6 • Traga o impossível de volta
Maio, 1898.
Um bufar impaciente de Lila rasgou o silêncio do quarto. Levantando-se da cama num movimento rápido, ela se apressou na minha direção e parando diante de mim, cruzou os braços e me encarou, visivelmente zangada.
— Certo, agora basta. — Ela resmungou. — O que está acontecendo, Mys? Acordou muito estranha hoje e veja: você já é bastante estranha todos os dias. Está se sentindo doente? Está muito ansiosa pela chegada dos nossos hóspedes? Eu não entendo, você estava tão feliz ontem no jantar! Não estava nada assim, cheia de alvoroço. Sabe que se alguma coisa aconteceu, você pode me contar.
Cada uma das palavras de Lila colidiu na minha mente como uma pedrada. Tão pasma, não tive o que dizer por um minuto inteiro. Na verdade, não fazia a mínima ideia de nada, inclusive do que fazer. Se havia algum jeito de resolver aquela situação, eu não o conhecia. E mesmo se houvesse uma saída, eu queria voltar para minha vida anterior?
Tentando reorganizar meus pensamentos, eu respirei fundo e forcei-me a tomar uma decisão rápida. Tinha muito no que pensar, mas pouco para fazer. Eu não sabia como voltar para o meu tempo. Eu não podia fugir. Não tinha nenhuma alternativa senão mergulhar naquela loucura em que estava. Se Madame Lover tinha mesmo trazido o que eu a pedira de volta, só havia uma maneira de descobrir.
Sem pensar mais, eu desencostei da penteadeira, endireitei as costas e disse para Lila no tom mais sereno que pude emitir no meu rebuliço:
— E-eu estou bem, só tive um pesadelo e acordei muito confusa. Me desculpe.
Ao ouvir essas palavras, Cordelia resfolegou e descruzou os braços, relaxando os ombros tensos. Um meio sorriso ornou seu rosto e ela se aproximou até que pudesse segurar meus cotovelos suavemente, os olhos aliviados.
— Você ainda vai me matar do coração! — reclamou. — Pensei que estivesse com algum problema, mas com certeza essa agitação é pela chegada do seu futuro noivo.
Lila riu ironicamente e se afastou em direção ao guarda-roupa. Enquanto isso, eu permaneci imóvel e quando finalmente me dei conta do que ela dissera, minhas mãos tremeram: meu "futuro noivo" só podia ser Benjamin e se ele estava mesmo ali no passado, então talvez Madame Lover também tivesse trazido meu pai de volta. Eu sabia que as duas situações eram muito diferentes, mas, ainda assim, meu estômago revirou de ansiedade. Desejei por tudo no mundo perguntar por papai e ainda abri a boca para fazê-lo, porém, temi que a pergunta soasse muito esquisita. Se queria descobrir o que estava acontecendo, teria que dar um jeito de fazê-lo por mim mesma e de forma que não levantasse suspeitas.
— Acha que eles vão gostar dessa estadia maior na nossa casa? — Lila perguntou de repente, me tirando dos meus pensamentos.
Sem fazer ideia do que ela falava, eu parei e pensei por um segundo. Cordelia mencionara que havia hóspedes chegando com Benjamin, mas eu não sabia quem eles eram. Tentando elaborar uma forma de perguntar isso sutilmente, eu disse por fim:
— Sim, claro que vão. Aliás, já havia até me esquecido que alguém mais vinha além de Benjamin. Nem sequer lembro seus nomes — comentei casualmente, tentando soar o mais natural que podia. Por dentro, meu coração saltava do peito.
Deslizando as mãos pelos tecidos finos no guarda-roupa, Lila virou o rosto e me fitou com uma sobrancelha arqueada. Felizmente, aquele não era um olhar desconfiado, apenas repreensor como o de uma mãe que descobre que o filho não fez a tarefa de casa.
