11 - Plañideras
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Mario Quintana
26 de março, quinta-feira
Luiza e Julieta acordaram com o cheiro do café de Fernanda. Descansadas, por incrível que parecesse depois daquela última noite ali, foram até a cozinha e pegaram um copo de café cada uma. Sem conversar sobre seus sonhos, Luiza se despediu e foi para o trabalho. Julieta perguntou se podia ficar um pouco mais. Ela e Fernanda duas voltaram para a sala, conversaram sobre livros, cochilaram um pouco, depois Julieta foi para casa.
Sozinha com seus sentimentos conflitantes crescendo no peito, Fernanda fez um almoço rápido e se sentou na sala com um dos livros da mãe. Finalmente conseguiria ler O evangelho segundo Jesus Cristo, de Saramago. Leu pouco enquanto comia, mas só depois embalou na leitura, se divertindo com as anotações da mãe.
No meio da tarde se cansou da poltrona e resolveu dar uma volta pela casa. Depois olharia se tinha algo da faculdade para fazer.
Como do andar de baixo ela já tinha arrumado o escritório e estava usando a sala e a cozinha, subiu as escadas para olhar direito o olhar de cima. Pensou nos objetos que Julieta encontrou nos quartos, objetos que estavam sobre a lareira como enfeites, como inspiração para quando Luiza fosse ali para escrever.
Entrou no primeiro quarto, onde Julieta encontrou o livro e o desenho. Abriu os armários, as gavetas da cômoda grande, das cômodas pequenas ao lado da cama. Não encontrou nada. A escrivaninha dali era a que estava na sala, então havia um buraco físico no quarto, maior que aquele buraco metafísico. Saindo, pensou ter visto algo branco pendurado no cabideiro atrás da porta, porém ao dar um passo atrás para olhar novamente, não encontrou nada.
Revistou o segundo e o terceiro quartos também, onde Julieta encontrou a boneca e o quadro. Não encontrou nada. Seguiu para o penúltimo quarto, onde Julieta não encontrou nada. Ali, Fernanda começou a se sentir diferente logo ao pisar o primeiro pé ali dentro, algo que não tinha acontecido nas outras vezes que esteve ali. Não era uma sensação forte demais, daquelas que causam náusea, difícil de ignorar. Começou sutil, quase imperceptível, como um frio que começou na parte de baixo das costas e foi crescendo e subindo pelo resto do corpo enquanto ela mexia nos móveis. Quase como uma brincadeira de quente/frio. Ela nunca foi sensitiva, então foi difícil ignorar. Era uma sensação nova demais.
Essa coisa entranha nas costas percorreu todo o corpo e chegou ao peito. Seu coração disparou quando ela foi na direção do guarda-roupas. A mão de abrir a porta tremia, mas não como se sentisse que encontraria um fantasma. Ela sabia que reencontraria algo. Ao abrir, encontrou roupas. As observou por um momento, tremendo, sua respiração entrava e saía irregular, quase não mandando oxigênio suficiente para os pulmões, e ela só entendeu o porquê daquilo tudo quando percebeu de quem eram aquelas roupas. Ela quase havia se esquecido de como ela se vestia também.
Não eram roupas muito diferentes, eram só de dez anos antes. Mas ela reconheceu as camisas quadriculadas que ela achava bonitas, as calças do fundo baixo que ela achava engraçadas e que nem lembrava mais como se chamavam, uns dois macacões do mesmo jeito, as muitas regatas de uma cor só, os vestidos que marcavam abaixo dos seios e outros na cintura, as botinhas de salto baixo, os tênis com saltinho. Roupas que a mãe nem usava tanto, porque no trabalho as roupas eram mais sóbrias e iguais.
A tremedeira foi seguida por lágrimas que começaram a cair sem ela perceber também. A respiração entrecortada, o coração apertado. Saudade doía muito, ela pensou. Até então não tinha tido permissão de sentir aquilo sem ser ofendida com todos os sinônimos de fraqueza conhecidos. "Ela odiaria te ver assim" — a voz da avó paterna soou na sua cabeça, como anos atrás em um tom mais ameaçador que consolador.
Sozinha, na companhia das lembranças da mãe, se deixou chorar ruidosamente pela segunda vez, sabendo que agora não seria interrompida. Se ajoelhou de frente o guarda-roupas e se deixou chorar como não chorava havia anos.
Deixou doer.
Deixou transbordar.
Quando se acalmou um pouco, mas ainda chorando, tirou o pano de cima da cama e foi tirando algumas roupas do guarda-roupas e jogando ali.
