17 - É o diabo que nos move

É o Diabo que nos move e até nos manuseia!

Em tudo o que repugna uma joia encontramos,

Dia após dia, para o Inferno caminhamos,

Sem medo algum dentro da treva que nauseia.

Ao leitor - Charles Baudelaire



11 de abril, sábado

Silêncio.

Silêncio no banheiro, onde Fernanda estava sozinha.

Silêncio no escritório, onde Luiza estava sozinha.

Silêncio na sala, onde Julieta estava sozinha.

Em algum momento a energia de toda a casa acabou.

Nenhuma delas conseguia encontrar uma vela.

Fernanda estava trancada onde não tinha vela.

Luiza estava trancada onde não tinha vela.

Julieta estava na escuridão total, sem conseguir procurar uma vela.

Silêncio absoluto na sala.

Mesmo que Fernanda batesse na porta do banheiro.

Mesmo que Luiza gritasse no escritório.

Mesmo que o medo delas fosse barulhento, ninguém podia ouvi-las.

E Julieta não podia ouvir nem a si mesma.

Silêncio absoluto em Julieta.

Vazio.

"Vazio, vazio, vazio" - a cabeça dela repetia. Tentava falar em voz alta também, mas não conseguia. Talvez seus lábios se mexessem, mas não havia voz. Não havia respiração, apenas músculos se mexendo e a sensação de ainda estar viva, mas vazia de todo o resto.

E ainda assim parecia falsa a sensação de vida.

"Será que é assim que é morrer..." - ela pensava.

Era, mais uma vez, um vazio de não existência.

E não havia com quem comentar. Não havia sequer uma aparição para rir do pensamento bobo.

Ela conseguiu rir de si mesma, e sua risada ecoou pelo nada, mas ela não soube se ecoou mesmo ou se já foi coisa da sua cabeça. Na verdade, não sabia o quanto aquilo era coisa da sua cabeça.

"Onde elas estão?" - se perguntou.

Tentou gritar mais uma vez, mas ainda não ouvia sua voz.

"Porque a risada e a voz não?"

"Por quê? Por quê? Por quê?"

Chorou.

"Ninguém pode te ouvir" - ela se ouvia na sua cabeça. Era sua voz, mas não pareciam pensamentos. Era sua voz.

Se sentou no chão, abraçou os joelhos e esperou. Chorou e esperou que aquilo acabasse, de um jeito ou de outro. Poderia tentar ser racional se não fosse estranho demais.

"Você está sozinha"

"Vazio, vazio, vazio"

"Acha que elas ligam pra você?"

"Onde elas estão?"

"Por favor, só não fique frio"

Silêncio.

Silêncio.

"Sozinha" - sussurrava agora.

Ela mexia os lábios. Primeiro, não saiu nada. Tudo estava na sua cabeça. Depois, saia com segundos de atraso, como se sua boca estivesse a quilômetros de distância dela, como um trovão que chega depois do raio.

Um sussurro podia ser assustador em certas circunstâncias. Ela estava assustada com a própria voz.

"Para de falar" - pediu para si mesma.

Mas não mandava mais na própria boca. Nem na própria mente.

"Sozinha" - continuou falando.

"Sozinha, sozinha, sozinha"

"Sempre foi e sempre será"

"Você viu as duas? Você nunca vai ter isso"

"Você é quebrada"

"A Paloma não gosta mesmo de você"

"Você nunca vai gostar dela"

Sua voz a fazia se sentir sozinha.

Ela estava sozinha com sua própria voz.


-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-


Ela é bonita

seus cabelos muito negros


Ela ouviu.

- Não... - disse, cansada.

Já estava assustada por Julieta não ter voltado, por Fernanda ter falado com ela daquele jeito, por estar sozinha ali naquele escritório... Agora, era como se o tio estivesse ali, em algum canto, zombando dela.


E o seu corpo faz meu corpo delirar


- Como assim? - Choramingou.

Era impossível o tio estar ali.

Então a lâmpada piscou uma vez. Luiza olhou para cima e ela foi se apagando gradativamente. Não fez barulho de queimado, só apagou. Luiza soltou um suspiro vindo depois de um arrepio. Tentou abrir a porta outra vez, bateu, chamou, mas nenhum barulho parecia vir do lado de fora. Só aquela música irritante dentro da sua cabeça.


O seu olhar desperta em mim uma vontade

De enlouquecer, de me perder, de me entregar


Agora, ao invés da voz do tio, era Sidney Magal.


Quando ela dança todo mundo se agita

E o povo grita o seu nome sem parar


Agora um tio que ela não via havia um tempo, que não cantava tão bem.


É a cigana Sandra Rosa Madalena


A voz de seu pai.

Ela perdeu o ar por um momento.

Não via o pai havia anos também.

Mas antes ele também se divertia com o nome dela, ela sabia.


É a mulher com quem eu vivo a sonhar


Ele cantou mais uma vez.

Ela colocava as mãos nos ouvidos, mas era em vão. Olhava ao redor, tentava entender o que acontecia, mas nada mais acontecia além da música ecoando nos seus ouvidos com vozes diferentes.


