5 • Traga o tempo de volta

— Acorde, Mysie!

Eu abri os olhos e luz do sol encheu minha visão. O brilho foi tão forte e repentino que fiquei atordoada e fechei as pálpebras novamente. Eu joguei as mãos na frente do rosto e encolhida em mim mesma, não respirei pelo que pareceu uma eternidade. Esperei pela dor da queda e pelo colapso com o chão rijo da morte, mas nada aconteceu. Ao invés disso, após um segundo imóvel, notei que o que havia embaixo de mim era uma superfície estranhamente fofa e macia.

Eu quis abrir os olhos novamente, mas tive medo de fazê-lo e ver que ainda estava caindo. Estava apavorada por pensar que aquele fosse realmente o castigo eterno: cair e morrer e voltar a cair sem parar. Somente quando uma voz muito familiar ressoou nos meus ouvidos outra vez, foi que a coragem lançou uma minúscula faísca no meu coração.

— Mysie, acorde! — exclamaram em tom zangado. — Vamos, pare de sonhar! Já passou da hora de sair da cama. — E puxaram algo que estava enrolado a mim.

Sacolejada pelo puxão, eu finalmente despertei por completo e tirei as mãos do rosto. Quando enfim avistei a figura à minha frente, mal pude acreditar no que via.

Era Lila — em carne, osso e roupas estranhas.

Eu esbugalhei os olhos, assustada, e ergui-me rapidamente para me sentar no que agora via ser uma cama. Estava envolta por cobertas e travesseiros brancos, num quarto totalmente alheio. A luz solar entrava livremente pelas cortinas translúcidas e alvas, iluminando os móveis requintados de madeira escura, o papel de parede bordô e os detalhes dourados. Toda a decoração luxuosa tinha um quê de neoclássico, como se eu estivesse em uma pintura antiga ou num livro de história do final do século XIX.

Estatelada, eu encarei fixamente a mulher diante de mim. Embora tivesse certeza de que aquela era Lila, ela estava vestida de modo muito estranho. Ao invés das suas roupas modernas e vibrantes, ela usava um vestido verde menta de cintura muito marcada, mangas compridas e uma longa saia em sino que resvalava no chão. A gola da roupa era alta e o tecido, fluido e cheio de bordados. Todo o cabelo dela estava preso num coque e ornado por um chapéu claro com plumas e flores. Não havia nenhuma maquiagem em seu rosto e sua pele estava mais corada do que eu lembrava; ela parecia uma peça viva de um museu.

— Mas o que... — Fui incapaz de terminar a sentença. Meus lábios tremiam e meu queixo estava caído. — Meu Deus, eu realmente morri?

A pergunta fora mais para mim mesma que qualquer outra coisa, mas ao me ouvir, Cordelia desfez o rosto numa expressão de espanto e sua mão foi ao coração.

— Valha-me Deus, Mysie! Que horror! — Ela ralhou. — Por que está dizendo isso? O que houve para acordar assim tão assustada? Foi um pesadelo?

Eu prendi a respiração, absolutamente perturbada. Preocupada, aquela Lila formal e fantasiada começou a se aproximar de mim, mas eu me assustei tanto que ela parou e me observou cheia de estranheza.

O que está acontecendo? — perguntei com urgência, pressionando as costas com força contra a madeira da cabeceira na necessidade de sentir qualquer coisa que parecesse real. — Onde estamos? Por que está vestida assim?

Meu corpo inteiro tremia e minhas palavras foram sérias e claras, mas Lila pareceu não entender e ficou muito espantada com minhas perguntas. Suas bochechas ficaram vermelhas e seus lábios curvaram-se numa linha raivosa. Ela jogou as mãos ao ar e, em seguida, repousou-as no quadril com um bufar insatisfeito.

— Ora, Mysie! — rosnou, parecendo muito chateada. — Venho aqui lhe acordar para esse dia tão esperado e é assim que sou tratada? O que há de errado com minhas roupas? — E bufou de novo antes de balançar a cabeça em negação e continuar: — Ah, não fale, é melhor! Eu sei que meu vestido é lindo. Você é quem precisa se aprontar.

Lila gesticulou para que eu me apressasse, mas apesar dos seus comandos, não me mexi. Estava paralisada, com olhos petrificados e a língua estática na boca. As únicas coisas em movimento em mim eram meu coração descarrilhado e minha mente que parecia estar sendo revirada por um furacão.

O que havia acontecido com Lila? E que lugar era aquele em que estávamos? Talvez a queda tivesse sido apenas a passagem... talvez agora eu estivesse realmente morta, pensei, mesmo que essa ideia não soasse convincente; aquilo não parecia o inferno ou mesmo o céu.

Eu abri a boca para falar uma, duas vezes, mas as palavras ficaram engasgadas na minha garganta seca. Organizando minimamente meus pensamentos, cheguei à conclusão que devia mesmo era estar delirando, então fechei os olhos e belisquei meu próprio braço com força, esperando despertar do que quer que fosse.

