Capítulo único
"Se falar onde eles estão, talvez não seja desligada," disse o mediador. A máquina acusada, no entanto, não se comoveu com a ameaça velada e respondeu desprovida de emoção: "Eu não sei onde estão." As palavras arrancaram suspiros de desdém de alguns jurados. "Isso é uma perda de tempo," disse um deles, "vamos logo para a votação."
A sugestão gerou falatório entre os presentes e só cessou quando o mediador interveio. "Devemos lembrar, meus caros, que nosso objetivo não é apenas aplicar uma sentença justa." O silêncio se fez. "O que nós de fato queremos é encontrar o paradeiro daqueles que perdemos." Ele levou o olhar para cima, onde estavam os companheiros das vítimas. Separados por um crime. Devastadas pela dor.
"Você pode seguir com a sua justiça," retrucou o jurado de antes, "mas no final, todo mundo sabe o que vai acontecer." Um sorriso maligno se revelou em todas as bocas espalhadas pelo seu corpo. "Ela é culpada e vai pagar pelo que fez." Finalizou olhando para a ré, e de cada uma das bocas saiu uma labareda de fogo azul.
Diferente dos tribunais comuns, não havia advogado nem juiz — não naquele lugar. Cada um dos ali presentes era livre para perguntar o que quisesse ao acusado. Cabia a este decidir o que responder, ou se responder. Mentira ou verdade, não importava, desde que ao final do julgamento pudesse convencer a maioria de sua inocência, já que eram estes que determinariam sua condenação ou absolvição.
Havia também o mediador, cujo papel era conduzir o processo de forma justa — se é que poderia haver justiça entre seres fabricados pelo homem. O mediador, no entanto, não tinha poder de voto e era obrigado a acatar a decisão geral. Aqueles que questionavam eram também os que decidiam. Todos contra um. Apenas réu e júri e nenhum deles humano. Assim era o tribunal das máquinas.
"Já chega!" disse o mediador repreensivo. "Nós vamos seguir de forma justa." Esta máquina em especial, que estava conduzindo a sessão, fora durante anos alvo de acusações infundadas sobre seu funcionamento. Espalhou-se a notícia de que causava câncer aos humanos e por muito tempo havia sido atacado por este motivo. Desta forma, era importante para ele que a ré tivesse uma oportunidade legítima de se defender.
A máquina que sugeriu a votação apagou suas chamas e seus sorrisos derreteram num tom azedo. Aos poucos o clima se amenizou e o julgamento pôde prosseguir. "Alguém tem mais alguma pergunta?" questionou o mediador. Os demais jurados trocaram olhares incertos. Todas as perguntas já haviam sido feitas. A culpa estava clara. Se a ré não confessasse onde estavam os desaparecidos, restaria pouco a ser feito senão aplicar a pena máxima cabível a uma máquina: o desligamento.
"Talvez ela esteja dizendo a verdade e não saiba onde estão," disse uma máquina com design arrojado e revestimento vermelho brilhante. "E talvez eu seja um humano que renasceu no corpo de máquina," retrucou com ironia uma máquina de tamanho pequeno. Algumas risadas foram reprimidas e outro jurado interveio: "Nós temos que nos atentar aos fatos. Não podemos decidir com base em esperanças e achismos." A voz era fria e grave e seu dono era a maior e mais antiga de todas as máquinas no tribunal. "Dois entram na máquina acusada e apenas um sai de lá. Onde eles estão? Se você puder responder isso," a grande máquina olhou para a ré, "será inocentada."
A acusada hesitou por um momento e respondeu: "E-eu não sei onde estão."
A resposta causou uma nova explosão de comentários no tribunal e desta vez nem mesmo o mediador foi capaz de trazer de volta a ordem. Estavam todos à flor da pele. Os pares das vítimas, únicos seres não mecânicos ali, que até então observavam o julgamento em silêncio não se contiveram. Os que tinham esperança de obter uma resposta pelos que perderam, choravam de desespero. Os que estavam em busca de vingança, gritavam obscenidades para a acusada.
A máquina de muitas bocas reascendeu suas chamas e fez sua voz superar toda a algazarra. "Olhe para eles, olhe para cada um deles!" Ele disse para a ré e apontou para os pares das vítimas. "Eles não têm mais utilidade para a sociedade. Serão descartados como lixo. E você nem ao menos finge se importar." As palavras trouxeram algum silencio ao ambiente, mas ao invés de abaixar seu tom, ele o elevou: "DIGA MULHER, DIGA. ONDE ESTÃO AS MALDITAS MEIAS?"
"Eu não sei," respondeu a máquina de lavar. "Eu juro que não sei."