Quero vê-la sorrir, quero vê-la cantar

Quero ver o seu corpo dançar sem parar


Cantaram em coro.

Ela se lembrou da vez que seus colegas de escola ensaiaram e cantaram para ela quando descobriram por que os professores se divertiam tanto com seu nome. Mas não foi uma homenagem. Ela era uma piada.


Quero vê-la sorrir, quero vê-la cantar

Quero ver o seu corpo dançar sem parar


O coro soou mais alto ainda e era tão desafinado quanto foi aquele nessa época. Era horrível e soava cada vez mais alto. No meio das vozes infantis ela conseguia identificar as adultas que lhe cantaram durante toda a vida também. Eles tinham se unido ao coro.


Dentro de mim mantenho acesa uma chama

Que se inflama se ela está perto de mim

Queria ser todas as coisas que ela gosta

Queria ser o seu princípio e ser seu fim


- Por favor! - Pediu, mas ninguém podia ouvi-la.

Nem ela conseguia se ouvir.


Ela é bonita

seus cabelos muito negros


Começou outra vez.

No impulso, tentou sair do escritório outra vez, se jogando contra a porta ao girar a maçaneta. Mas dessa vez a porta abriu e ela tropeçou para o corredor. A casa estava igualmente escura. Não havia notebook ligado, nem Julieta, nem Fernanda. Pouca lua entrava pelas janelas, como se cobertas por algo.


O seu olhar desperta em mim uma vontade

De enlouquecer, de me perder, de me entregar


Ainda cantavam em sua cabeça. Ainda muito alto.

Ela procurou pela sala alguém, qualquer coisa. Nada, ninguém. Foi até a cozinha. Olhou nos fundos, tentou sair para o quintal, mas as portas do fundo e da frente estavam trancadas. Não encontrou nem um celular para fazer luz.


É a cigana Sandra Rosa Madalena


Subiu ao andar de cima.


É a cigana Sandra Rosa Madalena


Ninguém nos quartos nem nos banheiros.


É a cigana Sandra Rosa Madalena


Desceu para a sala outra vez.


Ela é bonita

seus cabelos muito negros


Luiza chorava e ainda tentava tampar os ouvidos para abafar o som, mas ele estava dentro de sua cabeça. Ela se sentou no sofá e abraçou os joelhos, chorando, tentando abafar o som agora com seu choro.

- Por que isso tinha que ser tão chato? Por que um nome tão estranho?

Ela estava sozinha e cheia de vozes na cabeça.


-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-


Era um pouco desesperador para Fernanda pensar que aquilo era algum tipo de assombro que ia passar logo, que ela tinha que esperar. Ficou mal-acostumada com a presença da avó ali, com os sonhos com a bailarina e a vontade de ver a mãe. Ficou mal-acostumada com o sobrenatural que não a assustava que não conseguia identificar o que era aquilo que pretendia enlouquecê-la por um momento.

Depois de um longo momento de silêncio total, quando resolveu que bater na porta e gritar não adiantaria, Fernanda se sentou no vaso e tentou, mais uma vez, pensar no que fazer. Estava quase decidindo enrolar uma toalha na mão e tentar quebrar a janela, mesmo que fosse pequena para ela passar sem se machucar e, ainda por cima, no segundo andar, quando começou a ouvir algo.

Primeiro, era incompreensível, apenas um ruído vindo de qualquer lugar. Depois foi aumentando e começou a parecer uma voz. Uma voz fazendo uma melodia. Uma voz infantil fazendo uma melodia e depois cantando.


Terezinha de Jesus


Fernanda prestou atenção.

Felícia gostava muito dessa música quando criança, ela se lembrou logo.


Deu uma queda foi ao chão


- Mãe? - Chamou.

A voz vinha do lado de fora do banheiro.


Acudiram três cavalheiros


Era uma voz infantil, porém, mesmo assim, Fernanda se emocionou como se fosse a voz da mãe lhe cantando.


Todos de chapéu na mão


Ouviu. Esperou.


O primeiro foi seu pai

O segundo seu irmão

O terceiro foi aquele

Que a Tereza deu a mão


A voz já estava logo atrás da porta. Fernanda podia ver uma sombra por baixo.

- Você pode entrar?


Da laranja quer um gomo

Do limão quer um pedaço


Esperou. A música não continuou, mas a sombra ainda estava ali.

- Mãe?

Então, uma risada.

Não era uma risada infantil, era diferente do canto.

Uma risada alta.

E rouca. Velha. Conhecida.

- Ela não quer saber de você - disse a voz da risada.

Má.

Fernanda queria perguntar se era mesmo ela, mas não queria mesmo saber. Era sua voz e ela sabia qual era seu objetivo. Deixa-la triste sempre foi seu objetivo.

- Mentira - retrucou em uma voz trêmula.

Do lado de fora, a voz da avó Augusta riu.

- Você não sabe? Não leu os segredos dela? - Provocou.


"Antes eu procriasse uma serpe infernal!

Do que ter dado vida a um disforme aleijão!

