15 - Rosario eres tú

Meu nome não existe. O que existe é um retrato falsificado de um retrato de outro retrato meu.

Clarice Lispector



8 de abril, quarta-feira

A quarta-feira chegou para Fernanda como se fosse outro domingo, depois de um domingo que veio depois do domingo de verdade. Ela não foi à aula naqueles três dias, não respondia mensagens, não foi ao clube do livro. Ela entrou naquele diário como se ele fosse um portal para um lugar que ela achou que já era conhecido demais, mas descobriu que não era tão assim. Queria explorá-lo todo de uma vez. E outra e outra vez.

Era o mundo da mente da mãe.

Mas Luiza não sabia disso. Imaginou que podia ser algo relacionado, pois sabia do diário, mas não podia imaginar como estava aquela casa nem aquela garota. Julieta menos ainda. Mesmo prestando mais atenção às conversas no grupo das três, ela ainda dormia mal, ainda estava bastante desligada do resto do mundo. Tinha certeza que Romeu enviaria um e-mail mais tarde naquele dia.

Na saída do clube, Luiza segurou Julieta no corredor por um momento.

— Tô preocupada com ela — disse.

— Por quê?

— Ela não responde mais mensagens.

— Quando foi a última vez?

— Quando falou do diário da mãe. No domingo.

— Muito tempo.

— E se... eu fosse lá hoje?

— Acha mesmo que é uma boa ideia? — Julieta respondeu sem saber se era o bichinho do ciúme mordendo ou se era o da sensatez.

— Ela me deu uma cópia da chave pra eu ir escrever quando quisesse, então...

— É um bom pretexto... — Disse e esperou que Luiza dissesse algo, mas ela só fez cara de pidona. — Quer que eu vou com você? — Perguntou surpresa.

Luiza assentiu.

— Sei que você não anda bem também, mas...

— Meu caso é difícil de ajudar, já o dela... Se não estiver bem mesmo...

— Ela vai gostar de ver nós duas.

Julieta só concordou e as duas foram pegar o ônibus.

— Será mesmo? — Julieta perguntou certo momento, do nada, quando já estavam no ônibus.

Estavam em silêncio desde que saíram da universidade.

— O quê?

— Que ela vai gostar de... — não terminou.

— Nos ver?

— Não, me ver. Você ela vai, com certeza.

— Por que eu e você não?

— Porque... não sei. Vocês se conheceram primeiro.

— Isso não tem nada a ver. Você também estava lá nos momentos importantes. Naquela sexta-feira 13...

— Não estava no sábado passado — disse em voz baixa e se arrependeu em seguida.

Mas Luiza tinha escutado.

— Desculpa não te chamar. Eu tinha pisado na bola com ela naquela segunda. Queria me desculpar, perguntei no impulso se podia ir lá quando não aguentei mais. E achei que você ir querer descansar no final de semana.

— Hum. Acho que ia mesmo. Mas o que aconteceu na segunda?

— Eu cheguei na casa antes dela e fui mexer na mesa pra ver aquelas páginas com frases e símbolos. Depois peguei um caderno da capa bonita, que parecia um livro. Na primeira página tinha o nome dela escrito, aí como se fosse um diário, aí fechei. Ela só me viu fechando, eu acho. Pareceu chateada como se achasse que eu tinha fuçado o diário dela. Fui embora, ela falou pouco comigo durante a semana e no sábado perguntei se podia ir lá. Acabamos encontrando as páginas que faltavam e uns desenhos da casa, que a mãe dela fez. Ela chorou bastante. Chorou até dormir. Aí eu fui embora.

— Entendi. Não quis parecer... — deu de ombros outra vez.

— Com ciúmes? — Luiza concluiu e Julieta deu de ombros. — Bobagem — disse e abraçou o braço de Julieta, encostando sua cabeça no ombro dela.

— É que às vezes parece que sou esquecida na narrativa...

Luiza negou mais uma vez.

