1 - Quero vê-la sorrir, quero vê-la cantar

Ah, se eu soubesse quem sou.

Se outro fosse o meu rosto.

Se minha vida-magia

Fosse a vida que seria

Vida melhor noutro rosto.

Ah, como eu queria cantar

De novo, como se nunca tivesse

De parar. Como se o sopro

Só soubesse de si mesmo

Através da tua boca

Como se a vida só entendesse

O viver

Morando no teu corpo, e a morte

Só em mim se fizesse morrer.

- Hilda Hilst



11 de março, quarta-feira


Ela é bonita

seus cabelos muito negros

E o seu corpo faz meu corpo delirar


Ele cantava.

E era bom naquilo.

Nessa parte, ele sempre parava de cantar, de andar, ria e dizia:

— Brincadeira.

Ria um pouco mais e seguia seu caminho.

E a música.

Era uma voz medonha que sempre entoava esses versos. Não era medonha de filme de terror que assusta por ser fantasmagórica ou estranha. Era medonha para Luiza desde que se lembrava e mesmo agora com vinte e dois anos. Sempre que o ouvia, ela se arrepiava. Não havia nenhuma outra história entre ela e o tio. O problema era somente a música e o motivo pelo qual ele sempre cantava quando entrava na casa dela ou quando a via, onde quer que fosse, fosse constrangedor ou não. E ele estava lá todas as quartas e sextas-feiras havia pouco mais de um ano. Pelo menos duas vezes na semana Luiza vivia trechos de filme de terror.


O seu olhar desperta em mim uma vontade

De enlouquecer, de me perder, de me entregar


— Pronta? — Perguntou ele para a mãe de Luiza, lá na cozinha, depois de terminar os versos.

Era impossível não ouvi-lo na casa inteira, do quintal ou dos vizinhos. Como ele começava cantando alto para que Luiza o ouvisse desde que ele descia do carro, continuava conversando alto também. Mesmo que não fosse nem 7 da manhã.

"Feliz demais pro meu gosto" — ela sempre pensava, movida pelo mau humor que a música lhe causava.

— Filha, vem tomar café — chamou a mãe na cozinha.

Porém, Luiza terminou de se arrumar e saiu correndo, mal dizendo:

— Tô indo mãe, bença tio.

Fugiu antes que ouvisse quando ele chegasse na parte


É a cigana Sandra Rosa Madalena

É a mulher com quem eu vivo a sonhar


que era a parte que ele mais gostava e onde mais se empolgava. E era a parte que Luiza mais odiava. Nem o refrão a irritava tanto quanto esse trecho, que era o culpado por todo o sofrimento de uma vida inteira.

Ainda que parecesse para a mãe e o tio que apenas estava atrasada, ela sempre saía de casa mais cedo para não correr o risco de precisar correr para pegar o ônibus — um horário mais cedo — no ponto. Tinha pavor de imaginar as pessoas olhando para ela da janela enquanto ela corria desajeitada com a mochila nas costas, o celular na mão, os fones balançando, o cabelo na cara e seu porte físico de quem "não consegue correr", porque foi o que ouviu a vida inteira e era difícil não se irritar, mesmo que correr fosse tranquilo para ela. Tinha muito potencial para ser o clichê desastrado, mas se esforçou muito desde a adolescência para não ser. Bastavam as brincadeiras com seu nome, as "brincadeiras" com seu cabelo cacheado e muito negro — como a maldita música diz —, sua pele parda e seu peso.

Então, desceu a rua tranquila, colocou seus fones com Counting starsOneRepublic, para tocar, porque era uma das poucas em inglês que ela sabia toda a letra e isso ajudaria a tirar aquela bendita — maldita — letra de San... da música de nome proibido da cabeça. Além disso, lhe dava um sentimento de paz e amor que ajudava a mentalizar o "não o odeie, é seu tio, é gente boa..." — da mesma forma que tentava não odiar a mãe por aquele nome —, e mesmo que não fosse nada do que a letra da música dizia. Era só o sentimento que as músicas deles causavam a ela mesmo. O trecho


I feel something so right

Doing the wrong thing

I feel something so wrong

Doing the right thing

(Sinto algo tão bom

Fazendo a coisa errada

Sinto algo tão errado

Fazendo a coisa certa)


lhe causava aquela vontade de cantar toda a música de olhos fechados, apenas sentindo, quase como um louvor que se canta de olhos fechados e mãos para cima em conexão com o divino. E chorando.

Depois, deixou tocar músicas dançantes para sentir saudade de sair para dançar com as amigas, porque a vida adulta cortou isso para elas.


