23 - Adeus?
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
Com licença poética, Adélia Prado
Sábado, 18 de abril
Por um momento tudo ficou suspenso, na expectativa de ter dado certo ou não. Felícia foi a primeira a falar, sua voz meio aqui meio lá, fazendo-as voltar à realidade:
— Coloquem dentro das caixas.
As três conseguiram se mexer, pegaram os objetos originais e suas miniaturas. Fernanda foi quem ficou com a caixa dos originais. Colocou o quadro primeiro, virado para baixo, e depois o resto. Aproveitaram e colocaram os materiais que usaram também, porque não queriam guardar nada daquilo como lembrança. Colocaram as tampas nas três caixas, mas ainda não passaram a cola nem fita para lacrar.
Então, Fernanda correu até a mãe, como se ela estivesse mesmo ali para abraçá-la. No fundo, achou que abraçaria o nada e ficaria apenas a sensação, ainda que tivesse lembrança das mãos e das lágrimas dela no dia que encontrou com Flor e ela, chorando, ali naquela sala, semanas antes. Teve um susto quando seu corpo se chocou com o dela e seus braços envolveram algo, seu olfato sentiu o perfume que tinha esquecido.
Essência de saudade, notas de despedida.
Não era um abraço que nunca foi dado. Fernanda nunca abraçou tanto a mãe quanto no seu último mês. Mas eram tempos diferentes. Fernanda tinha crescido, entendido, e finalmente pôde derramar o luto que guardou fundo naqueles anos. Também, depois dos diários, sentia que conhecia um pouco mais aquela mulher ali, e ela era incrível.
Foi quase como ler um livro e poder abraçar seu personagem favorito. Mas esse personagem era sua mãe.
— A velha, a mãe e a donzela — disse Flor. — Eu tive muita sorte de ter vocês.
Felícia e Fernanda a abraçaram também. Abraço de perdão, abraço de despedida. Ficaram assim por um tempo, enquanto Julieta e Luiza admiravam o amor entre as três, ainda que duas estivessem mortas.
Se separaram do abraço e deram as mãos. Fernanda se deixou chorar um pouco. Felícia e Flor eram como duas corujas de orgulho dela.
— Obrigada por tudo — disse Fernanda. — Obrigada por vir e obrigada por nos proteger, vovó. E obrigada por falar comigo através da Rosario, mamãe.
— Fiquei muito feliz por você ter entendido o que era pra fazer com a Rosario. E por ter encontrado minha caixa também.
Fernanda riu, feliz, e olhou para as amigas paradas perto da mesa de centro. Depois, olhou um pouco mais para as duas, então soltou as mãos e foi até sua escrivaninha. Pegou o lenço branco da avó que não estava no meio dos objetos na mesinha de centro, e pegou também um dos poemas que recebeu de Rosario. Voltou até as duas.
— Não sei se é o certo... — disse.
Mas Felícia e Flor assentiram juntas.
— É sim — disse Flor. — Só vamos descansar, como Cecília. Não vamos embora totalmente e não pra sempre também. Nada é tão pra sempre assim.
— "Nadie termina nunca de irse. Nos dejan algo por dentro y eso es tan grande que es imposible desaparecerlo." — Felícia citou Ana Romero para a filha.
Fernanda assentiu, sorriu, chorando um pouco. Então, se virou para as amigas.
— Vocês podem me ajudar? — Perguntou, mostrando os objetos.
Luiza pegou o poema, Julieta pegou o lenço. Fernanda abraçou as duas um pouco mais enquanto as amigas terminavam. Luiza escreveu um verso, Julieta bordou um "J", então trocaram. Por último, Fernanda escreveu seu verso no papel e bordou um "F" no lenço. Abraçou e beijou as duas uma última vez. Abriu uma das caixas, não onde estava o quadro daquele homem, mas outra, onde estavam os álbuns de fotos, e colocou o papel e o lenço ali. Colocou as tampas. Acenaram. Luiza e Julieta se despediram também.
Mãe e filha deram as mãos e saíram da casa pela porta da frente, de maneira simbólica.
