19 - É você, Satanás?

Eu tive um sonho que não era em todo um sonho

O sol esplêndido extinguira-se, e as estrelas

Vagueavam escuras pelo espaço eterno,

Sem raios nem roteiro, e a enregelada terra

Girava cega e negrejante no ar sem lua;

Veio e foi-se a manhã – Veio e não trouxe o dia;

Trevas, Lord Byron



Domingo, 12 de abril

Fernanda acordou com o sol forte entrando no banheiro, a sensação de sufoco, ainda que o lugar fosse grande e arejado. Todo seu corpo doía, a garganta, a cabeça. Era uma ressaca no meio de uma gripe. Se levantou devagar, procurou sombras e sons ao redor. Nada. Estava sozinha e no silêncio, finalmente.

Lavou o rosto, passou água na nuca, no colo, então foi até a porta. Girou a maçaneta, a ouviu destravar e abrir levemente para o seu lado.

Saiu receosa para o corredor. Não havia nada nem ninguém. Nenhum vestígio de que aquela noite foi real.

Desceu para a sala. Ninguém.

Procurou por Luiza e Julieta por toda a casa. Nem sinal das duas. Pegou o celular, nenhuma mensagem das duas. Abriu o grupo e o celular travou em mensagens antigas. Mas, mais estranho que isso, é que essas mensagens antigas eram dela e coisas que ela não lembrava de ter dito. Coisas sem sentido, enviadas numa madrugada. Lendo e relendo as mensagens, se lembrou que eram trechos de uma conversa que aconteceu.

Nem Luiza nem Julieta comentaram sobre as mensagens.

Sua cabeça doía tanto que ela pensou que desmaiaria a qualquer momento.

Pegou sua bolsa e pretendia sair dali logo, para pedir socorro ao pai ou ir a um pronto socorro, algo assim, porém algo prendeu sua atenção na escrivaninha. Seu diário estava aberto em duas páginas inteiramente escritas, e ela não se lembrava de ter escrito tanto desde que começou aquele caderno. Se aproximou para ler, largando a bolsa. Era sua letra e ela narrava acontecimentos sem sentido de dias que ela não lembrava. Eram como fragmentos em mosaico, sem ligação. Contava como encontrou o diário da mãe e como Luiza e Julieta eram boas amigas, o que a mãe tinha escrito no diário e conversas com o pai, coisas que a avó disse para ela, coisas que ela tinha que fazer no estágio, aquelas mesmas mensagens que mandou no grupo transcritas ali também.

Folheou um pouco o caderno apesar da dor. Os outros dias pareciam um diário mais organizado, com informações que ela até se lembrava de ser escrito, mas como se escrever as tivesse guardado escondidas na memória. Sorriu com algumas coisas, suspirou, resolveu fazer alguma coisa com toda aquela dor — mais a psicológica que a real.

Trancou a casa e saiu. Não sabia bem para onde iria primeiro. Pensou em ir até a casa de Luiza, mas algo lhe disse que, se ela foi embora no meio da noite ou se, de alguma maneira, a ouviu gritando e não conseguiu fazer nada, ela não gostaria que Fernanda fosse atrás tão cedo. Atravessou a rua e foi para o outro ponto de ônibus.

Sua mente voou tão longe no caminho que só percebeu onde estava quando bateu na porta, então se lembrou que tinha a chave daquele lugar. Ali ainda era sua casa de alguma maneira.

Encontrou o pai na cozinha, tomando café da manhã mesmo que fosse quase hora do almoço — todo domingo era assim. Ele deve tê-la ouvido destrancar o portão logo depois de bater e sabia que era ela, então a esperou entrar.

— Filha, o que aconteceu? — Ele perguntou logo.

— O que? Por quê?

— Você tá horrível.

— O que cê sabe sobre aquela casa?

— Quê? Nada. Como assim?

— Como nada? Mamãe nunca contou nenhuma história sobre ela. Nada nunca aconteceu lá?

Ele deu de ombros.

— Não.

— Já tá doida igual a vó ficou lá — disse Augusta, entrando na cozinha.

