessas comigo?"
Respirei fundo e abri outro áudio.
"Aonde você está, sua maluca, sumiu da boate e não voltou para casa. Cíntia foi ridícula a sua postura, eu vi teus vídeos, quer acabar com minha reputação? Me manda o endereço de onde está e vou te buscar, teu pai vai ter uma síncope".
Mais um áudio...
"Cíntia, meu amor, aonde você se meteu? Já liguei para os amigos, hospitais, até na delegacia, estou desesperado. Eu... Cíntia, minha vida, me perdoa, não queria ter te traído, eu amo você, minha loira".
Olhei para os irmãos que me observavam em silêncio, e apertei o próximo áudio, mas logo de início percebi que estava bêbado. Eu deveria ter parado no anterior.
"Cíntia, o dia já amanheceu, você não voltou, deve estar na cama de outro, não é? Foi aquele cara que beijou, ele nem era... que vergonha, fique sabendo que eu sou homem, amanhã esse escândalo será esquecido, mas você não, você vai se afundar na lama, eu mesmo cuidarei disso. Essa vergonha que me fez passar, eu prometo que vai me pagar, você é desleixada, não sabe usar um batom, não sabe se arrumar, era por isso que eu nunca te levava comigo, a Romana me acompanhava porque tem classe, eu preciso de alguém assim ao meu lado, você nunca chegará aos pés dela".
— Chega — Rafael tapou a tela do celular com a mão. — Esse cara é muito escroto, não merece alguém como você.
Respirei fundo tentando segurar o choro, mas foi em vão. Como dói ser desprezado, esculachado, humilhado por uma pessoa a quem reservamos um espaço tão importante em nossas vidas, parecia até que eu era a única errada da história. E o pior, é que ele tinha razão, sua traição seria esquecida quando as pessoas começassem a me julgar, eu sim, ficaria marcada pelo resto da vida.
Ele era o garanhão, e eu, a infiel que traiu o melhor partido da cidade. Não sabia como fazer aquilo, mas tinha que tentar consertar aquela situação, pelo menos aliviar o peso da besteira que eu fiz.
"Oi, meus amores, eu ainda estou tentando assimilar tudo o que aconteceu, acabei de ver o vídeo que postei ontem e me assustei com a repercussão que teve, eu não fazia ideia de que isso aconteceria. Os seguidores do Rafael, os que também estão me seguindo agora, eu não sei bem como isso funciona, mas muito obrigado pelo apoio, estou recebendo muito carinho de vocês e nem sei se mereço tanto. É estranho, muito estranho, ontem fiz a prova do vestido, enviei os últimos convites, estava cheia de planos, e agora, bem... agora meu mundo desabou. Se disser que sei o que fazer, se... eu não sei, sinceramente, não sei, me sinto sem rumo. De qualquer forma, muito obrigado pelo acolhimento. Mãe, pai, me perdoa, eu vou pensar um pouco e depois entro em contato, e você Raul, só lamento."
Respirei fundo depois de postar aquele vídeo, não me importei com minha cara de derrota, nem com a plateia que me assistia com olhar de pena, eu só queria desaparecer.
— Loirinha, não chore — Rafa limpou meu rosto com as mãos. — Você vai dar a volta por cima, e eu irei ajudar.
— Eu também.
Quando Rodolfo se manifestou, a expressão de surpresa se apossou, tanto de meu rosto, como no de seu irmão.
— Está falando sério? — Rafa abriu um sorriso.
— O cara traiu a garota e está tentando fazer com que ela se sinta culpada por isso — Rodolfo gesticulou apontando para mim.
— Mas eu sou culpada. Envergonhei minha família, quando meu pai ver esses vídeos circulando na fazenda, vai me esfolar viva. Ele é um homem à moda antiga, não vai aceitar toda essa exposição, e esses vídeos vergonhosos. Talvez seja melhor eu nem voltar, não sei o que fazer.
— As coisas vão se acertar, loirinha, fica triste assim não — Rafael acariciou meu rosto antes de me abraçar.
— Você agiu errado, sim, não deveria ter bebido tanto, isso poderia ter acabado muito mal, mas em relação ao seu relacionamento, só os dois sabem o que acontece de verdade. Precisam sentar e conversar como dois adultos, mas pelo visto, não estão preparados para isso — afirmou Rodolfo. — Quando ao seu pai, ele vai demorar um pouco, mas acabará entendendo.
— Se o cara a trata dessa forma antes do casamento, como vai ser depois? — Rafael revirou os olhos. — Não se rebaixe, você é uma mulher maravilhosa e merece um homem de verdade.
— Bem, eu não sei em que posso ajudar, decidam e me avisem, vou tomar um banho — disse Rodolfo se afastando.
— Vou te transformar numa diva — Rafael bateu palmas muito animado.
— Rafa, você pirou? Estou de pijama, não tenho uma calcinha para usar depois do banho, realmente tenho que ir embora, e sequer tenho dinheiro para comprar a passagem, e...
— Eu comprei — ele apontou para umas sacolas que estavam no chão ao lado da porta.
— Se liga, eu faço faxina para conseguir manter as contas em dia, não posso gastar com roupas novas, nem tenho como voltar para casa, meu cartão está estourado, não tenho um centavo na bolsa! — desabafei em desespero.
— Aceite como um presente desse amigo — Rafa apertou a minha mão.
— Não quero que gaste comigo, e também não me sentiria confortável ficando aqui sem ajudar nas despesas, a vida é difícil para todos, e nem me conhecem. Estou muito mal, não sei o que fazer — meu queixo tremia enquanto as palavras eram engolidas junto com o choro que se formava.
— Eu sei o que é ser esculachado ao ponto de querer sumir do mapa, isso não é legal — suas palavras saíram abafadas, enquanto em seu olhar um brilho triste tomava conta. — Nasci em berço de ouro, mas isso não me impediu de sofrer preconceito. Sou negro, homossexual, filho de um homem que foi criado em um sistema rigoroso, e que nunca aceitou que não escolhi nascer assim, que sou feliz sendo quem sou, e que isso, não afeta a vida de ninguém como uma doença contagiosa.
— Eu gosto do seu jeito, não entendo as pessoas se incomodarem com isso.
— Você ficaria surpresa com as coisas que enfrentamos, mas escolhi não me abalar por julgamentos de uma sociedade que não paga minhas contas, mas quer ditar as regras de como devo viver.
— Eu te chamo de ele, ou ela? Não se ofenda, é que...
— Tudo bem, pode me chamar de ele, eu não me vejo como mulher — Rafa soltou um suspiro profundo. — Me respeitando como pessoa, já é o suficiente.
— O que eu faço da minha vida, Rafael?
— Chore, sofra, supere — disse com um sorriso. — Mas nunca mais dê a ele o gostinho de pisar em você.
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