9 - Clube da Luluzinha macabro

As coisas têm vida própria. Tudo é questão de despertar a sua alma.

Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez



25 de março, quarta-feira

A noite estava fresca, mas não fria. Elas não dormiram tarde porque tinham aula no dia seguinte e, para ajudar, a bateria da lanterna acabou. Para não começar já a gastar as velas, foram dormir. Não foi difícil pegar no sono, estavam cansadas demais.

Fernanda sonhou com a mãe, sentada ao pé do seu colchão, sorrindo e acariciando sua perna, como fazia quando estava viva. Era como se estivesse acordada, e o carinho dava sono. Ela queria ficar olhando para a mãe, ali, existindo outra vez, mas seus olhos iam se fechando e ela voltando para o sono dentro do sono. Foram minutos que pareceram horas. Ela sentiu saudade outra vez, matou a saudade e precisou se despedir de novo. Voltou a sonhar com nada.

Luiza sonhou com uma apresentação de dança de uma bailarina. Os móveis da sala estavam nos cantos, as luzes acesas, e a moça dançava no centro. Usava uma roupa azul claro, sem tutu, e sapatilhas da mesma cor. Seu cabelo escuro e longo estava solto. Uma música muito suave tocava ao fundo. Somente ela assistia. A moça sorria enquanto dançava e, às vezes, olhava para Luiza. Certo momento, pareceu dizer algo, mas Luiza não ouviu nada, não conseguiu ler os lábios. Pediu que repetisse, mas foi acordada por um grito.

Como tinham deixado as cortinas abertas, Fernanda e Luiza conseguiram ver com as luzes que vinham dos postes da rua que Julieta estava sentada no sofá, respirando rápido e pesado, tremendo. Fernanda se ajoelhou no colchão, se aproximando de Julieta, para ver se estava tudo bem, enquanto Luiza procurava por uma vela, um pires e o isqueiro na mesinha de centro. Logo que conseguiu acender, se aproximou de Julieta rapidamente e depois buscou a garrafa térmica e um copo para pegar água.

Julieta chorava e não conseguia falar. Fernanda parou de perguntar o que tinha acontecido, esperou que ela se acalmasse. Logo ela conseguiu tomar a água, ainda que com dificuldade. Luiza estava ao seu lado, Fernanda de frente, então logo se acalmou, respirando fundo. Seria difícil se estivesse sozinha.

— Nunca tive um pesadelo assim... — Disse quando conseguiu.

Ainda tremia. Respirou fundo um pouco mais para conseguiu contar, mas antes de falar, começaram a ouvir uma música pela casa. Claramente dentro da casa, não fora.

— Essa música... — falaram as três juntas.

Era a música que tocava enquanto a bailarina dançava no sonho de Luiza.

Julieta também a ouviu no seu pesadelo.

Fernanda a ouviu de fundo enquanto estava com sua mãe no sonho minutos atrás. Também, ela se lembrou um momento depois, enquanto prestavam atenção para ver se não parava ou se entendiam de onde vinha, foi a música que ouviu na noite anterior.

— Ouvi isso ontem, mas não achei de onde vinha — ela disse.

Pensaram que vinha de alguma caixinha de música bem escondida e que, de alguma forma e só à noite, ligava sozinha. Porém, ao invés de se levantar e procurar pelo som, ainda prestaram atenção em Julieta, que anda tremia e fungava. Pouco depois ela já estava melhor, só então se levantaram. Julieta pegou um pouco mais de água. Luiza pegou o pires com a vela. Fernanda levou o medo que finalmente chegou, acumulado com a outra noite. Agora era tinha certeza que estava acordada.

Seu primeiro instinto foi subir até o quarto onde ouviu a música com mais intensidade na noite anterior, mas dessa vez ela vinha de um lugar diferente. Elas seguiram essa música até o escritório. Abriram a porta com medo, todas com a respiração pesada, aquela que as delataria ali em uma situação em que se não quisessem ser percebidas por alguém — ou algo. Lá dentro, viram uma mesa grande, algumas prateleiras vazias, muitas caixas, tudo que já tinham visto antes, mas de alguma forma aquilo não lhes chamou nem um pouco a atenção.

— Acho que são os livros da minha mãe — disse Fernanda, percebendo que as coisas estiveram ali o tempo todo naqueles dias. — Meu pai me contou ontem que não os doou nem jogou fora como minha avó queria. Disse que estavam aqui.

