13 • Traga o déjà-vu de volta
Sob a desculpa de que estava muito cansada pelo passeio no centro de Bronshire, eu me refugiei em meu quarto imediatamente após o jantar, e embora estivesse realmente esgotada, não consegui dormir. Eu revirei de um lado para o outro na cama, mas por mais que me esforçasse para fechar os olhos e relaxar, não tinha sono. Essa simples tarefa, que há pouco tempo eu executava com tanta frequência e facilidade, agora parecia impossível. Pensava na minha volta no tempo, em papai, em Benjamin, nas palavras da Srta. Rosie, no papel secreto... pensava até mesmo em lorde Chapmont. Todas as informações reverberavam em minha mente como uma interminável algazarra de vozes a qual eu não conseguia calar. Me sentia sem ar. Espremida em meu corpo.
Estava sufocando.
Desistindo de tentar dormir, eu impacientemente virei de barriga para cima e encarei o teto claro. Inspirei e expirei fundo, tentando acalantar as batidas frenéticas do meu coração e abafar a sensação de que algo ruim estava prestes a acontecer. Era como um presságio, um agouro, o sentimento ansioso que premeditava um colapso. Eu conhecia aquela sensação e não sabia se ela era ainda pior do que a melancolia vazia em que estivera até encontrar Madame Lover. De qualquer forma, precisava me acalmar, então deixei que meus olhos vagassem pelo cômodo em busca de qualquer distração.
Logo, eu encontrei no lustre pomposo que pendia do teto o devaneio que buscava. A luz da lua que atravessava as cortinas translúcidas incidia nos pequenos cristais da decoração, que a devolviam para meus olhos em feixes brilhantes. O vento assobiava pelas brechas da janela e eu podia até mesmo escutar o farfalhar das folhagens do jardim no silêncio da noite — noite que devia estar linda do lado de fora.
Respirando fundo, eu me levantei da cama e caminhei na direção do guarda-roupa. Eu apanhei um dos vestidos mais simples que encontrei e o coloquei pela cabeça, por cima da camisola e tudo. Depois, peguei um xale para me proteger do frio e não me preocupando em calçar nenhum sapato, saí sorrateiramente do quarto.
Um único rangido agudo e baixo foi o que escapou das dobradiças da porta para denunciar minha escapada. Espiando o lado de fora, eu me certifiquei de que o corredor estava vazio antes de dar os primeiros passos no vão. Tudo estaria completamente escuro se não fosse por uma ou duas luzes amareladas de lanternas a gás no caminho, e eu segui o rastro delas até o salão de recepção. De dia, o lugar parecia majestoso e monárquico; à noite, era como um grande mausoléu de veludo vermelho e ouro. Eu olhei para os cantos e novamente confirmando que estava sozinha, fui rápido até a porta de entrada da casa. Receosa, toquei a maçaneta dourada com cuidado, ponderando se tentar abri-la faria muito barulho na quietude da noite. Contudo, com apenas um ligeiro toque dos meus dedos, a maçaneta respondeu e girou delicadamente.
Eu prendi a respiração, surpresa que a porta estivesse aberta. Quando uma pequena brecha na passagem me permitiu ver a luz das estrelas do lado de fora, tomei coragem e empurrei a madeira pesada. O umbral era tão bem construído que mal soou um ruído sequer. Sem demora, meu rosto encontrou a brisa muito fria da noite e eu suspirei fundo, relaxando os ombros tensos. Era tarde e pensei em me esgueirar até o jardim, sentar-me num dos bancos de mármore e observar o horizonte como costumava fazer da varanda do meu apartamento. Até dei um passo em direção aos degraus amplos da entrada com os pés desnudos no piso frio, mas não fui muito longe.
— Mysie? — Uma voz baixa e terna rasgou a quietude.