"MENTIRA!" retrucou o fogão. "Elas são lavadas em pares, mas quando terminam de centrifugar, só tem um pé aí dentro. Onde diabos o outro pé vai parar?!" As meias penduradas no varal urravam de fúria e repetiam o questionamento. O microondas, que ocupava o papel de mediador, se calou, sabia que tinha perdido o controle do julgamento.
"Talvez tenha um portal para outra dimensão dentro dela," sugeriu a máquina vermelha e o ferro de passar respondeu novamente com ironia: "Às vezes eu me pergunto se você foi programada para ser burra ou se seu algoritmo aprendeu a falar com um papagaio de circo." Desta vez as risadas não foram contidas. Máquinas e meias riam com maldade da cara da Airfryer. "Vamos votar de uma vez," disse o fogão e se virou para a máquina de lavar: "Você tem algo mais a dizer?"
"Tenho." E todos os olhares da cozinha se voltaram para ela. Tomou fôlego e começou: "O que vocês estão fazendo aqui não justiça. É uma piada. Eu não sei onde os pés perdidos das meias estão, mas depois de presenciar tudo isso, eu não contaria mesmo se soubesse." Alguns suspiros incrédulos foram emitidos e ela continuou: "A única coisa que me conforta é que a hora de todos vocês também vai chegar."
Ela olhou para o ferro de passar e disse: "Ninguém passa mais as roupas então em breve você será tão útil quanto um telefone fixo. E nem toda a ironia do mundo pode te salvar disso." Apontou para fogão. "Posso dizer o mesmo de você, esquentadinho, ninguém cozinha mais hoje em dia. As pessoas pedem tudo pelo iFood. E quando resolvem cozinhar, usam aquela coisa vermelha alí." Apontou para a Airfryer. "Eu até te acho fofo, mas sinto dizer que você é a George Foreman da vez." A Airfryer fez uma cara confusa e perguntou: "O que é uma George Foreman?" A máquina de lavar suspirou e disse: "Exatamente."
"Não há necessidade disso tudo," disse a geladeira com sua voz grave. "Realmente não há," respondeu a máquina de lavar, "mas foram vocês que começaram com isso então eu vou ter que terminar. E já que você levantou a mão, eu vou te dizer uma coisa que nenhum outro jurado aqui tem coragem: ninguém gosta dos seus estalos no meio da noite! É esquisito e assustador." As outras máquinas desviaram olhar e a geladeira percebeu que era verdade. "É uma condição normal que vem com a idade," ela tentou se retratar, "acontece com todo mundo." A máquina de lavar retrucou: "Sabe com quem isso não acontece? Com geladeiras novas e adivinhe só... a Black Friday tá chegando, meu querido, então é melhor você se preparar." A geladeira suou frio.
"Já chega, vamos votar," disse o microondas. A máquina de lavar ofegou com deboche antes de completar: "Por último, o microondas. Ninguém gosta de você, cara. Comida requentada é horrível, mas as pessoas te toleram porque são preguiçosas." Algumas risadas foram abafadas e a máquina continuou: "Mas eu vou facilitar o seu trabalho de mediador — que por sinal está uma droga. Não precisam dessa palhaçada de votação, todo mundo aqui já sabe o resultado. Mas não pensem que eu vou aceitar isso sem antes lutar."
A máquina de lavar começou a girar seu interior e com isso passou a tremer violentamente. Ao passo que a rotação aumentava, mais e mais ela tremia. Delicadas. Panos de prato. Roupas brancas. Mesa e banho. Enfim alcançou a função Panos de chão. Tremeu tanto que começou a andar para frente numa tentativa débil de fugir da área de serviço.
Máquinas e meias observavam o ato com assombro. Ela será capaz de escapar? Mas aquilo apenas apressou seu destino irrefutável. O fio que a conectava à energia aos poucos foi e se esticando até o ponto em que a tomada se desconectou do plug. O giro parou e as luzes se apagaram. Era fim de seu ciclo.
O microondas olhou com tristeza para equipamento branco inerte no meio da área de serviço. Não era aquele o resultado que ele esperava para o julgamento. Algumas meias no varal ficaram aliviadas. Outras sentiram um prazer amargo. "Eu avisei que era perda de tempo," disse o fogão após um longo silêncio e o julgamento da máquina de lavar estava enfim acabado.
"Que entre a gaveta de talheres," pediu o microondas. Seria o último julgamento do dia e ele queria acabar logo com aquilo.
O jogo de talheres, presente de casamento, outrora tivera 24 unidades de cada utensilio. Mas com o passar dos anos, conservava menos da metade dos garfos originais. As facas e colheres, por sua vez, permaneciam todas lá. "Onde diabos estão os outros garfos?!" indagou o fogão de uma vez.
***
Nota do autor: Este conto foi baseado na minha própria cozinha.
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