-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-


Começava mais um semestre e, com ele, mais um clube do livro do professor Guimarães. Desde que era aluna da graduação, Luiza frequentava esse clube. Por causa dela, o professor conseguiu que pessoas de fora da universidade pudessem entrar naquela sala da biblioteca para fazer parte do clube, porque ela ainda queria estar ali, mas não tinha desenvolvido seu projeto de mestrado ainda.

Ele destrancou a porta e algumas garotas que esperavam ali — algumas sentadas no chão, outras vendo a tarde se preparando para ir embora pelas janelas daquele andar da biblioteca —, entraram na sala. Se sentaram. Eram sete mulheres. Ele, sempre sorridente, se apresentou, apresentou a proposta do grupo e pediu que elas se apresentassem.

A primeira à esquerda dele na grande mesa retangular era Marisa, aluna do quinto período do curso de português. A segunda, Ana, aparentemente eram amigas ou talvez somente colegas. Mesmo período, mesmo curso.

Depois delas, sentada na outra ponta da mesa, de frente para o professor, estava Luiza, mas ela odiava com todas as suas forças esses momentos de apresentação e, se não tinha se acostumado em vinte e dois anos, jamais se acostumaria.

— Meu nome é Luiza... — disse ela, e continuaria falando se não tivesse sido interrompida pelo professor.

— Luiza de que?

Não foi por maldade. Ou talvez tenha sido. Ele estava anotando os nomes, as outras antes dela disseram os nomes completos, mas ele a conhecia havia anos, "precisava mesmo perguntar?", se perguntou. Por isso, Luiza ainda tentou passar batida. "Espero que ele esteja só conferindo os nomes pras outras poderem gravar...", pensou. Mas não conseguiu ficar tão tranquila. Depois da pergunta dele, ela hesitou por um momento, mas não tinha saída. "Maldito." Nunca existiu essa saída. Aquele momento só se repetia.


É a cigana Sandra Rosa Madalena


Ecoava em sua mente.

Ela engoliu seco.

— Luiza Laura... Mariana.

Risadinhas.

As sempre subsequentes e malditas risadinhas, que ela não quis levantar a cabeça para ver de quem eram.

— Você tem três nomes comuns? — Perguntou uma das outras meninas, rindo.

Mais uma breve hesitação.

— Sim — respondeu mal olhando para ela.

Ela sempre ensaiava responder mostrando indiferença, mas nunca conseguia de verdade. Sempre saía um "sim" magoado.

— Por quê?!

— Porque... Minha mãe gostava muito de... — Perdeu um pouco do tom da voz, mas falou em uma altura que todos ouviram. — Sandra Rosa Madalena.

Elas riram outra vez.

Dessa vez Luiza viu quem viu. Não foram todas. Duas delas não pareciam ver graça. Só esperavam sua vez de falar.

— Já chega — disse o professor, mas rindo também. Ele se lembrava que tinha algo no nome dela, mas não lembrava o que até então. Agora se lembrava e viu como ela ficou incomodada, como sempre. — Pode continuar.

— É... Eu era do português até ano passado. E gosto de ler.

— Isso? — Perguntou ele. Por mais tímidas que fossem no primeiro encontro, elas geralmente falavam mais.

Mas ela apenas assentiu. Não queria falar. Por algum motivo idiota — agora ela via isso —, pensou que ali ainda seria um lugar minimamente seguro naquele ano. Percebeu logo que não era.

Fernanda — uma garota triste de cabelo com corte de cabelo Black Sculp, os braços cruzados na frente do corpo em uma postura triste, quase encolhida — que até então observava atentamente todas elas para ver se descobria quem era sua correspondente secreta que deu sinais de que estaria ali naquele grupo, era a próxima, sentada meio na ponta, meio na diagonal da mesa grande, ao lado de Luiza. O professor precisou chamá-la duas vezes, pela distração e pelo seu jeito taciturno. Naquele momento ela refletia como a introversão de Luiza era uma característica que ela encontrava na sua correspondente "Rosario", quem ela não fazia ideia de como era fisicamente. Ao ser tirada da sua distração, disse seu nome, que era do último período do curso de tradução em espanhol e nunca tinha participado de uma leitura coletiva, mas estava animada.

— Da primeira turma do curso novo? Já leu os clássicos latino-americanos, então? — Perguntou o professor.

— Querendo e não querendo. Mas gosto demais. Gosto de A casa dos espíritos — disse logo, porque eles sempre perguntavam qual era seu preferido na sequência, para reprovar ou aprovar seu gosto literário, como se ela o tivesse solicitado.

