14 - Felícia es poesía
Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
05 de abril, domingo
Era domingo.
Ao acordar, a cabeça doía.
Levou alguns minutos para se lembrar de tudo.
Lavou o rosto, pegou os desenhos.
Andou nos quartos, mexeu nas taboas.
Melhor conferir se era só um quarto com aquela marca.
No penúltimo quarto, a taboa saiu do lugar.
No buraco, havia um pacote.
Dentro do pacote, um caderno velho.
Aquele caderno era um diário.
Caderno de Felícia, dizia na primeira folha, uma letra redondinha, infantil.
Felícia.
Fernanda sorriu.
Chorou.
Felícia era a mãe de Fernanda.
Encontrei o diário dela.
Ali foi seu quarto um dia.
É claro que Fernanda chorou mais.
Toda energia que subia por seu corpo,
ajoelhada naquele chão.
Chorou na sala ao abrir o caderno outra vez,
pra então poder ler.
Descobriu a letra da mãe na primeira folha,
o desenho do seu nome.
Felícia.
Chorou com a personalidade da mãe
estampada toda ali,
mais do que conseguia ver
pelo que estava escrito
nas páginas do livro rasgado.
Aparentemente
aquele diário
nunca tinha sido tirado dali
desde que Felícia se casou
e se mudou.
Sábado, 21 de janeiro de 1995
Hoje me caso.
— Dizia o começo da última página.
Fernanda chorou.
Chorona? Talvez.
Mas quem não seria
passando a conhecer
tão de perto
a mulher com quem conviveu
por quinze anos
e a quem amou mais que tudo no mundo?
E que agora não estava mais ali...
Agora...
Fazia três anos...
Fechou o diário e o abraçou por um momento.
Sentiu.
Eletricidade.
Respirou fundo.
Tomou fôlego.
Abriu na primeira página.
A letra era quase infantil ainda.
1 de janeiro de 1987.
Quero ser escritora.
Na verdade acho que poeta.
Escrevo em versos
porque sou versista.
Mas não sei rimar muito bem.
Mamãe me mostrou poemas
que não tem rima,
então talvez eu seja
como esses poetas.
Meu preferido se chama
José,
mas não lembro o nome do poeta.
Vou perguntar pra ela.
Ela disse que chama
Carlos Drummond de Andrade
e deixou eu pegar o livro
onde o poema tá,
então por isso agora sei
escrever o nome dele.
Vou copiar
a primeira estrofe
(minha mãe disse que chama assim,
e eu tenho que estudar pra escrever)
aqui.
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Bonito né?
Não entendo muito
o que ele quer dizer
mas mamãe disse
que um dia vou entender.
E no natal
no mês passado
ela me deu esse caderno
pra eu escrever coisas
e escrever meus poemas
e histórias.
Quero escrever nele
até chegar na última folha
e então vou começar outro caderno.
E outro,
e outro.
Vou procurar
os poemas
que já escrevi
pra copiar aqui.
Felícia.
O coração de Fernanda
estava apertado
e sorrindo
ao mesmo tempo.
Em 87 Felícia tinha 12 anos.
Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.
— Cecília Meireles
Era um misto do primeiro sentimento de
"eu queria ser mãe dessa menina"
com o terno que era o incentivo da avó.
Mas também era confuso
por Fernanda nunca ter sabido
que a mãe quis ser escritora um dia
e porquê não foi.
Infelizmente
aquele diário acabava
no dia em que ela se casou
e talvez Fernanda nunca saberia
porquê a mãe
não virou escritora.
Talvez nem o pai soubesse
para responder para ela.
Queria perguntar, mas nunca fui de perguntar muita coisa também.
Doeu também ver
que ela não completou o caderno como sonhou.
Em 8 anos ela não conseguiu.
Fernanda chorava tanto
que não conseguia mais ler.
Deu uma folheada
só para ver os desenhinhos da mãe
e as colagens de revistas
junto de versinhos dela,
Rimo como quem não sabe rimar
Porque não sei rimar
Mas é só fingir
Que dá pra gostar
— Felícia
de poetas famosos
Quis ser um dia, jardineira
de um coração
— Cora Coralina
e trechos de músicas.
Eu nunca mais vou respirar
Se você não me notar
Eu posso até morrer de fome
Se você não me amar
— Cazuza
A maioria era de desenhos
que enfeitavam as colunas,
ou fotos de mulheres reais
com setas escrito
Eu usaria isso.
Ela já era da moda com 14 anos.
Pensou que, talvez,
lendo aquilo ali,
conseguisse se aproximar um pouco mais
da mãe.
É como se finalmente ela falasse comigo.
Porém, minutos depois,
quando conseguiu parar de chorar,
secar os olhos
e se ajeitar no sofá para ler,
se sentiu culpada
por invadir a vida da mãe.
Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
— Carlos Drummond de Andrade.
Se ela quisesse que alguém lesse aquilo ali,
não teria escondido,
não teria se esquecido dele
depois que se casou,
Fernanda pensou.
Já era tarde
e ela se lembrou que não tinha comido nada.
Mas não tinha fome.
Deixou o caderno de lado.
Tentou se forçar a comer algo,
mas algo pesava na cabeça,
nos ombros.
Algo quase físico me coloca pra baixo.
Lutou durante todo o dia
com aquele dilema.