Ela era silenciosa como um predador caçando. Fernanda já tinha perdido o costume de estar sempre alerta para ver se ela estava presente ou não. Ela podia ter ficado calada também, como sempre ficou, mas algo já estava realmente diferente.

— Ah, perdeu a vergonha de me ofender na frente do meu pai... por que sabe que ele não vai fazer nada? — Desafiou.

A avó riu.

O pai a repreendeu — mas nada como na noite anterior. Era o "Filha..." em tom de súplica de sempre.

— Não acha que essa brincadeira de casinha já deu? — Perguntou a avó.

Fernanda só fez uma careta e se levantou.

— Eu acho — o pai disse.

Estava claramente mais nervoso. Depois os outros ainda diziam que a presença de Augusta não mudava o ambiente.

Fernanda entrou no seu quarto — ou o que restava dele — para tomar um banho, mas não havia mais chave ali. Porém estava tão cansada que só deixou a bolsa no chão e entrou no banheiro. Ficou o quanto aguentou de pé debaixo do chuveiro. Vestiu uma das roupas que deixou para trás para dar como doação — que claramente o pai não se mexeu para fazer, como disse que faria — e foi se deitar no sofá.

Dormiu.

Acordou cansada como nunca porque coisas demais estavam acontecendo ultimamente, sem saber quanto tempo depois de se deitar. Seu pai estava com a TV ligada no volume mínimo.

— Deixei almoço pra você — ele disse.

Ela se levantou, esquentou a comida e comeu na cozinha. Não quis ir se sentar na sala. Estava de mal humor, não queria estar perto de ninguém. Talvez uma ou duas pessoas no mundo, mortas, e uma ou duas que estavam vivas, mas elas também não estavam ali.

Parou ao lado do sofá quando terminou.

— Por que que ela já foi? — Perguntou ao pai.

— Não sei.

Aquilo não a convenceu. Augusta nunca ia embora cedo assim. Ela tomava café ali, almoçava, cochilava, passava o dia e jantava ali.

Fernanda foi até o quarto para pegar sua mochila e ir embora. Aquele ar de estar de volta na presença de avó em um lugar onde faltava Felícia não estava lhe fazendo bem, estava piorando o que já estava horrível.

Porém, estranhou como sua mochila estava jogada no chão. Ela tinha certeza que a tinha deixado em outra posição. A levantou e, logo, percebeu o que faltava: o barulho que o molho de chaves fazia no bolso da frente. Abriu o bolso e elas não estavam ali.

Correu até a sala.

— Ela roubou minhas chaves! Por isso já foi embora — disse exaltada e já foi saindo.

— Onde você vai? — O pai saiu atrás dela.

Sequer conseguiu trancar a porta nem o portão para alcançar a filha.

— Pegar minhas chaves de volta — ela respondeu sem olhar para trás. — Vou lá na casa dela.

— Você sabe que ela não gosta que ninguém vai na casa dela.

— Mas ela vive na nossa! — Se virou para trás para encarar o pai. — Você não acha isso estranho ou errado?

Ele deu de ombros.

Ela continuou seu caminho.

A casa de Augusta não ficava mais que três quarteirões dali e era um mistério para Fernanda. Ela quase se lembrava mais de estar na casa de Flor quando era pequena do que ter estado na casa de Augusta. Ela nunca gostou de receber ninguém ali. Se algum parente vinha visitá-la, ela levava para a casa do filho.

Fernanda bateu no portão. Ninguém. Bateu mais uma e outra vez. Nada.

— Vamos, deixa disso — insistiu o pai.

Ela quase rosnou para ele. Ele suspirou e tirou as chaves da própria casa do bolso. Procurou, tentou algumas e, na terceira chave, o portão destrancou.

Histórias de terror podem ter castelos onde, do muro para fora, o mundo é normal, mas do muro para dentro a atmosfera muda como se fosse outro planeta. O céu muda de cor, o ar pesa de verdade. Fica difícil enxergar 100% ou respirar normalmente. Foi essa a sensação ao passar o portão da casa de Augusta. Havia tanta coisa no pequeno espaço entre o portão e a porta da frente que os dois quase se perderam ali. Eram caixas de feira cheias de coisas, restos de armários de madeira e aço, bicicletas, caixas de papelão inteiras ou já desmanchando, em pedaços espalhados, restos de sacos de ração de cão e gato — mesmo que Augusta não tivesse nenhum animal de estimação ou sequer alimentasse os da rua —, e muitas outras coisas.

