10 • Traga os segredos de volta

Depois de toda a agitação da manhã, a noite caiu ligeira e furtiva como um sonho. Um pouco nervosa, eu entrei sozinha na sala de jantar, atrasada por uma sequência caótica de acontecimentos: havia me atrapalhado com o espartilho, passado por inúmeras tentativas de arrumar meu cabelo e me perdido nos infinitos corredores da casa. No fim, tudo havia me custado quase trinta minutos. Quando finalmente entrei no cômodo amplo e de iluminação amarelada onde eram servidas as refeições, todos já estavam entretidos em conversas triviais enquanto esperavam.

Todos, exceto um: lorde Chapmont.

Eu passei os olhos pela sala uma segunda vez à procura dele, mas apenas achei papai, Thomas e Ben conversando na varanda, Lila e Harold sorrindo perto da mesa e os criados em sua movimentação habitual. Até agradeci mentalmente por Cordelia estar distraída naquele momento, pois havia a evitado o dia inteiro depois da discussão com lorde Chapmont na charneca, me esgueirando de possíveis sermões. Enquanto isso, havia aproveitado para gastar meu tempo vagando pelos cômodos e corredores da casa, destrinchando o lugar onde vivia. No fim, concluí que era uma residência imensa e cheia de detalhes, mas um tanto solitária até quando estava repleta de hóspedes.

Notando-me entrar na sala, meu pai abandonou a conversa com Thomas e Ben se aproximou de mim. Ele parou diante do meu corpo estático perto da porta e repousou uma mão em meu ombro, sorrindo ternamente com os olhos de quem tinha o mundo a oferecer.

— Minha filha, já estava ficando preocupado que não viesse jantar. — Ele segredou, cuidando para que apenas nós dois ouvíssemos. — Está tudo bem? Teve algum problema? Me parece tão tensa desde ontem.

— Está tudo bem. — Tratei de tranquilizá-lo, abrindo um sorriso. — Me desculpe o atraso. Foi apenas meu cabelo que me deu um pouco de trabalho hoje, não se preocupe.

— Você sabe que eu sempre me preocupo. — Ele brincou, ajeitando uma mecha que ainda escapava do meu coque. Por um instante, pareceu divagar em lembranças e, após um segundo, comentou carinhosamente: — Hoje você está muito parecida com a sua mãe.

— Mas, papai — murmurei, rindo. — Eu sou idêntica ao senhor.

— Por fora, realmente. — Ele concordou, os ombros balançando com a risada. — Mas, nesse caso, estou falando desse brilho nos olhos que você tem como ela. Quando sorri, é como se eu a visse o fazendo, livre e alegre... — E respirou fundo, suas feições tornando-se ainda mais ternas. — Ela estaria orgulhosa de você.

Com as últimas palavras de papai, eu senti que podia chorar. Minha mãe havia morrido logo após meu nascimento e, durante toda minha vida, havia sido apenas eu e ele. E, apesar do meu pai ter se esforçado imensamente para preencher todas as lacunas, nunca havia deixado que eu me esquecesse dela. Ele plantara a memória de mamãe tão doce em meu coração que, naquele momento, ouvi-lo dizer que eu parecia livre e alegre como ela soou como uma traição quando tudo que havia feito nos últimos meses era estar triste. Atingida pelo sentimento, eu engoli o choro e respirei fundo para falar, mas não pude fazê-lo quando um ruído chamou nossa atenção.

Atrás de mim, a porta da sala rangeu em suas dobradiças e abriu. Deglutindo as lágrimas e virando para ver, eu flagrei o corpo alto de lorde Chapmont atravessando a passagem. Elegante como sempre, ele passou uma vista sutil em todo o lugar, mas deixou sua atenção cair sobre papai e eu. Meus dedos logo remexeram na expectativa de uma possível hostilidade, pois era a primeira vez que nos víamos desde a discussão na charneca. No entanto, ele apenas me cumprimentou como se nada tivesse acontecido e se dirigiu rapidamente ao mais velho.

— Me perdoe pelo atraso e por tardar o jantar, Vossa Graça. Recebi agora uma carta do meu pai e, dado seu estado de saúde delicado, não pude adiar a leitura.

— Não há o que perdoar, meu jovem, não se preocupe. — Papai o tranquilizou. — Está tudo bem com seu pai? Aconteceu algo com Patrick?

Lorde Chapmont não respondeu à pergunta imediatamente e seus olhos ficaram um pouco cabisbaixos, mas ele logo colocou um sorriso amistoso no rosto e disfarçou.