Mais tarde recebeu uma mensagem.
Luiza
Está bem?
Fernanda
encontrei um diário da minha mãe
Luiza
Sério? Que incrível
Fernanda
não sei se posso ler
Luiza
Pq?
Fernanda
me sinto invadindo a privacidade dela
Luiza
Mas ela era sua mãe
E não está mais aqui
Não é como se eu, uma desconhecida, tivesse lendo
É você, filha dela
Acha mesmo que ela acharia ruim?
Fernanda pensou.
Mamãe não falava muito quando achava algo ruim. Eu tive a quem puxar.
E ela não podia perguntar por que havia dias que não a via ali na casa e, quando a viu, não conversaram. Só choraram. Só se conectaram. Então Felícia partiu outra vez.
Fernanda
acho que não
Luiza
Então
Fernanda
Ok
As horas que seguiram essa conversa
pareceram minutos para Fernanda.
Horas,
dias
não foram suficientes
para ela viver
tudo o que estava escrito ali.
Às vezes sara amanhã
— Drummond
Ela acompanhou o crescimento da mãe,
desde ter Terezinha de Jesus
como versinhos preferidos,
Da laranja quer um gomo
Do limão quer um pedaço
até ser A valsa
de Casimiro de Abreu.
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
E claro,
a mudança da sua letra
da infância para a
adolescência
e da adolescência
para adulta.
Viu também
desde o primeiro amor
Não posso rimar amor com saudade
Porque nem sempre
Só se tem saudade
Porque se ama
Nem sempre se ama sentir saudade
Nem sempre se sente saudade
Do que realmente ama
Às vezes só sente saudade
Às vezes nem é saudade
— Felícia
até quando conheceu seu pai,
e como não gostava tanto dele
no começo e
também
como ele nunca desistiu
de conquistá-la.
Todas as cartas de amor são
ridículas.
— Fernando Pessoa
Assim,
ele parecia um homem muito diferente.
É como se ainda não fosse meu pai.
Descobriu também
como Felícia não imaginou
que o namoro ia dar certo
quando começaram,
Amar o perecível,
o nada,
o pó,
é sempre despedir-se.
— Hilda Hilst
principalmente por causa da sogra,
e como ela apenas
vivia tudo,
deixando a vida levá-la,
não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino
— Paulo Leminski
apenas com a perspectiva de seguir escrevendo —
e ficou claro no caminho
que aquele não era
seu caderno principal de escrita.
Acabou virando
um diário
que tinha pensamentos,
alguns versos seus
e pequenos trechos de outras coisas.
Então, se ela escrevia mesmo,
Essas coisas estavam em outro lugar.
Empezé a estudiar español.
¡Me encanta!
A mí también me encanta, mamá.
Essa era a maior conexão entre as duas.
Quando tudo parecia apenas
perdido,
Olhos grandes
De menino da cidade
Quer ser minha vaidade?
— Felícia
— Escreveu para o namorado,
o pai de Fernanda,
mostrando que
finalmente
estava apaixonada.
Acho que ele nunca vai ler isso.
E Fernanda não sabia se perguntava
ou não
se ele leu.
Se ele soube.
Angústia é fala entupida.
— Ana Cristina Cesar
Então,
mesmo sem futuro para Felícia,
o namoro acabou durando
anos
entre trancos e barrancos.
Anos
e anos.
Até que ele a pediu em casamento.
"minha mãe vai ter que aceitar,"
ele disse.
E eu disse sim.
Que doideira.
Talvez ela fique melhor
depois do casamento,
quando o filho dela
estiver longe.
Aquilo doeu
doeu
mais do que Fernanda podia
explicar
muito
porque nada daquilo aconteceu.
Nem Augusta melhorou
nem o filho ficou longe.
Eles acabaram se mudando para perto dela.
Nas páginas seguintes
Fernanda entendeu como aconteceu,
como Felícia ficou angustiada
com como tudo aconteceu.
Já sinto falta dela
antes da hora.
Foi quase uma condição
para o casamento acontecer.
E ela achou que ainda conseguiria
contornar as coisas.
Talvez Fernanda nunca
fosse saber
por que
Por quê?
não conseguiu.
Sábado, 21 de janeiro de 1995
Hoje me caso.
Com isso, me mudo.
De casa, de mim.
Isso é bom?
Não queria deixar mamãe sozinha,
mas ela é forte.
Hoje me caso. Dá pra acreditar?
Quem diria que
aquele cara
de quem falei páginas atrás
faria isso?
Quem diria
que me aceitaria
e enfrentaria a mãe
por mim? Quem diria?
Se me dissessem,
eu não acreditaria.
Se ele pedisse de novo,
eu não aceitaria.
Só de susto.
Um susto à segunda vista.
Mas, não sou eu
quem escreve
em linhas tortas,
se é que alguém realmente escreve.
Hoje me caso.
E será que vou ter uma filhinha?
Uma bebezinha pra vestir
como ela quiser,
mesmo que seja a roupa mais
absurda
do mundo?
E pra me chamar de mamãe
mesmo grande
e me perguntar dos namoradinhos
(ou namoradinhas)?
Será que minha Fernanda
(que podia ser Cecília ou Cora)
vai demorar a vir?
Vem logo.
E será que...
Hoje me caso.(?)
E agora, José?
José, para onde?
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
— Conceição Evaristo"
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