— Temo que o amor lhe roube toda sanidade antes mesmo do casamento. — Ela zombou, rindo e revirando os olhos. Voltando a analisar as roupas, continuou: — Sei que só pensa no seu amado marquês de Flungton e que só deve ter prestado atenção no nome dele, mas temos mais três senhores vindo, lembra, minha querida Lady Greaves? Ou deveria chamá-la de Lady Apaixonada? — Cordelia riu baixinho e continuou fuçando o guarda-roupa.
Sem responder, eu agradeci mentalmente por ela estar de costas para mim, pois não consegui disfarçar meu espanto. Marquês de Flungton? Lady Greaves? O que eram aqueles títulos de nobreza? Mal tive tempo para assimilar o que havia ouvido quando ela continuou a falar:
— Se lhe refresca a memória, nossos outros hóspedes são o duque de Valing e seu filho, lorde Harold Dumbleton, além de...
— Harold Dumbleton? — perguntei impulsivamente, reconhecendo o nome de imediato. Não atentei às palavras que haviam saído da minha boca até que Lila virou-se rapidamente para mim, o cenho franzido.
— Sim, lorde Dumbleton — enfatizou em tom reprovador. — Ele já esteve aqui antes, esqueceu? Perdeu a memória e também os modos durante a noite? — Lila balançou a cabeça em desaprovação e eu achei melhor permanecer em silêncio. Vendo que eu não responderia, ela prosseguiu: — Onde eu estava? Ah, sim! Como dizia antes de ser bruscamente interrompida, nosso último hóspede é lorde Aaron Chapmont, que está vindo em nome do pai adoentado, o duque de Blury. Inclusive, é realmente uma tristeza que o duque esteja tão mal, não é? Ele é um bom homem — lamentou. — Enfim, espero que dessa vez você tenha prestadoatenção em algo além de lorde Benjamin Dolan, Lady Apaixonada.
Com um sorriso sugestivo no rosto, Lila veio até mim com dois vestidos pendurados em cabides. Eu abri para ela o melhor sorriso que pude, mas certamente ele ainda deve ter parecido estranho e assustado. Todos os títulos de nobreza me deixaram tonta e atordoada, porém, não eram ao todo surpreendes quando eu olhava ao redor. O cômodo exuberante, as joias na gaveta da penteadeira, a casa, os hóspedes... para ter tanto, eu só podia ser duas coisas: muito rica ou muito rica e aristocrata.
Eu ainda tentei resgatar da memória o que sabia daquele período, revivendo os borrões das aulas de história e dos livros que lera e revisara, mas minha cabeça estava tão repleta que eu mal conseguia respirar, que dirá pensar. Benjamin era o marquês de Flungton e meu futuro noivo, ao invés de ex-namorado. Eu era uma lady. Mesmo Harold era um lorde. Outros aristocratas chegariam... dois vestidos balançavam à minha frente, esperando minha escolha... eu estava no passado.
Quis gritar.
A quantidade absurda de informações reverberando fez um emaranhado na minha mente, enlaçando-se em nós incorrigíveis. Era muito para processar. Fiquei zonza e segurando-me na borda da penteadeira com força, me perguntei por onde deveria começar a desenrolar aquela confusão. À minha frente, Lila ainda me mostrava roupas, falando algo que não assimilei a princípio.
Bem, ao que parecia, eu começaria com vestidos.
— Azul ou amarelo? — Cordelia perguntou, esvoaçando uma das peças em minha direção.
Despertando dos meus pensamentos com o toque suave do tecido, eu pisquei os olhos, recobrando minha consciência e meus sentidos.
— Hum? — murmurei, distraída.
— Céus, Mysie! Você está realmente estranha hoje. Parece que está presa em outro mundo. — Ela reclamou, e eu quase concordei. — Está tudo bem, escolherei para você. Vamos, pegue este vestido! Sei que ama azul e esse modelo fica lindo em você.