— Ter mais de um protagonista às vezes é assim mesmo — disse Luiza. — Algumas histórias são ocultas também, né? Você tá com insônia e... é isso?

Julieta ponderou. Ela realmente estava escondendo o que acontecia com ela. Como poderia aparecer assim?

— Tem razão... É que ser coadjuvante sempre pareceu mais... confortável. Até agora.

— Mas não é, porque quem tá escrevendo a história não quer. É protagonista.

Julieta riu.

— Tá falando de Deus?

Luiza apertou os olhos.

— Talvez. Depende. Você acredita em Deus? — Perguntou pouco séria e as duas riram.

O assunto mudou para religião e acabou em o que era blasfêmia e o que não era, se Deus realmente não tinha senso de humor.

Ao chegar na casa, as duas encontraram uma estranha que não parecia em nada a Fernanda que conheciam. Todas as luzes estavam apagadas, exceto o abajur ao lado da cama. Elas entraram devagar na sala. Fernanda estava sentada em um canto da cama, abraçando os joelhos, e não se mexeu com a presença das duas.

Elas se aproximaram. Por toda a cama estavam espalhados vestidos, livros, os desenhos da casa, os objetos que eram de Felícia e seu diário. Lágrimas desciam pelo rosto de Fernanda. Pela pouca quantidade de louça na mesa e no chão, e pela sua aparência, Luiza deduziu que ela não estava comendo direito.

— Fer... — disse Luiza, se sentando na beirada da cama, perto de Fernanda.

No fundo ainda tinha medo de estar invadindo, incomodando.

— Está tudo bem? — Julieta perguntou, de pé.

Fernanda deitou a cabeça de lado nos joelhos, olhando para as duas. Não disse nada com palavras, mas os olhos diziam com lágrimas.

— A gente pode preparar algo pra você comer — disse Luiza.

Fernanda assentiu de leve.

— Vou lá olhar o que podemos fazer — disse Julieta, já saindo.

Julieta queria sempre ser muito prestativa para não ficar de lado, mesmo depois da conversa sobre protagonismo que teve com Luiza no ônibus. Antes que Luiza pudesse se levantar também para ajudar, Fernanda desceu um dos braços e pegou a mão dela sobre a cama.

— Pode me ajudar? — Pediu com uma voz fraca de choro. Luiza assentiu e a ajudou a se levantar. — Banheiro.

Então Luiza a ajudou a subir as escadas e chegar no banheiro.

Fernanda começou a tirar o vestido que usava, de costas para Luiza, mas com alguma dificuldade. Luiza precisou ajudá-la. Quando a viu no sábado ela já não parecia bem, tantos dias depois estava pior ainda.

— Pode... pegar uma roupa pra mim? — Fernanda perguntou ainda de costas para Luiza. — Lá em baixo.

— Claro — respondeu e desceu.

No meio da meia bagunça que estava a sala, pegou algo quente e confortável. Ainda que fosse outono, a noite já estava fria. Passou rapidamente pela cozinha. Julieta estava parada mexendo no celular.

— Não tem nada na geladeira, nos armários. Tô pedindo comida. Macarrão? — Julieta disse e Luiza assentiu. — Depois a gente tem que fazer compras pra ela.

— Beleza. Ela está no banho. Já desço pra gente dar uma geral na sala.

Luiza voltou ao banheiro com a roupa. Fernanda estava de costas, debaixo do chuveiro, parada, abraçando a si mesma.

— Tudo bem? — Luiza perguntou, hesitante.

Percebeu que perguntava muito isso.

Fernanda assentiu.

— Já vou — respondeu. Luiza ia saindo. — Se quiser... — Se virou um pouco para olhar Luiza. — ver o diário da minha mãe. Ela não se importaria.

Luiza assentiu e saiu.