— Espirituosa — disse ele, sorrindo em seguida do próprio trocadilho com o título do livro, e porque sabia que não era todo professor de literatura hispano-americana que gostava de Isabel Allende.

Depois dela, estava Sandra — e Luiza sentiu um leve arrepio ao ouvir o nome —, da licenciatura em inglês, que achou que seria legal conhecer um clube do livro. Então, foi a vez de Julieta, que tentou esconder seu descontentamento em estar ali atrás da franja do seu corte chanel. O professor Guimarães deu um sorriso especial para ela, aquele mesmo: sádico. Se não estava fazendo um jogo com Luiza, com certeza o estava com Julieta. Ela se esforçou para não respirar fundo para não parecer que se fazia de coitada e não passar, ainda por cima, uma ideia errada de porque estaria se fazendo de coitada. Sabia que encontraria implicância grátis em qualquer lugar se desse abertura para isso, mesmo que fosse desconfortável mudar seu jeito por causa de defeito dos outros. Mas, também bastava o quanto realmente tentou se fazer de coitada para o professor no semestre anterior com aquele fiasco da resenha errada para ele não a obrigar a participar daquele grupo. É claro que não deu certo, pois ela estava ali.

— Sou Julieta, sou do inglês e... — Deu de ombros.

Desde que a primeira se apresentou, ela não havia decidido o que falar. Tentou fazer a Luiza e falar pouco. Quase disse que seu nome era Julieta Carolina Isadora. Decidiu logo que não seria engraçado mentir algo assim porque soaria como um sarro sendo tirado, não como uma tentativa de tirar o foco da sua falta de vontade de estar ali. E ela não queria rir do nome da garota porque... era um nome.

— Fale mais — provocou ele. — Gosta de ler?

Ela segurou um suspiro de ódio.

— Gosto.

— E de conversar sobre o livro?

Ela hesitou um momento maior que o anterior. A vara com a qual ele a cutucava era da ponta bem fina, daquela que parece que não vai machucar, mas que alcança o fundo da ferida.

— Não tanto — respondeu.

— Mas...

— Mas... — o interrompeu. — Estou aqui. E é isso.

Ele deu uma risadinha e passou para a próxima. Aquele semestre seria longo para Julieta. O professor Romeu jamais a deixaria em paz.


-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-


Luiza saiu do clube um pouco cabisbaixa. Ela sempre se animava para a primeira vez com pessoas novas, mas no fim sempre saía decepcionada. Eram 18h, ela tinha fome, mas queria ler logo o conto que pegou para a primeira semana. Elas trabalhariam contos na próxima semana, depois poemas e, então, pegariam o livro principal. Guimarães sorteou um conto para cada e ela tentou focar sua atenção em O assassinato de Ramon Vasquez e se esquecer das risadinhas. Se sentou nas mesinhas de estudo do lado de fora da biblioteca. Ainda não queria ir para casa porque lá era sempre Sandra Rosa Madalena demais para o gosto dela.

Fernanda também continuou ali na biblioteca. Não seguindo Luiza, mas seu coração palpitou com a possibilidade de ver a garota ir direto ao livro através do qual se correspondia com Rosario. Porém, Luiza não foi para as prateleiras. Então, Fernanda foi até o livro, mesmo que fosse para descobrir que ainda não havia nenhum bilhete entre as páginas naquele semestre. E o nada entre as páginas foi realmente tudo que encontrou. Se sentou em uma das mesas de estudo ali de dentro, prendeu a parte de cima do cabelo em um coque no topo da cabeça, para o cabelo não cair no rosto enquanto lia, ficando com um penteado descabelado — que ela amava porque era como sua mãe usava em casa —, e foi ler Na cela do inimigo público Nº 1. No fim, decidiu deixar uma carta nas páginas do livro. Não custava nada tentar.

Já Julieta saiu do clube irritada mesmo e foicomer para descontar a raiva. Comprou um salgado e se sentou nas outras mesasde estudo externas da biblioteca. Não havia reparado que Luiza tinha ido paralá também, mas não ligou muito quando a viu. Apenas se sentou, comeu, tentouler seu conto. Pesquisou sobre ele, salvou dois vídeos e um link para lerdepois, porque não conseguia se concentrar em nada. Kid Foguete no matadouro estava impossível para ela.As palavras não faziam sentido. Bukowski não parecia ser alguém que faziasentido e ela percebeu que odiaria aquele semestre mais do que tinha imaginado.Ficou um tempo olhando para o nada e então resolveu ir embora, sabendo quedormiria cedo demais e acordaria muito antes do despertador. 

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