Luiza colocou o pires sobre a mesa, mas ainda era pouca luz. A música havia parado completamente.

— Quer dar uma olhada? — Perguntou a Fernanda.

Ela assentiu, já entrando numa bolha onde nenhuma música havia tocado vindo de lugar nenhum. Agora eram só ela e as coisas da mãe. E talvez as meninas.

— Perdi o sono. Se quiserem voltar a dormir... — Fernanda disse a elas.

— Vou buscar mais velas — disse Julieta. Tomou um gole de água e colocou o copo sobre a mesa, pegando o pires para ir até a sala. Também queria ver as coisas guardadas ali. — Qualquer coisa, gritem.

Saiu e deixou Fernanda e Luiza sozinhas no escuro. Parecia não ter tido pesadelo nenhum minutos antes.

Nenhuma das duas costumava ter medo do escuro. Ali naquele cômodo não entrava luz da rua, a lua estava fraca e a cortina fechada. Sem perceber, Luiza se aproximou e abraçou Fernanda pela cintura, com um pouco de medo daquele silêncio profundo na escuridão.

— É como se a gente não tivesse sozinha... — comentou Luiza em voz baixa.

Fernanda a abraçou forte porque também sentia o mesmo e não era por causa das coisas da mãe que carregavam saudade, nem nada que ouviram antes. Era só o escuro mesmo.

Logo Julieta voltou com mais algumas velas. Fingiu não ver aquele abraço que podia ser medo, podia ser outra coisa.

— Não achei os outros pires, não quis deixar vocês no escuro muito tempo.

— A gente põe na mesa mesmo. Só não deixar pegar fogo — disse Fernanda, enquanto Luiza a soltava lentamente.

Com as velas acesas, cada uma abriu uma das caixas. Eram mesmo livros. Se divertiram por um momento vendo o gosto literário da mãe de Fernanda.

— Depois tenho que limpar e colocar eles na estante. Tudo que eu sempre quis ler... e minha mãe fazia anotações neles — disse, rindo e chorando ao mesmo tempo ao ver a letra da mãe na luz fraca das velas.

Havia muito tempo ela não tinha mais nada com a letra da mãe, porque ou o pai e a avó sumiram com tudo ou porque ela mesma acabou guardando em lugares que não mexia mais, para esconder um pouco a saudade.

Junto do choro de emoção de Fernanda, começaram a ouvir também um lamento. Como a música, vinha de algum lugar e de lugar nenhum ao mesmo tempo. Parecia o mesmo lamento que Fernanda também ouviu da noite anterior, ela contou fungando, limpando suas lágrimas e se concentrando no outro choro.

— Não procurei que nem procurei a música, estava sonolenta...

— Parece um choro? — Perguntou Julieta.

— Dói no peito... — disse Luiza.

— Vamos voltar e deitar? — Sugeriu Fernanda.

As duas concordaram. A ideia de poder se esconder na coberta e fechar os olhos e esperar aquilo passar era tentadora. Depois de descobrir o que havia nas caixas, o medo de antes voltou. Porém, havia também, nas três, uma sensação de que não era necessário sair correndo dali. Era um medo do desconhecido, mas o desconhecido era estranhamente reconfortante.

Apagaram as velas sobre a mesa, deixando apenas a do pires acesa, e Fernanda a pegou para levar para a sala. Fechou a porta do escritório como se para proteger as coisas da mãe do desconhecido. Se deitaram, deixando a vela acesa sobre a mesinha de centro, ainda ouvindo aquele lamento.

— Você ouviu mais alguma coisa ontem? — Perguntou Julieta, para saber se teria mais surpresas.

O pesadelo de antes vinha até ela outra vez.

— Não, só a música e esse... lamento. Fora isso, sonhei com algo que está confuso agora.

— Lembra alguma coisa?

— Tem um frame que parece alguém se aproximando de mim, andando. Isso me deu muito medo, mas voltei a dormir logo depois, eu acho. E tem outro que parece alguém dançando aqui pela sala.

— Tipo uma bailarina? — Luiza perguntou.

— Sim.

— Eu tava sonhando com algo assim quando acordei com a Julieta assustada.

— Sua mãe era bailarina? — Perguntou Julieta a Fernanda.