Julieta tinha acendido a lâmpada da sala e já estava arrumando algumas roupas no lugar. Luiza foi colocar as coisas da cama em cima da mesa para o caso de Fernanda querer se deitar. Quando pegou o diário de Felícia na mão, foi como se eletricidade passasse dele para seus dedos, mas não era uma eletricidade de Felícia. Para ela, era de Fernanda mesmo. Ela o encarou por um momento. Julieta se aproximou.

— É ele?

Luiza assentiu.

— Ela disse que eu podia ler se quisesse, mas não me sinto à vontade.

O coração estava disparado.

Ela deu somente uma folheada nele e depois voltou a ajudar Julieta. Ficou com uma sensação que não conseguia distinguir sobre o que era. Pareciam coisas demais ao mesmo tempo.

Fernanda desceu. Se sentaram as três nos sofás.

— A comida tá chegando — disse Julieta.

Elas ficaram em silêncio por um momento.

— Que dia é hoje? — Fernanda perguntou.

— Quarta — respondeu Luiza.

— E quando encontrei o diário?

— No domingo.

Fernanda pensou por um momento.

— Será que... alguém pode... — mostrou a escova de cabelo. Luiza se sentou ao seu lado, ela se virou um pouco. Luiza penteava seu cabelo enquanto ela falava. — Estava pensando, no banho... Parece que esse tempo todo, esses dias foram como algumas horas e ao mesmo tempo uma eternidade. Como um buraco negro que me sugou. Eu acho que... — lágrimas escorriam novamente. — Quando ela morreu... eu não vivi um luto de verdade. Minha avó não deixou. Ela me levou pra um quarto antes do velório, me segurou pelo braço... — Parou, respirou fundo. Luiza lhe deu a mão. Julieta hesitou em se aproximar, então Fernanda estendeu a mão para ela se sentar do outro lado. Ela foi. — Ela me segurou e disse que minha mãe odiaria me ver fazendo escândalo e chorando do jeito que eu tava. Disse que não ia me deixar ficar perto se eu continuasse assim, que eu era neta de quem era e isso não tinha como mudar, mas que ali eu não ia estragar tudo. Disse que todo mundo ia falar de mim e que eu ia deixar meu pai... — perdeu o fôlego mais uma vez. — Ela disse que eu ia deixar meu pai triste, como se já não fosse suficiente... Entendem? Ela quis dizer que minha mãe morreu por minha culpa e que eu não tinha o direito de ficar triste. Então enterrei tudo num buraco fundo no peito que parece que se abriu agora. Cada coisinha nova que encontrei da minha mãe foi abrindo mais e mais esse buraco, e o diário... Tudo o que ela escreveu desde criança até o dia que se casou...

— Depois não tem mais nada? — Perguntou Luiza.

Fernanda negou.

Ela chorou por mais um momento.

— Ler tudo foi como... o corte final no buraco, e tudo veio como uma hemorragia que eu não consegui conter. Se vocês não tivessem aparecido pra me puxar de volta... porque... Por mais que às vezes eu tivesse ciente do que tava acontecendo, eu não tinha força pra sair disso. — Chorou por um momento e recebeu abraços. Secou um pouco os olhos e o nariz.

— Tá tudo bem agora — Luiza disse baixo.

Fernanda assentiu.

— Como ela era? — Perguntou Julieta.

Até então ela e Luiza não quiseram perguntar muito para não deixar Fernanda mal.

— Ah... — fungou enquanto pensava. — Ela era professora de português e... vocês já sabem que gostava muito de ler. Mas eu não sabia que gostava de escrever, então... Pensando bem, ela sempre parecia mesmo um pouco fechada, mesmo que sempre tentando sorrir, sabe? Até nos últimos anos... A doença foi matando ela aos poucos e a gente assistindo aquilo. E ela ainda tentava sempre sorrir quando eu tava junto. Minha vó é que falava "sua mãe não tá bem"...

Fernanda engasgou com o choro e Luiza a abraçou forte.

— Nada a ver essa sua vó... — comentou Julieta, sem saber bem o que falar.