Fernanda chorou um pouco mais, abraçada pelas amigas.
— Você tá bem? — Luiza perguntou após algum tempo.
Fernanda assentiu.
— Depois desse mês todo, acho que agora eu tô em paz — respondeu.
— Muito bonita a relação de vocês — disse Julieta. — Mesmo depois da vida.
— É verdade — disse Luiza. — Eu tô pensando muito na minha mãe com isso. Acho que sou meio injusta com ela por causa do meu nome...
— Você pode tentar falar com o seu tio também... — sugeriu Julieta. — Não custa tentar dizer que não gosta das brincadeiras...
Luiza deu de ombros, concordando que deveria e que talvez tivesse coragem um dia, e as três se abraçaram outra vez.
Depois, terminaram de lacrar as caixas e as levaram para o cômodo no fundo da cozinha. Conversaram sobre terminar de arrumar a casa toda para Fernanda morar direito, inclusive o quintal. Ele estava realmente bem cheio de folhas de árvore e as duas árvores podiam ser podadas também.
Então, Julieta disse que precisava ir embora e saiu quase correndo.
— Acho que ela quer muito dormir oito horas seguidas... — brincou Fernanda.
Mas Julieta só queria deixar as duas sozinhas e falar com alguém também. Havia algum tempo que não conseguia dar a atenção que queria a Paloma, principalmente porque as conversas com Capuleto sobre a garota a deixavam irritada. Ela nunca havia pensado em Paloma da forma que Capuleto insistia, mas aquilo foi uma semente plantada do peito dela. Mesmo que tenha lutado contra, foi em vão, principalmente depois da conversa que teve na última quarta-feira que a fez ver como Luiza gostava de Fernanda e estava agoniada por não saber se Fernanda poderia gostar dela. Julieta se sentia no lugar de Fernanda e viu Paloma agoniada como Luiza, ainda que nunca mais tivesse dito nada depois do que disse na primeira vez, quando Julieta não correspondeu. Apenas se tornaram amigas.
Julieta enviou mensagem para Paloma assim que saiu da casa, perguntando se podiam se encontrar e dar uma volta à toa.
Paloma
A toa?
A TOA?
Eu te conheço Julieta
A que se deve esse milagre de me chamar pra sair?
Julieta
credo
milagre?
até parece que nunca chamei
Paloma
Olha que eu reviro toda nossa conversa e te provo que não
Sou sempre eu quem chama
Julieta
até parece que sou ruim assim
Paloma
Não é ruim o nome
Julieta
é oq então?
Paloma
Kkkkkkk
Julieta
ah vai fazer graça então
quero ver falar na minha cara daqui a pouco
Paloma
Kkkkkkkkkkkkkkk
Julieta
palhaça
Paloma
Vou me arrumar bjs
Fazia aquele calor pós chuvas de verão, então Julieta não tinha casaco para colocar as mãos nos bolsos e calças femininas também não são feitas com bolsos que caibam mãos. Então ela estava com as mãos livres, inquietas, perdidas, entregando o nervosismo. Ela tentou disfarçar quando Paloma chegou ao shopping, mas ela era observadora.
Paloma foi quem tentou puxar assunto no caminho da praça de alimentação, mas Julieta respondia o básico e ficava procurando lugares para olhar que não fossem Paloma.
— Não, perai — disse Paloma, parando Julieta no caminho. — Você tá bem?
— Não, porque eu queria fazer algo que nunca fiz, mas acho que... pode acabar dando ruim.
— Por quê? O que é?
Julieta colocou as mãos na cintura e ficou encarando Paloma, pensando no que dizer. Começava a se arrepender daquela ideia, porque não conseguia formular nada com sentido e que não pudesse acabar com a amizade delas. Na falta do que dizer, Julieta a abraçou. Paloma retribuiu e esperou entender o que acontecia, mas não soube se estava se iludindo outra vez ou se algo realmente sério tinha acontecido.
Resolveu arriscar uma pergunta:
— Mudou de ideia?
Julieta pensou um momento em como responder, mas só conseguiu assentir. Paloma soltou o abraço e lhe estendeu a mão.