Ela negou com a cabeça.

— Aquela sapatilha que você viu no quarto e depois não viu mais aquele dia... — disse Luiza e Julieta assentiu. — E o desenho...

— Eu não... acredito... — Tentou dizer Fernanda.

— Que a casa é assombrada? — Completou Julieta.

— Sim — disse e jogou um dos braços sobre o rosto, tirando em seguida. — Nunca acreditei nessas coisas, agora vim morar em uma? Se eu continuasse ouvindo as coisas sozinha, tudo bem, pensaria que estava doida, ou sei lá, que tinha alguma caixinha de música estranha em algum canto, mas vocês estão ouvindo tudo...

— Pelo menos é só ouvindo, porque se eu visse qualquer coisa... — disse Julieta. Queria dizer "como vi no meu pesadelo", que acabou nem contando às meninas.

Mal terminado de ser dito isso, elas ouviram rangido no degrau da escada. Depois mais um. Então outro e outro, até que se tornou um rangido no piso da sala. Fernanda se sentou no colchão para ouvir e procurar de onde vinha. Então elas viram.

Em um vestido longo e, à primeira vista, cinza, uma mulher de cabelos brancos, presos em um coque frouxo. Lentamente, ela entrou na sala, saindo das escadas. Automaticamente, Luiza e Julieta desceram do seu sofá para o colhão de Fernanda e se sentaram junto dela. A velha andava com as mãos juntas na frente do corpo, segurando um lenço incrivelmente branco.

Aquele lenço.

Julieta tremia outra vez.

— Foi com ela que sonhei — disse com a voz bem baixa e bem trêmula.

Nisso, a velha parou e olhou para elas. Apesar das cortinas abertas, não havia iluminação suficiente em seu rosto para que pudessem identificá-la. Apenas parecia uma senhora qualquer e que não deveria estar ali. Dela, começou outra vez aquele lamento. Primeiro, parecia um gemido fraco, depois aumentava e virara um choro velho e doído. Ela não tirou mais os olhos das meninas.

Julieta abaixou a cabeça no ombro de Fernanda, fechando os olhos. Luiza se aproximou um pouco mais e abraçou as duas. Devagar, e por não saber bem o que fazer, Fernanda pegou sua coberta e colocou sobre a cabeça das três. Sem enxergar, ainda continuaram ouvindo o lamento e os passos lentos dos pés cansados se arrastando no chão.

Pareceu durar uma eternidade.

Cansadas de esperar acabar, muitos minutos depois, elas se ajeitaram por baixo da coberta e se deitaram juntas. Em um colchão de solteiro, ficariam abraçadas quer quisessem ou não. Por cansaço, ou por misericórdia de quem controlava seu sono, elas dormiram pouco depois. Não tiveram nem tempo de imaginar o que aquela mulher faria, se chegaria próximo delas ou se apenas ficaria ali, chorando.

Sonharam com aquele choro, como se estivessem meio dormindo meio acordadas. Foi como não dormir. Depois de um tempo, voltaram aos sonhos anteriores.

Julieta estava novamente em seu pesadelo: uma senhora que claramente não estava mais viva, com seu vestido sujo ou morto, com seu rosto morto, seu lamento doído, rodeando-a no meio da sala meio escura e fria, e ela não conseguia se mexer. A mulher não parecia querer fazer algum mal, mas o medo estava junto de Julieta ainda assim.

Luiza estava novamente na sala clara e com móveis afastados. A bailarina dançava, mas agora sem música; não sorria mais. Estava triste, chorando em silêncio, como se dançar doesse. E, por trás, a velha andava e chorava, sem tirar o olhar de Luiza. E Luiza não conseguia desviar o olhar delas também, não conseguia fechar os olhos em sonho. Como não havia música, ela ouvia os pés da bailarina no chão, sua respiração pesada e chorosa e o choro da velha.

Fernanda sonhou outra vez com sua mãe, porém dessa vez ela não estava sentada ao pé de sua cama. Ela andava pela sala, acompanhando a velha e lamentando também. Fernanda ouvia dois lamentos que partiam seu coração. Partia principalmente por ver sua mãe chorando. A sala estava escura também, então ela ainda não conseguia ver quem era a velha. Porém, com sua mãe ao lado dela, parecia ser alguém conhecida.

Esses sonhos pareceram durar horas em looping

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