A porta da sala estava destrancada. Ao entrar no cômodo o ambiente não era muito diferente. Coisas, coisas e mais coisas. Havia um cheiro de acúmulo, mas ao menos não de coisas estragadas ou mortas, porque foi logo no que eles pensaram, que acumuladores às vezes acumulam coisas orgânicas também.

Mas ali havia jornais velhos, livros, revistas, caixas de papelão com utensílios de cozinha, três ou quatro aparelhos de televisão velhos e provavelmente estragados, assim como rádios e até um computador bem antigo. As coisas estavam pelo chão, sobre bancos e cadeiras em quantidade exagerada que aparentemente também eram parte do acúmulo.

Na cozinha, o mesmo. Nos quartos, na área de lavar. Até no banheiro. Ainda cabia coisa ali dentro, mas a casa já estava cheia, abafada, sem entrar luz pelas janelas ou circular ar direito. Já era insalubre viver ali.

— Desde quando ela vive assim? — Perguntou Fernanda.

— Não sei. Nunca foi assim, não... não enquanto eu morava com eles. Ou enquanto meu pai tava vivo.

— Você também não vem aqui nunca, né?

Ele negou com a cabeça.

Fernanda procurou por todos os cantos que conseguiu olhar. Nada do seu chaveiro. Abriu até o guarda-roupa de Augusta. Subiu num móvel e olhou em cima. Caixas, coisas. Mas, antes de descer, uma das caixas lhe chamou a atenção. Não parecia simples como as outras de madeira que estavam ali. A tirou de trás das outras e viu que essa tinha um cadeado, era um pouco mais ornamentada e, num cantinho da tampa, havia algo escrito.

"Felícia".

— O que? — Perguntou sozinha.

Seu pai, que estava em outro cômodo, foi até ali.

— Quê? — Perguntou.

Ela desceu no móvel, já quase chorando sem saber se de confusão, emoção ou poeira.

— Uma caixa da mamãe? — Mostrou para ele.

— Achei que ela tinha se livrado dessa caixa um tempo antes de morrer. Nunca mais tinha visto. Também não sei o que tinha dentro.

— Duvido que tenha algum presente pra sua mãe aqui... — Tentou puxar o cadeado, mas estava firme. — Lembra da chave? — Ele negou. — Não adianta procurar chave nenhuma nessa casa maldita — choramingou, nervosa.

— Melhor a gente ir embora. Ela deve chegar qualquer hora.

— Chegar? Duvido que ela esteja em algum lugar. A não ser...

— O que?

— Ela deve tá lá na casa velha. Por isso pegou a chave e sumiu e não tá aqui!

Fernanda praticamente saiu correndo, levando a caixa de Felícia consigo. Ficou a cargo do pai, mais uma vez, correr atrás dela, tentando fechar portas e trancar o portão.

— Tá indo onde? — Ele gritou para ela na rua, mais uma vez.

— Pra casa. Ela deve ter ido lá fazer alguma coisa.

— Vai de quê?

— Dê ônibus, uai.

— Não... Me espera que te levo de carro. Mas tem que me esperar.

Ela suspirou, mas parou e esperou. Ainda que ele não ajudasse muito, não se esforçava para atrapalhar também. Talvez agora visse que a mãe não era tão inocente assim e ficasse do lado da filha.

Fernanda estava nervosa como se sentisse que algo aconteceria, mas o pai não parecia ter pressa no trânsito. Foi tranquilo. A caixa no colo, o nome da mãe escrito em um entalhe que parecia feito por ela mesma, tudo a deixava mais ansiosa ainda. Abriria aquilo nem que fosse preciso quebrar a fechadura ou a caixa inteira.

E queria saber por que estava escondida esse tempo todo.

No caminho, tentou falar com Luiza para: 1. Saber se ela poderia ir até a casa com a chave dela caso Augusta não estivesse ali e estivesse só sumido com a chave; 2. Usar isso como desculpa para saber se estava tudo bem com ela e entre as duas e porque ela e Julieta foram embora durante a noite. Porém, Luiza não atendeu sua ligação. Não insistiu.