Eu paralisei onde estava. No primeiro momento, o susto e o medo obnubilaram meus sentidos. Ainda que a voz soasse familiar como a minha própria, meu coração disparou e eu me vi estática, um pé na frente do outro em um passo inacabado. No segundo seguinte, finalmente virei e meus olhos encontraram meu pai a alguns metros de mim, meio encostado ao guarda-corpo da varanda de entrada.
Resfolegando de alívio, eu não evitei sorrir um pouco. Papai estava em roupas informais e parecia ter sido tão pego de surpresa pela presença de outra pessoa ali quanto eu. Seus olhos receosos denunciavam o flagrante, mas como se assimilasse minha presença, ele sorriu, divertido. O som das nossas risadas nervosas encheu o ambiente.
— Filha, você quase me matou de susto! O que está fazendo aqui fora tão tarde?
— Fui pega pela insônia — respondi rapidamente. — Mas e o senhor?
— Temo que esteja aqui pelo mesmo motivo que você. — Ele disse e riu, voltando a recostar-se totalmente no guarda-corpo.
Também aliviando o peso do corpo na madeira da varanda, eu apertei o xale mais forte contra mim. A brisa assobiava ao redor da enorme casa e as folhas dos montantes de azaleias farfalhavam, fazendo cócegas aos ouvidos. Olhando para papai de relance por um momento, eu me senti tão feliz que me permiti esquecer todos os pensamentos espetando minha mente como agulhas. Ele estava bem e saudável, uma imagem totalmente diferente da que eu vira pela última vez em meu século de origem, e aquilo enchia meu coração de genuína alegria.
Percebendo que eu o observava, papai também me encarou e sorriu, parecendo achar graça do meu olhar totalmente mesmerizado.
— Está mesmo bem, pequena Mysie? Você anda dispersa demais até mesmo para uma moça apaixonada.
Eu ri baixinho, ponderando as palavras. Era claro que papai se referia a Benjamin, mas eu estava com ele há tanto tempo que estar apaixonada soava engraçado de alguma forma. Um pouco sem jeito e ansiosa, eu disse a mim mesma que era assim que deveria ser; afinal, eu e Ben havíamos estado juntos por quatro anos. Era comum que as faíscas da paixão apagassem um pouco, repeti em minha mente, sorrindo amarelo.
— Eu estou bem. Só um pouco sobrecarregada com tudo que está acontecendo, apenas isso. — O tranquilizei. No fim, não era mentira ao todo.
— Eu entendo, temos tido realmente muito para lidar esses dias. E eu sinto muito que, além de tudo, você e Lila ainda precisem assumir o papel de anfitriãs. Vocês já devem estar com a mente atribulada o suficiente pela votação. — Ele suspirou e parou um pouco. — Eu gostaria de ter evitado isso.
Eu fitei papai e meus dedos remexeram no bordado do xale, inquietos. Agora, ele parecia verdadeiramente cansado e reflexivo. Eu podia sentir sua mente atribulada e por trás do semblante sereno, repousava uma profunda preocupação.
— Há algum problema, pai? — perguntei num fio de voz, baixo o suficiente para que nem sequer os arbustos do jardim ouvissem.
Desviando os olhos dos meus para encarar a charneca, papai respirou fundo. Ele balançou a cabeça em negativa e uma brisa fez seu cabelo esvoaçar para trás, livrando o rosto maduro das mechas meio grisalhas.
— Coisas do ofício. Não é nada com que precise se preocupar.
Antes que eu pudesse responder ou perguntar mais algo, papai passou um braço por meus ombros e me abraçou, o olhar preso ao horizonte. Apesar das incógnitas e dos segredos que eu via que ele claramente escondia, sua presença era tão reconfortante que me calei e tive vontade de chorar. A saudade dele ainda estava arraigada em meu peito, pulsando como uma ferida aberta. Ele era tudo que eu mais amava no mundo.