— Vamos, acorde! — ordenei a mim mesma, beliscando-me outra vez. — Acorde, sua boba! Você é muito jovem para morrer, isso tudo é um sonho. Deve estar em coma em algum hospital, como nos filmes. Não dê trabalho aos médicos, acorde!

Mais um e outro beliscão falharam até que, desesperada por ver que nenhum deles me acordaria, eu enterrei a cabeça num travesseiro e cerrei as pálpebras numa prece silenciosa. Quando abri os olhos, contudo, ainda estava no mesmo lugar.

Fracassando completamente no meu pretexto, eu não me permiti pensar com o mínimo de coerência quando uma ideia infeliz me veio à mente. Iria acordar daquela loucura de qualquer jeito, então virando-me, mirei na cabeceira e bati a cabeça contra a madeira maciça. Para minha infelicidade, no entanto, o móvel era mesmo real e muito mais duro do que meus sentidos torpes haviam calculado. A dor me acertou instantaneamente e eu esfreguei o lugar da batida com um gemido dolorido e derrotado.

Resignada à minha impotência e tentando recobrar a orientação, eu olhei ao redor. Precisava me acalmar e pensar, mesmo que nada ali fizesse sentido. Ofegante e descabelada, fechei os olhos com força novamente e respirei fundo, fazendo esvoaçar as mechas de cabelo desgarradas na frente do meu rosto. Quando voltei a levantar as pálpebras, Lila estava imóvel e perplexa, me encarando com olhos esbugalhados, lábios entreabertos e os braços soltos ao longo do corpo.

— Meu Deus, Mys... você enlouqueceu? — Apressando-se até mim, ela se sentou ao meu lado. — Será que está febril? Com certeza isso é um delírio de febre!

Lila estendeu a mão para tocar meu pescoço, mas eu me esquivei, segurando seus dedos entre os meus com urgência. Eu a encarei e quando o castanho dos meus olhos submergiu no mar verde das suas írises, vi que, apesar de toda aquela confusão, ela ainda era... ela. Se havia alguém no mundo que podia me ajudar de qualquer forma, era aquela mulher diante de mim.

— Lila, por favor, me diga o que está acontecendo. — Eu me aproximei mais, apertando suas mãos nas minhas numa súplica. — Por favor, eu sei que fiz bobagem, mas o que quer que seja isso, uma punição, um trote, me diga!

Como quem não havia entendido nada do que eu dissera, Cordelia apenas me fitou ainda mais desorientada, estreitando os olhos em mim.

— Do que está falando? — perguntou baixinho, adotando a suavidade de quem conversa com uma criança. — Você realmente está começando a me assustar, Mysie. Que bobagem você fez? E de onde veio essa conversa inadequada? Ora, trote! Nós nem sequer estamos falando de cavalos! — Ela respirou fundo, agora parecendo muito preocupada. — Veja, não sei o que está acontecendo, mas seja o que for, é melhor resolvermos depois. Benjamin e os outros estão chegando e você esperou muito por esse dia. Deve ser por isso que está tão desorientada.

Benjamin e os outros estão chegando, a voz de Lila ecoou em minha cabeça outra vez, agora como um grito numa sala vazia. Emudecida, eu senti meus dedos gelarem à menção do meu ex-namorado. Cordelia não parecia estar me pregando uma peça. Nada daquilo soava como um sonho ou com o que eu imaginava ser um delírio de morte. Tudo ao redor era muito palpável, muito vívido.

Recompondo minha consciência, eu finalmente analisei a mim mesma. Assim como minha prima, estava vestida em roupas estranhas: usava uma camisola clara e comprida, solta, cheia de rendas e fitas. Aquela era uma peça de roupa muito bonita e minuciosamente detalhada. Uma peça que parecia ter saído de um museu. Uma peça de outro século, assim como... Céus, assim como a roupa que Madame Lover usava quando a vi.

Atônita, eu abaixei a cabeça e meus olhos divagaram pelos lençóis. Pense, ordenei a mim mesma, reorganizando o raciocínio. Por que Lila diria que Benjamin estava chegando? Até onde eu recordava, ele estava partindo. A não ser que, minha mente balbuciou, borbulhando em teorias infundadas demais para serem reais. A não ser que Madame Lover tivesse o trazido de volta, me permiti terminar, sem fôlego.

Você terá tudo de volta, a misteriosa mulher me dissera na meia luz arroxeada da sua sala sinistra. Não no tempo que você espera, mas terá; a voz dela entoou outra vez. No mesmo instante, um clarão inflamou minha mente. Não podia acreditar no que cogitava, mas àquela altura, era a única opção que tinha. Depressa, meus olhos ergueram-se, encarando o rosto bonito de Cordelia novamente.

Lila — chamei com urgência, apertando suas mãos. — Me diga, onde estamos?

Eu ajoelhei na cama e inclinei-me na direção de Cordelia. Ela estreitou os olhos incônditos em mim por um minuto, mas por fim, respondeu em tom baixo e apreensivo:

— Em Bronshire, é óbvio. Onde mais poderíamos estar senão em casa?

— E que dia é hoje?

— Quarta-feira, claro, se ontem foi terça. — Ela disse, revirando os olhos e debochando como quem fazia menção do óbvio.