Quando resolveu mandar uma mensagem para Julieta para perguntar sobre isso, viu que chegavam na casa e acabou não mandando.

Enquanto estacionava, o pai resolveu conversar.

— Você não disse se está bem...

— A resposta é: não sei. Só preciso entrar — disse e desceu do carro quase antes mesmo de ele estacionar direito.

Entrou correndo na casa. Por sorte o portão estava destrancado.

Encontrou com a avó voltando da cozinha com fósforos na mão.

— Você não vai me impedir — Augusta disse logo.

O pai chegou logo atrás.

Augusta correu para a sala. Lá estavam jogados, sobre a mesinha de centro, livros de Felícia, cadernos de Fernanda e roupas das duas.

— Não! — Fernanda gritou e correu atrás da avó quando percebeu.

— Fernanda! — Gritou o pai.

Ela deixou a caixa da mãe no chão e tentou tirar os fósforos das mãos da avó, mas ela não soltava e Fernanda não queria machucá-la.

— Me dá! — Tentou ganhar no grito.

— Não! Matias, olha isso!

— Fernanda! — Ele tentou separá-la da avó, mas percebeu que machucaria as duas se continuasse, porque estavam muito empenhadas no que faziam. — Mãe, o que você ia fazer?

— Solta... — pediu Fernanda fazendo um pouco mais de força.

— Essa casa tem que ser derrubada! — Disse Augusta. — Casa de bruxa continua fazendo bruxas.

— Mãe! — Ele gritou.

— Você não concorda comigo que isso tá estragando a Fernanda mais do que já é estragada?

— Mas botar fogo na casa não!

Nesse momento os dedos dela escorregaram e Fernanda conseguiu pegar a caixa de fósforos. Mas não foi por falta de força de Augusta ou porque o filho não ficou do lado dela dessa vez. Ela viu algo atrás de Fernanda, atrás dele. Viu alguém.

Sua cara de espanto deixou isso logo claro para os outros dois. Ela colocou a mão no peito e dava passos para trás, apavorada. Se tivesse coração fraco, seriam seus últimos suspiros. Mas não tinha.

Fernanda e o pai olharam para onde Augusta olhava assustada. E eles viram também. Pálida como um defunto, velha como morreu, triste como sempre foi, o vestido cinza, o lenço branco na mão; menos distante do que Fernanda viu nos últimos tempos e mais aferrada a um objetivo: defender a neta e a casa. Sua casa.

E não precisou dizer nada para isso. Somente encarou Augusta, fixa nos olhos, e certo momento abriu a boca, mostrando os dentes sujos de terra, fazendo um barulho ameaçador, como se fosse um gato.

Augusta gritou e caiu sentada no sofá, a mão direita ainda sobre o peito. Matias precisou se forçar a descongelar e deixar o medo para lá — ou talvez usar isso para ignorar o medo —, e ajudar a mãe.

Fernanda estava travada também, mas pela adrenalina de precisar praticamente brigar fisicamente com uma avó e ser defendida pelo fantasma da outra avó.

— Vou levar ela em casa — ele disse para Fernanda, sem olhar muito para ela, porque na mesma direção estava Flor ainda raivosa.

Ele ajudou Augusta a se levantar e sair da casa, quase precisando carregá-la, porque além da pressão ter caído ela ainda tampava os olhos para não ver Flor outra vez — e chorava, quase gritava de desespero. Não fosse a vontade de sair logo dali, ficaria desmontada naquele sofá.

Fernanda ficou sozinha com Flor, que parou de fazer aquele barulho logo que Augusta saiu pela porta e voltou a ser a Flor que Fernanda conheceu nos últimos dias. O olhar raivoso de Flor também se transformou, voltando ao olhar triste de antes.

— Tudo bem, vovó? — Fernanda perguntou, mesmo sem certeza que ela responderia.

— Filha? Tudo bem, minha filha — disse, com a mesma melancolia, voltando a segurar o lenço com as duas mãos e andar triste e de olhar vago como quem lamenta.

Logo, sumiu.

Mas Fernanda sabia que Flor sabia o que respondia.

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