Engolindo o choro como uma bola de pregos, eu inspirei o ar puro e gelado da noite. Naquele breve e pacífico minuto de silêncio, deixei que minha cabeça divagasse em tudo que estava acontecendo. Então, a imagem do papel secreto que lorde Chapmont trocara com papai me veio à mente e tornou-se impossível não perguntar mais nada. Rompendo a quietude, eu remexi nos braços do meu pai e virei meu rosto para encará-lo outra vez. Queria questionar diretamente sobre o papel furtivo, mas sabia que não receberia respostas dele, assim como não as conseguira com Chapmont. Talvez perguntas menos incisivas surtissem mais efeito.
— Não lembro de já ter perguntado por que eles estão aqui — comecei, a voz baixa. — Digo, os hóspedes e por que estão em nossa casa até a votação.
Era um tiro no escuro, eu sabia. Uma pessoa devia ter ciência do porquê havia hóspedes em sua casa. Papai franziu um pouco o cenho e quando eu comecei a pensar em justificativas para meu questionamento, ele respondeu com suavidade:
— Pelo trabalho, é claro. A votação se aproxima e muito ainda precisa ser acertado, o que é mais fácil de se fazer pessoalmente. Há coisas que não podem ser resolvidas por cartas.
— E é apenas por isso? — indaguei de novo, cética.
Com um sorrisinho derrotado, meu pai se afastou um pouco. Seus olhos ficaram divertidos, como se ele já esperasse que eu não fosse me satisfizer com sua resposta.
— Na maior parte, sim, é por isso — asseverou. — Por outro lado, Thomas veio com o filho para tentar persuadi-lo a seguir seu caminho no Parlamento. Harold, por sua vez, veio por Lila. — Nós rimos. — E Benjamin, bem, não preciso lhe dizer que ele veio mais por você do que pelo ofício. No fim, estou mesmo é totalmente cercado por lobos cerceando minhas meninas.
Nossas risadinhas ecoaram pela varanda e papai agora parecia menos tenso. Ao longe, um grasnar alto rasgou o silêncio imaculado da charneca.
— E lorde Chapmont? — perguntei de repente.
Meu pai virou outra vez para me ver, agora com curiosidade estampada em suas feições serenas. Duas linhas formaram-se na sua testa enquanto ele se apoiava em um cotovelo.
— Aaron veio em nome do pai doente, você já sabe. Patrick participa ativamente desse grupo no Parlamento e como o gentleman* que é, achou de péssimo tom ausentar-se completamente. Então, ele enviou o filho para garantir que ao menos um Chapmont esteja entre nós, o que achei ótimo, pois realmente adorei o menino.
— E confia nele?
As palavras deslizaram pelos meus lábios quase que por vontade própria. Estranhando a pergunta, papai franziu o cenho.
— Em Aaron Chapmont? Tanto quanto confio em seu pai — disse sem hesitar. — Mas por que todas essas perguntas? Onde está querendo chegar, pequena Mysie? Eu bem sei que é esperta demais para ficar soltando palavras ao vento — Ele falou e riu.
Contendo um sorriso, eu neguei com a cabeça e dei de ombros.
— Eu só queria entender melhor o que está acontecendo. As reuniões, a votação, os acordos...
— Mysie. — Papai me interrompeu, a voz repentinamente séria. O humor leve havia sumido do seu rosto e dera lugar à pura preocupação. — Minha filha, se é por esse caminho que está tentando enveredar, por favor, pare. Sabe que não posso contar esse tipo de coisa a você. Nem a você, nem a Lila. Há coisas... — E parou, tomando uma curta lufada de ar. — Há algumas coisas que vocês estão mais seguras se não souberem. Por favor, não voltaremos a falar nisso.
Virando-se e dando o assunto por encerrado, papai encarou o jardim colorido de azaleias, as costas retesando pelo rumo da conversa e pela brisa fria que rodopiou entre nós. Enquanto isso, assustada, eu permaneci na mais completa das quietudes. Meu pai dificilmente era tão rígido com alguma coisa, mas havia falado muito sério. Tudo somente ficava mais estranho e meu coração acelerou de receio. Eu virei e também fitando a paisagem, remexi os dedos descalços no chão gélido. Ainda mais longínquo, outro grasnar soou, dando vida à charneca e tornando-se a trilha sonora das minhas dúvidas.