Tirou um dos vestidos, um azul claro com flores bem pequenas, brancas com amarelo, de folhinhas verdes. Era médio, solto, que podia ser usado com os ombros baixos ou normais. Se surpreendeu como pareciam recém lavados. Jamais diria que estavam guardados ali havia anos. Porém ela não sabia bem quantos anos, porque, assim como os livros, até o momento acreditava que o pai havia jogado tudo fora, ou doado ou vendido. O vestido ainda tinha o perfume da mãe, um doce e comum que Fernanda nunca mais conseguiu usar.
E, apesar de não gostar de usar vestidos, de ser tão diferente da mãe, por algum motivo quis usar aquele ali. Era como se fosse se sentir mais próxima da mãe usando o que ela usava, assim como se sentiu ao ler o que ela lia. Trocou de roupa ali mesmo, depois foi ao banheiro social — no começo do corredor, que era o que estava usando —, para se olhar no espelho, ainda que ele lhe mostrasse apenas da cintura para cima com algum esforço.
Desceu para a sala, posicionou o celular na escrivaninha e tirou algumas fotos. Queria ver como estava. Ao olhá-las, não se reconheceu. Muito disso foi porque nunca gostou de vestidos e sua mãe sempre respeitou, mesmo com os protestos da avó paterna, então ela não lembrava de si com vestidos nem quando era bem nova. Ao menos essa luta as duas conseguiram vencer. Mas outra parte do estranhamento foi porque ela viu demais da sua mãe em si mesma por causa daquele vestido. Tinha se esquecido também — e percebeu que tinha enterrado dentro de si coisas demais sobre a mãe — como era parecida com ela fisicamente. Praticamente não tinha nada do pai.
As duas eram negras e tinham cabelo demais, bastante cheio, optando por mantê-lo geralmente em um corte que fazia um black magnífico, que às vezes ela trançava, às vezes deixava crescer bastante e cair pelos ombros. A última lembrança que ela tinha da mãe era do cabelo já em um tamanho por cortar, porque nos últimos tempos ela não estava bem para ir ao salão. O cabelo das duas sempre foi o terror da avó — mas não só ele.
Era quase como ver a mãe naquelas fotos.
Riu sozinha com a sensação de não estar sozinha, de estar acompanhada da mãe, ainda que não a ouvisse nem vesse. Mas ela a sentia. O cheio dela no vestido era real demais para ser somente isso.
Se sentou na sala outra vez para ler. Leu até se cansar, até o sol começar a se pôr. Nesse comento, ela se sentou na janela grande da sala e observou a tarde acabar, a luz ir embora, o céu ir de azul claro a vermelho e depois azul escuro, o barulho dos carros passando. Se lembrou que não tinha lanchado à tarde, jantou mais cedo.
Conversou com Luiza por mensagem sobre como estavam, como ia a leitura, o trabalho, a escrita. Nada de armários encontrados nem sensações estranhas. Fez algumas coisas da faculdade e se preparou para tomar um banho. Estava de pé de frente para a escrivaninha, de costas para a sala, quando ouviu o lamento no andar de cima.
"É cedo demais..." — Pensou.
Mas se virou para olhar. Aos poucos, o lamento se aproximou. Ela esperou. Então ela desceu as escadas, como nas outras noites. Pela primeira vez, Fernanda a viu com as luzes acesas. Ela fez seu mesmo caminho pela sala, chorando. O lenço intocado na mão, as lágrimas caindo e deixando marcas reais no chão. Fernanda ficou paralisada.
Logo, a avó Flor passou bem próximo dela. A princípio, ela pensou que passaria direto. Sentia como se sua pressão tivesse caído, suava frio. Então, para intensificar tudo, ao passar por ela avó Flor parou. Por alguns segundos, continuou com o olhar vago para a frente, mas logo virou o rosto para a neta. Fernanda viu seus olhos pouco vivos, as lágrimas, uma existência sem respiração. Pensou que desmaiaria, mas continuou ali, olhando para a avó morta havia dezessete anos.
Flor tentou falar. Primeiro, saiu apenas um gemido. Fernanda pôde ver seus dentes de velha. Ao menos não eram dentes de terra. Depois, Flor tentou falar outra vez.
— Filha? — Perguntou bem baixo.
Fernanda gelou mais ainda. Esperou. Flor virou o corpo de frente para ela, dando um passo para a frente, se aproximando.
— Minha filha? — Perguntou mais uma vez, olhando Fernanda no fundo dos olhos.
Fernanda chorou em silêncio. Era como se uma saudade que não sabia que tinha agora recaísse sobre ela, saudade da avó que mal conheceu. Também, chorou pelo choro dela, o olhar de saudade real que tinha. As lágrimas que caíam deixaram de ser apenas um lamento a passaram a ter significado: ela viu a filha em Fernanda.
— Quanto tempo... — Disse com a voz trêmula de idade e tristeza.