Lila me entregou a belíssima peça de roupa e eu a apanhei com cuidado, sentindo a textura da musselina ornada por bordados delicados. O modelo era semelhante ao que ela usava, mas num tom azul-claro.
— Por que ainda está aí parada? Sua banheira está pronta. — Ela disse ao ver que eu não me movia, revirando os olhos e gesticulando para o grande biombo de madeira no canto do quarto.
Aproveitando a deixa, eu apenas larguei o vestido na cama e andei ligeira até o divisor. Atrás do biombo, além de uma banheira, havia um lavatório de madeira e porcelana. Num cabideiro havia uma toalha muito grossa e ao seu lado, um pequeno móvel repleto de sais de banho. O ar era carregado por um aroma floral, enchendo meu olfato com notas de cereja e lírios. O lugar era somente meio iluminado, pois os raios de sol refletidos pelos cristais do lustre ficavam parcialmente bloqueados pelo biombo.
Tudo era estranho e, ao mesmo tempo, muito suntuoso. Passei a vista no meu corpo e me aproximando do espelho do lavatório, analisei o reflexo. Apesar da camisola antiga, da pele um pouco mais corada e do inchaço vermelho na testa — onde batera a cabeça na cabeceira da cama — nada havia mudado em mim. Eu passei as mãos pelo cabelo e pelo rosto, sentindo a textura da tez. Dadas as circunstâncias, não era de se admirar que duvidasse estar vendo a mim mesma no espelho; mas eu via, e era real.
Quase como um grito de despertar, a voz de Lila soou de novo junto a uma roupa branca jogada por cima do biombo. Os resmungos dela me sobressaltaram e voltando à urgência do momento, eu encarei a banheira e tirei minha camisola, tomando um susto por não estar vestindo nada por baixo dela. Logo lembrei que não estava no meu século de roupas íntimas e que, provavelmente, camisolas e anáguas eram tudo que teria ali.
Sob meus pensamentos confusos, eu entrei na banheira morna e tomei um banho ligeiro, rapidamente vestindo a roupa que Lila me jogara — uma mistura entre uma camisola e uma calçola que ia até um pouco acima dos joelhos, cheia de babados, fitas, rendas e marcada na cintura. Eu recordava bem daquela peça de roupa de todas as ficções históricas que já havia lido e assistido, e lembrei-me que se chamava combinação. A vesti meio desajeitada e franzi o nariz ao passar a vista pelo espelho, estranhando a vestimenta, mas não me demorei mais. Voltando ao quarto, me deparei com mais roupas estendidas na cama, todas muito diferentes das que já havia visto na vida. Internamente apavorada, parei e respirei fundo.
— Eu escolhi essas meias, veja se combinam com o vestido. — Lila disse de onde estava sentada no banco da penteadeira, cutucando as unhas.
Como quem havia recebido um sinal divino, eu me recompus e apanhei as meias. Fingindo tê-las analisado com o vestido, as calcei rapidamente. Elas iam até um pouco acima dos joelhos e eram semitransparentes e bordadas.
— Estão perfeitas — comentei disfarçadamente. Lila aquiesceu com a cabeça.
Seguindo o que parecia ser a ordem lógica e pensando que só me vestir não podia ser tão diferente do que estava acostumada, eu calcei também os sapatos que estavam aos pés da cama. Depois, peguei o vestido, mas fui impedida de colocá-lo por Cordelia.
— O que está fazendo? — Ela levantou-se num salto. — Não pode vestir isso assim, esqueceu o espartilho!
Ligeira, Lila apanhou a peça de roupa, e eu mal vi o corset antes que ela o passasse pela minha barriga e atasse os botões da frente. Então, ela puxou as fitas, espremendo meu corpo entre elas. Pega de surpresa, eu me inclinei contra o dossel da cama e o agarrei com um gritinho assustado.
— Meu Deus! Está muito apertado!