O que havia de tão perigoso acontecendo que papai não podia contar? Por que ele ficara tão na defensiva assim que mencionei as reuniões e os acordos? Em minha mente, a voz de lorde Chapmont ressoou outra vez: não sou seu inimigo. Mas se ele não era, então quem? E por que havia de ter um inimigo entre nós?
Outra vez angustiada até a minha última entranha, eu senti um mau agouro valsar sobre minha cabeça e enroscar em meus pés. Tentei reprimir o sentimento, como sempre fazia, mas ao invés de abrandar, ele pareceu ganhar vida e forma com o estalar de uma tosse úmida vinda de papai. Virando-me imediatamente para checá-lo, eu o avistei levemente debruçado sobre o guarda-corpo, tossindo sem cessar enquanto cobria a boca. Outra mão repousava em seu peito, os dedos esfregando o tecido da camisa sobre a pele como se quisesse cessar o quadro, mas sem sucesso.
— Papai, está bem? — Eu me aproximei mais, segurando-o pelos cotovelos.
Ele assentiu com a cabeça, mas não pode falar. Uns últimos acessos de tosse o atingiram antes que ele finalmente me olhasse com o rosto vermelho e ofegante.
— S-sim — murmurou, totalmente rouco, mas já ajeitando a postura e se erguendo. Tomando duas lufadas de ar, ele me entregou um esboço de sorriso e continuou num tom ainda mais sussurrado: — Estou bem, isso é apenas efeito da brisa fria.
Em silêncio, eu acenei em concordância, mas, no fundo, o mau agouro revirou ainda mais meu estômago. Aquela cena não me era estranha: acessos de tosse incontroláveis, falta de ar... Eu havia visto tudo aquilo logo antes de papai adoecer e descobrir o câncer de pulmão que tiraria sua vida poucos meses depois. A sensação de déjà-vu foi tão intensa que minhas mãos adormeceram de pavor. Não era possível. Não podia ser. Eu o pedira de volta e eu o tinha de volta. Quais as chances de que a mesma doença o acometesse duas vezes em dois séculos diferentes? Em duas vidas diferentes?
Respirando fundo, eu sorri para papai e repeti mentalmente que tudo aquilo era apenas fruto do meu medo e do luto ainda arraigado em meu coração. Precisava apenas me acalmar e tudo ficaria bem.
— Vamos entrar, então. Está mesmo frio. — Eu disse e segurei sua mão, o puxando comigo em direção à porta.
Assentindo sem contestar, papai me seguiu para dentro da casa e trancou a porta atrás de nós. Em silêncio e sem mais uma tosse sequer, nós caminhamos pelos corredores como fugitivos de uma prisão, e ele me deixou na porta dos meus aposentos com um beijo de boa noite na testa. Seu rosto parecia mais calmo e seus olhos brilhavam como sempre.
Ele estava bem. Era claro que estava.
Me jogando na cama, eu me agarrei a esse pensamento até que ele abrandou o pressentimento ruim como uma aspirina faria a uma dor de cabeça. Contudo, algumas dores têm raízes mais profundas e apesar de não ter pensado sobre isso naquele momento, uma "aspirina" podia nem sempre resolver o verdadeiro problema.
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*(gentleman): palavra inglesa para "cavalheiro", termo que, em tradução livre, designa o homem de conduta irrepreensível, dotado de grande educação, cultura e delicadeza de trato.
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Olá, meu amor! 💜
Depois de tanto tempo, parece que a Mysie finalmente conseguiu um momentinho com o pai e ainda arranjou mais minhocas na cabeça! 🤯 O que você acha que está acontecendo por baixo de tantos segredos? Deixa sua opinião aqui nos comentários, eu amo saber o que está achando! E como sempre, se gostou, não esqueça também de deixar seu voto preciosíssimo! 💌
Obrigada pela leitura e até as cenas dos próximos capítulos! 🔮
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