E de morte.
Fernanda não quis desmentir, mas não quis continuar congelada. Chorando, assentiu. Não conseguiu dizer nada ainda porque parecia errado demais aquilo tudo. Ao mesmo tempo, não desejou que acabasse logo. Apenas viveu o momento.
— Está tudo bem, não chore... — Flor disse.
Foi se virando lentamente. Fernanda pensou que ela iria embora, que aquela experiência tinha acabado tão de repente como começou. Porém, a avó se dirigiu ao sofá grande e se sentou. Logo, ao se ver sozinha, virou o corpo e fez sinal com a mão — um sinal lento e desajeitado —, chamando Fernanda. Respirando fundo, ela foi até o sofá e se sentou ao lado da avó. Com cuidado, tentou não toca-la. Não queria descobrir como era frio um fantasma. Tinha certeza de que sentiria algo como o vazio de uma não existência e como era ser uma memória esquecida. E não queria se sentir mais assim.
Flor ainda chorava. Secava seu rosto com o lenço e ele voltava ao seu colo seco, intocado.
— Esse lenço... — Fernanda começou a dizer, por impulso.
Não sabia o que conversar com o espírito da avó. Não sabia se era uma conversa de duas vias ou o reflexo de uma visão.
— É meu preferido — respondeu Flor, quase sorrindo, confirmando que a entendia. Olhou-a. — Você precisa de um também... — Disse e tirou um lenço, igualmente limpo e insólito, de um bolso estranho no quadril do vestido. Seus movimentos eram lentos como sua fala, como se a gravidade para ela funcionasse diferente. — Aqui, querida — ofereceu-o a Fernanda.
Ela jamais negaria. Era sua avó lhe oferecendo um lenço para secar lágrimas que escorriam sem previsão de parar, como seria a relação ideal entre uma avó viva e a neta. Era indiferente que estivesse morta.
Por um momento, as duas apenas choraram em silêncio.
— Você se lembra de quando seu pai se foi? — Perguntou Flor certo momento.
Fernanda não se lembrava da mãe falando muito do pai.
— Não — balbuciou.
— Bem, você era novinha mesmo. Foi em... 86, talvez? Quando aconteceu, nenhuma de nós duas chorou. Foi estranho te ver tão calma. Todo mundo disse coisas. "Ah, ela chora tanto, mas quando precisa..." — Encarou um pouco o nada. — "Só chora por dinheiro..."
Ela chorava e Fernanda sentia sua dor, como se a estivessem colocando à força no peito.
— Por que você não chorou? — Perguntou.
— Ah, filha... Tem coisa que é melhor não explicar, sabe? Mas quando eu perguntei por que você não tava chorando, você disse: "Se você não tá, eu também não vou", como se fosse um sinal de força. Você não sabia que não era bem assim, mas eu não podia destruir essa imagem de só... pai que você tinha dele. Depois que enterramos ele, pedi pra todos irem embora e ficamos só nós duas aqui. Sabe o que você disse? — Fernanda negou com a voz falha. — "Então isso é morrer: dormir e não acordar mais, ser enterrado. Deixar de existir." — Deu uma leve risada. — Pena que demorei demais pra descobrir que nem sempre se deixa de existir.
— Você... Quando? — Quis saber se ela sabia que estava morta.
— 2003.
— Ah.
— E você? Às vezes não me lembro do que veio depois. Só antes. Lembro de tudo de antes.
A voz de Fernanda embargou mais ainda ao responder.
— 2013.
— Ah, é verdade. E a pequena Fernanda, como está?
— Bem — respondeu, e embalou em um choro doído logo em seguida. — Me perdoa — pediu.
— Não precisa dizer isso. Você já disse, antes. Isso eu me lembro.
Mesmo assim, Fernanda não conseguiu parar de chorar. Quis pedir perdão pelo que ela novinha demais não tinha noção para entender. A angústia no peito era grande demais. As duas choraram, se lamentaram, deixaram doer.
Não muito depois, mas quando já doía no corpo inteiro chorar, alguém se abaixou de frente para elas.
Ela também chorava e colocou uma mão sobre a mão da mãe. Depois, colocou a outra sobre a mão da filha. Agora eram três lamentos conectados e Fernanda sentia tudo com mais intensidade ainda. A mão gelada da mãe, um rosto que ela pensou nunca mais ver de tão perto, ainda que choroso.
Mas ela sentia a dor de quem revia a filha que deixou para trás também.
Cada centímetro do corpo de Fernanda doía.
Ela sentia o vazio da não existência.
Sentia as dores da saudade. Choraram ruidosamente.
Choraram de verdade. Choraram até cansar.
Choraram perdas e saudades, anos e anos de choros guardados. Chorou até dormir.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top