Maldita seja a noite em que o prazer carnal

Fecundou no meu ventre a minha expiação!"


Recitou para Fernanda.

- Isso não tem nada a ver com ela - respondeu, nervosa.

Augusta continuou.


"Já que fui a mulher destinada, Senhor,

A tornar infeliz quem a si me ligou,

E não posso atirar ao fogo vingador

O fatal embrião que meu sangue gerou."


- Para, já falei.

- Ela não gosta de poesia? Pois bem... essa era uma das suas preferidas.

- Não era!

- É claro que era. O que você sabe sobre ela?

- O que VOCÊ sabe sobre ela? - Esbravejou, se colocando de pé. Gritou com a porta. - Você nunca nem gostou dela. Nunca se interessou. Nem quando ela estava doente.

- Fernanda! - Repreendeu uma voz masculina do lado de fora. Era seu pai. - Não fala assim com a sua vó.

Fernanda riu, já cansada. Aquilo fosse realidade ou não, conseguiria o que queria, porque era real demais. Era a representação de tudo o que a deixava mais para baixo.

- Sempre isso... - falou baixo, se sentando outra vez.

- Você não tem um pingo de respeito - ele disse em um tom que nunca usou com ela. - Nunca teve. Sempre usando essa desculpa... - parou.

- Desculpa? Então perder a mãe é desculpa? E se você perdesse sua mãe? - Se levantou outra vez.

- Me respeita. Você nunca conseguiu aguentar feito adulta a perda da sua mãe e fica descontando na gente.

- Feito adulta? Eu era uma criança!

- Você é uma decepção! - Os dois falaram juntos do lado de lá.

- Eu tive que aguentar tudo sozinho - ele disse. - E tô como hoje? E você?

Fernanda ria de nervoso. Chorava de nervoso.

O pai e a avó começaram a falar juntos do outro lado. Repetiram como ela era uma decepção, uma criança, mimada e errada, sem respeito, sem força, sem futuro. Enquanto isso, a voz infantil voltou a cantar Teresinha de Jesus ao lado deles. E Fernanda ria e chorava. Sentia o calor de nervoso subir no corpo, andava de um lado para o outro. Só queria sair dali.

O ar parecia ficar rarefeito.

Aquilo pareceu durar horas.

Ela chorou. Abaixou a cabeça e chorou. Chorou até o peito doer, a cabeça doer.

Logo, em algum momento daquele caos, começou a ouvir outro choro junto do seu, mais próximo dela que os gritos e a música lá fora. Era um lamento conhecido e ela se sentiu levemente aliviada antes mesmo de levantar a cabeça e vê-la ali. Não estar sozinha era um alívio.

- Vovó - Fernanda choramingou.

Mas a avó só chorava. Lágrimas escorriam do rosto fantasmagórico, e ela não respondeu. Não parecia estar muito ali.

- Felícia... - falou, chorando, após algum tempo. Não a chamava, mas falava dela. Apesar do barulho lá fora, Fernanda colocou sua atenção ali. - Sempre foi... sonhadora. Sonhadora demais.

Parou um momento para apenas chorar e secar o rosto. Estava de pé, olhando o nada enquanto falava.

- Sonhadora - repetiu. - Sonhadora, boba. Eu sempre disse. Boba. Sonhadora.

Flor se repetia e chorava. Porém, dessa vez seu choro parecia diferente para Fernanda. Não era o mesmo lamento das noites em que a ouviu, nem da noite em que choraram juntas. O olhar para o nada de Flor na verdade parecia olhar algo. Parecia ver algo. Fernanda via alguma coisa naquele nada ali.

Era como se Flor chorasse o velório da própria filha. Tinha a dor da perda ali.

Fernanda chorou mais do que já chorava.

Chorou pelos gritos lá fora e a música preferida da mãe sendo cantada. Chorou pela avó chorando. Chorou pela dor que via nos olhos dela.

Chorou ao ouvir a avó cantar, de uma maneira muito expressiva e triste, um dos seus trechos preferidos dos poemas de Rosario Castellanos.


Aquí me quedaré llorando como el fruto

derribado a pedradas

de la copa del árbol y su sustento.


Ya nunca podré amar ni aun en el sueño

porque una voz insobornable grita

y su grito vacía mis entrañas:

"¡El amor es también polvo y ceniza!"


Chorou de dor no peito. Chorou sem ar.

Encostou a cabeça na parede gelada e chorou.

Lá fora, a outra avó ria. Tinha parado de falar e ria.

- Neta de bruxa! - Augusta gritou, raivosa, mas ria entre as frases. - Filha de bruxa! Bruxa! Sua avó morreu cedo. Sua mãe morreu mais cedo ainda. E você, não acha que vai? Quando acha que vai? Bruxas têm que morrer. Elas sempre morrem. O que você pode fazer contra isso?

Enquanto ela falava, o coração de Fernanda se partia cada vez mais. Flor continuava cantando e chorando, seu pai continuava dizendo o quanto ela era errada e uma decepção. A criança continuava cantando.

Aquele era o caos de Fernanda.

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