— Você é sempre tão dramática com o espartilho, Mys. — Ela zombou, rindo baixinho. — Isso nunca muda.
Lila repuxou o espartilho até que, com um último amarro, estava acabada a tortura. Ofegante, eu me enfiei no vestido de uma vez e Cordelia apontou para o banco da penteadeira em sinal para que me sentasse. Assim que o fiz, ela começou a arrumar meu cabelo enquanto tagarelava sobre como eu devia estar ansiosa por ter Benjamin por perto. Ao que parecia, todos os hóspedes já haviam estado naquela casa antes, exceto por lorde Chapmont. Ela também estava animada porque, como me contou, eu e Ben noivaríamos depois de uma votação que mencionou algumas vezes — e que parecia ser o motivo da estadia daquelas pessoas ali —, admitindo que sentiria muito minha falta quando eu fosse morar com ele.
Lila falou ainda sobre Harold, resmungando numa voz macia e aveludada sobre como ele era bonito, mas muito arrogante. Eu sorri ao escutá-la dizer isso, e percebendo meu olhar travesso, ela mudou o rumo da conversa depressa e mencionou lorde Aaron Chapmont. Segundo soubera, ele era o solteiro mais cobiçado do ducado de Blury, além de um viajante assíduo e cheio de ideias progressistas que nem sempre agradavam ao pai.
Eu queria saber mais sobre o que estava acontecendo ali e continuaria escutando Lila de bom grado, mas ela parou de falar assim que terminou meu cabelo. Ela arranjou umas últimas mechas no coque e prendeu nele um chapéu pomposo o suficiente para esconder o machucado em minha testa, sobre o qual rezingou bastante e classificou como uma verdadeira insanidade matinal. Então, sorrindo com o resultado do seu trabalho, me disse para checar o espelho.
De fato, eu estava bonita, apesar de muito diferente. Nunca havia prendido meu cabelo daquela forma, sempre o usava solto. Também jamais havia me imaginado naquelas roupas. Poderia facilmente ter me observado por mais alguns minutos até me habituar ao visual, mas não pude fazê-lo. Borrifando nuvens de um perfume floral em mim, Lila me puxou pela mão, nos apressando para fora do quarto.
Assim que a porta foi aberta, um corredor claro surgiu e meus olhos perderam-se no vão. Havia lustres e vasos extravagantes por todos os lados, muito dourado e madeira maciça. Eu divaguei por toda aquela pompa enquanto meu coração saltava a cada passo. Estava tão perplexa que mal percebi quando Cordelia soltou minha mão, afastando-se de mim.
— Bom dia, tio! — Ela exclamou alegremente, chamando minha atenção.
Distraída, eu finalmente olhei para frente. No mesmo instante, meu corpo ficou petrificado e meus olhos encheram-se de lágrimas.
Não pude falar. Não conseguia me mexer. Fiquei imóvel, pois parado e de braços abertos no fim do corredor, estava um homem de cabelo escuro, olhos castanhos e sorriso largo. Ele abraçou Lila e olhando para mim, gesticulou para que eu me aproximasse. Seu rosto parecia com o meu e sua aura era gentil e segura. Eu o observei e se ainda tinha qualquer crença de que algo no mundo era impossível, ela se despedaçou e queimou até virar cinzas, porque o impossível estava bem diante dos meus olhos.
Plácido a alguns metros de mim, mais vivo do que nunca e vestido como um lorde de 1898, estava de pé o homem que eu mais amara em toda minha vida:
Wilson Greaves — meu pai.
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Oi, amore! 💜
A Mysie resolveu mergulhar de cabeça nessa loucura e claro, nos vamos com ela (especialmente agora que Wilson Greaves apareceu vivíssimo rsrs). Como você já sabe, fico muito feliz com seu feedback, então não esqueça de deixar seu voto e seus comentários lindíssimos por aqui! ⭐
Obrigada pela leitura e até as cenas dos próximos capítulos! 🔮
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