— Vamos comer, então — disse, sorrindo.
Pela primeira vez Julieta andou pelo shopping de mãos dadas com alguém com quem realmente queria estar.
Luiza estava calada, ajudando Fernanda a arrumar as roupas na sala. A expectativa a consumia desde o dia anterior, mas tinha acabado se convencendo que no sábado não conseguiria dizer nada. Porém, Julieta fugiu e aquele talvez fosse um bom momento, então ela estava nervosa outra vez.
— Você já vai voltar pra cá? — Perguntou certo momento.
— Vou. Mais tarde vou em casa buscar o que levei. Meu pai deve me trazer. Já sinto falta daqui.
— Ah.
Deixou o assunto morrer.
— E sua história, como tá? — Fernanda perguntou.
— Ah, indo. Apesar de tudo, eu ainda conseguia escrever depois que vinha aqui. Mesmo que só quando chegava em casa, por pouco tempo. Essa semana avancei bastante.
— Se tiver dado certo mesmo, você sabe que pode vir mesmo quando quiser, né? E agora tá tranquilo... — Luiza assentiu. Mas não parecia bem. Fernanda se aproximou. — Tudo bem?
Luiza assentiu, mas claramente era mentira. Seus olhos diziam isso. Ela e Julieta eram pessoas que precisavam de empurrões demais. Fernanda mostrou que não acreditava, então Luiza decidiu se entregar logo, porque sabia que não conseguiria guardar por muito mais tempo mesmo. Tentou começar a falar, mas tudo entalou na garganta. Fez gestos de nervosismo, mas nada saiu. Fernanda segurou suas duas mãos e a olhou no fundo dos olhos. Respirou fundo para que Luiza fizesse o mesmo. Pareceu funcionar.
— É... — Luiza começou. E recitou, com vergonha.
"Tens a aurora... na boca... e a noite escura"
Fernanda sorriu. E Luiza, agora que tinha começado, não podia parar. Passou dois dias inteiros decorando aquele poema e decidida e se declarar. Continuou.
"Nos olhos; no cabelo em desalinho.
O mar bravo, a floresta, o torvelinho;
E as neves da montanha em tua alvura"
Deixou uma risada de nervoso escapar, mas seguiu, apesar de algumas lágrimas de emoção que ameaçavam vir aos olhos e estragar tudo por trazer junto o aperto na garganta.
"Possuis na voz a música e a frescura
Da água corrente; o sussurrar do ninho
Na surdina sutil do teu carinho,
Em que o calor ao travo se mistura..."
Perdeu o ar por um momento. Fernanda sorria, então ela sabia que não precisava continuar para fazê-la entender o que queria dizer. Ela entendia.
— Continua... — Fernanda pediu. — Tá lindo.
Luiza riu. E finalizou o soneto.
"Cheiras como um vergel! Tens a tristeza
De uma tarde hibernal, em que anda imerso
Teu amor — meu algoz e minha presa —
Em tua alma e teu corpo acha meu verso
Todas as convulsões da natureza
E as harmonias todas do universo."
Fernanda a puxou para si, primeiro abraçando-a.
— Obrigada por ser tudo o que você é — disse Fernanda, baixo. — E pela paciência comigo.
Por um momento, Luiza pensou que Fernanda diria que elas eram apenas amigas, que era uma amizade bonita demais para ser estragada. Porém, Fernanda a soltou do abraço e a puxou pela mão até a escrivaninha. Pegou seu diário e abriu em uma das páginas.
— Descobri que escrevi aqui algumas coisas que nem lembrava, como se em transe. Mas outras eu lembro bem.
Luiza leu.
ELA É INCRÍVEL. ACHO QUE GOSTO DELA.
Luiza não conseguiu reagir. Fernanda pegou uma caneta, virou as páginas até a primeira em branco, colocou a data daquele dia e escreveu:
ELA GOSTA DE MIM TAMBÉM.
Luiza riu e deixou umas lágrimas escaparem. Fernanda segurou seu rosto com as duas mãos, lhe dando um beijo em seguida.
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