Eu parei um pouco e pensei. Até onde memorava, estava numa segunda-feira exausta e cheia de ressaca após beber as dores de um término. Havia conversado com o Sr. Nurbury na editora, recebera uma mensagem de Lila, desviara do meu caminho para nosso almoço... Minhas lembranças não podiam ser tão traiçoeiras. Encarei Cordelia de novo e me certificando de não deixar nenhuma expressão sua fugir aos meus olhos, indaguei:

— Por favor, que dia exato é hoje? Quero dizer, a data. É isso que quero saber.

Mais uma vez, ela me olhou de esguelha e parou, desconfiada, antes de responder:

— Hoje é quatro de maio.

Eu estremeci. Recordava perfeitamente de estar mesmo no dia 4 de maio, pois tinha a lembrança clara de ver essa data no jornal que o rapaz no prédio de Madame Lover lia. No entanto, aquele dia certamente não era uma quarta-feira e a única maneira pela qual essa troca poderia acontecer era alterando-se o ano. Atordoada por essa percepção, minha mente entrou em estado de alerta. A cada minuto, o improvável parecia mais real.

— Cordelia, o ano. Em que ano estamos?

Mil oitocentos e noventa e oito! — Ela exasperou, agora impaciente e aborrecida. — Hoje é quarta-feira, quatro de maio de mil oitocentos e noventa e oito. Mas que tribulação! Está perdida no tempo ou realmente perdeu o juízo?

Quase petrificada, eu fiquei tonta e meus sentidos, enevoados. Depois disso, todos os resmungos seguintes de Cordelia pareceram apenas um eco distante em minha mente perplexa. Desolada, tombei contra a cabeceira da cama e olhei ao redor outra vez, observando mais detalhadamente o meu entorno. Tudo emoldurava o cenário perfeito da data que Cordelia me dera. Não havia dúvidas de que realmente estávamos no final do século XIX, bem no meio do reinado extravagante da Rainha Irene de Velândia. A decoração neoclássica e suntuosa, os móveis luxuosos, minhas roupas e as de Lila, o modo como ela falava... tudo estava exatamente como estaria se eu tivesse entrado numa máquina do tempo; e parecia mesmo que era o que havia acontecido.

Me levantando da cama depressa, eu passei disparada por Lila até a janela. Abrindo as cortinas, encarei o lado de fora e contra tudo em que já havia acreditado na vida, meus olhos depararam-se com uma vasta e verde charneca, e não com os prédios e o asfalto da cidade. No meio de toda vegetação rasteira e arbustos, apenas duas árvores despontavam majestosas e solitárias, assim como as que havia em minha rua. Ao redor da grande casa, um belo jardim era zelado por dois homens e uma senhora, todos vestidos condizentemente com o ano de 1898. Pressionando meu rosto contra o vidro da janela para ver mais, constatei que estava, no mínimo, no primeiro andar da construção. Um fio da fachada grandiosa passou por meus olhos com sua pintura verde e vibrante, varandas claras e grandes janelas; exatamente como o prédio em que eu morava, mas claro, muito maior e luxuoso.

— O que há com você, Mysie? Vamos, chega disso! — Lila continuava a resmungar, mas eu a ignorei e me esgueirei de volta para o quarto.

Eu esquadrinhei o cômodo, passando direto para o grande guarda-roupa. Abrindo suas portas, encontrei uma enorme quantidade de vestidos em tecidos requintados, além de camisolas repletas de fitas, rendas e babados. Havia também espartilhos, meias finas, cintos e chapéus extravagantes como o de Lila. Na penteadeira, frascos de perfume muito antigos e cremes desconhecidos repousavam junto às escovas de cabelo, e ao abrir as gavetas, me deparei com joias estonteantes.

Apavorada ou inerte — já não sabia mais dizer —, eu virei para Lila. Ela continuava sentada na cama com os braços cruzados e a mesma expressão desconcertada de antes, mas agora parecendo certa de que eu estava louca. Eu mesma já não tinha mais tanta certeza da minha sanidade quando, recostando na penteadeira, corri as mãos pelo cabelo com o ar escapando dos pulmões em lufadas.

— Isso não é possível... — murmurei para mim mesma, sentindo o medo crescer.

Outra vez, eu quis fechar os olhos e acordar daquele delírio. Porém, para minha infelicidade, tudo era perfeitamente tangível. Eu não estava sonhando. Não estava morta ou louca. Eu quisera tudo de volta, mas tudo parecia incluir o tempo também.

Droga, xinguei em minha mente.

Eu não queria crer, mas se aquilo era mesmo real, Madame Lover atendera ao meu desejo... me transportando direto para aquela loucura no meio do ano de 1898.

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Prepare seu traje de época, amore mio, pois acabamos de voltar no tempo! 💃🏽

As coisas vão ficar diferentes por aqui a partir de agora, então espero que tenha gostado do capítulo. Se gostou, deixe seu voto e seu comentário, fico muito feliz em saber sua opinião! 💜

Obrigada pela leitura e até as cenas dos próximos capítulos! 🔮

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