— Eu só queria que a morte dela tivesse sido fantástica como do José Arcádio Buendía...

Julieta hesitou, mas não resistiu em falar.

— Não entendi a referência...

Fernanda deu uma risada leve.

— Em Cem anos de solidão, do Gabriel García Márquez. O personagem não percebeu que morreu porque estava louco. E quando morreu, choveram florzinhas amarelas por todo o povoado.

— Legal...

— Na morte fantástica da minha mãe, choveriam papeizinhos, com trechos de poemas delas e os preferidos de outros poetas, todos escritos com a letra dela.

Luiza e Julieta deixaram lágrimas escapar.

Fernanda respirou fundo, se recompondo.

— Falando em vó, ou mudando de assunto... eu não queria contar por que... é algo estranho. Mas... vocês viram. E... Depois daquela noite, do que vimos... Eu descobri que aquela mulher que vimos andando por aqui é a minha vó Flor. Eu nem me lembrava dela, mas meu pai me trouxe um álbum de fotos antigo da minha mãe. E depois... ela apareceu pra mim outra vez.

— Sua vó ou sua mãe? — Julieta perguntou.

— As duas. Primeiro minha vó. Ela conversou comigo como se eu fosse minha mãe. Depois minha mãe apareceu. Foi... estranho e mágico ao mesmo tempo. Não conversamos. Nós choramos. Foi como se estivéssemos conectadas por lágrimas. Minha vó era carpideira, por isso chora agora e nós a vemos daquele jeito. Depois disso não aconteceu mais. Senti o vazio outra vez. Minha avó falou comigo, mas minha mãe não... E isso foi... como se a segunda vez fosse pior.

Como um rompante de memória, Luiza saiu do meio abraço que estavam, correu até a mesa e procurou por um papel em específico.

— O que é carpideira? — Julieta perguntou, mas com medo de soar ignorante mais uma vez.

— Alguém que é paga pra chorar em velório — respondeu Fernanda.

— Onde está... aquele poema que encontrei no livro... da Rosario? — Perguntou Luiza.

— Na pasta, debaixo das coisas — respondeu Fernanda.

Luiza mexeu, encontrou a pasta e levou, junto, o diário de Felícia para o sofá. Primeiro abriu o diário nas últimas páginas. Depois abriu a pasta e pegou alguns poemas que Fernanda trocou com Rosario. Ela não precisou dizer nada para que Fernanda e Julieta entendessem.

Fernanda ficou paralisada. Depois, mais lágrimas desceram. As amigas a abraçaram e ela chorou por um tempo. Depois respirou fundo, tentou se acalmar, mas não conseguiu. Falou chorando mesmo.

— Não acredito que eu fiquei esse tempo todo achando que ela não queria mais aparecer pra mim, não queria conversar comigo como minha vó conversou, mesmo como em uma alucinação... e eu tentando me conectar com ela de tantas formas. Mas... ela tava falando comigo desde ano passado. Ela era a Rosario! Como?

— Depois do que vi nessa casa, não duvido mais de muita coisa — respondeu Luiza. — Ela encontrou um jeito de falar com você.

Fernanda também ria além de chorar.

— Bem que vi trechos de poemas da Rosario no diário dela... E fui tão... lerda — riu outra vez.

Depois de passar alguns dias rindo falsamente como se estivesse em um mundo de fantasia, ela ria de verdade. E de felicidade.

Luiza e Julieta acabaram rindo também.

Fernanda pareceu revitalizada, ainda que não completamente. É claro que o corpo cobrava os dias sem comer direito. Ela colocou uma música de fundo, aquela playlist de bolero que não era nem triste nem animada demais, releu alguns trechos das cartas recebidas de Rosario, de sua mãe, e chorou. Chorou de alegria, certo alívio. Contou sobre o que as duas conversavam nas cartas que trocaram junto com os versos, traduziu alguns para as duas, mostrou todo o diário para elas.

Comeu com vontade quando a comida chegou. 

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