— Meu pai está bem, Vossa Graça, apesar de não ter tido melhoras em seu quadro. Ele apenas lhe enviou novamente um abraço amigo e seu pesar por não estar aqui.

Assentindo, meu pai o entregou um sorriso tenro e estendeu a mão para um aperto. No mesmo instante, tirando as mãos dos bolsos, o mais jovem a tomou e tudo não durou mais que um segundo. Para qualquer outro no cômodo, o gesto não havia passado de uma cortesia normal, mas de tão perto e num piscar inoportuno, eu vi: entre os dedos longos de lorde Chapmont, um pequenino papel dobrado e escondido passou para a mão do meu pai sem hesitação. Em seguida, papai levou a mão ao fraque para aparentemente ajeitá-lo e, quando voltou a deixá-la à mostra, o papelzinho não mais estava nela. Um segundo depois, ele afastou-se um pouco e sorriu.

— Bem, já que está tudo em conformidade, creio que devemos jantar — disse normalmente, acenando para um criado em sinal para que pusesse a refeição.

Parada e inexpressível, eu precisei prender a respiração no peito para conter minha surpresa. O que estava acontecendo? Que papel era aquele? Seja o que fosse, eu sabia que não deveria ter visto. Meus dedos suaram e eu passei a vista rápida nos dois homens inabaláveis ao meu lado. Papai e lorde Chapmont pareciam não ter notado minha ciência da situação, e eu queria que continuasse daquele jeito. Atordoada, mas abrindo meu mais indiferente sorriso, eu recuei um pouco, prestes a pedir licença e me retirar. Para minha sorte, nesse exato instante, Lila também se aproximou de nós e, após cumprimentar Chapmont, me arrastou para a mesa.

Desnorteada, eu observei Cordelia tomar uma cadeira para si. Seguindo seus passos, apanhei o assento ao seu lado, mas antes que pudesse me sentar, um olhar espantado e confuso dela me impediu.

O que está fazendo? — Ela cochichou para mim. — Esse não é o seu lugar.

— O quê?

— Ora, por acaso esqueceu? — Sua voz não passava de um fio dessa vez, mesmo eu mal podia ouvir. — Sempre nos sentamos em pares do mais velho ao mais novo em jantares formais, começando pela direita. Perdeu o juízo novamente?

Levantando os olhos para analisar a mesa e a disposição de lugares, eu vi papai acomodando-se na cabeceira, com Thomas e Benjamin ao seu lado direito. Imediatamente ao lado deles estava Harold e, cochichando comigo, Lila. Do outro lado da mesa, sozinho, lorde Chapmont ajeitava a cadeira para sentar-se.

Era claro, pensei. Eu e o lorde insuportável éramos o par mais jovem dali.

Eu quase bufei de descontentamento, mas flagrando o fitar desconcertado de Cordelia em mim, me limitei a assentir e caminhei discretamente até o outro lado da mesa. Devia ser mesmo algum tipo de castigo que precisasse sentar-me ao lado de lorde Chapmont. O destino tinha as formas mais cruéis e sutis de maltratar seus prisioneiros.

Calada e receosa, eu me acomodei em meu infeliz lugar, apanhando o guardanapo e o pondo no colo. Senti a atenção de Chapmont em mim por um segundo, mas naquele ponto, ele não era o único a me observar: do outro lado da mesa, Benjamin também me analisava cuidadosamente. Capturando o olhar do segundo, eu sorri para ele, que me respondeu da mesma forma.

— As honras são sempre suas, Thomas. — Meu pai disse, tomando a atenção, mas logo passando a palavra ao outro duque.

O mais velho dos Dumbleton concordou com a cabeça e erguendo suavemente as mãos, de olhos fechados, recitou:

— Que o bom Deus abençoe nossa refeição e nosso sono suave após ela. Estamos sempre gratos a Ele.

Um longo e sonoro "amém" ecoou pelo cômodo e, ainda com a mente entumecida, eu deixei meus olhos caírem para o prato recém posto na mesa. Algo sobre como Thomas havia pronunciado as bênçãos somente não soava... certo. De alguma forma, sua voz não condizia com o que havia sido dito e, aparentemente, essa era só uma das muitas coisas que não se encaixavam ali.

Tentando tirar minha mente do papel secreto e do mau agouro que pairou sobre minha cabeça, eu me concentrei na comida, ainda que a sensação estranha já tivesse irremediavelmente impregnado meu coração e levado todo meu apetite. Depois disso, os pratos chegaram e se foram como um borrão. Eu já estava mais que satisfeita quando uma jovem pôs à minha frente a sobremesa: um pequeno prato dourado com um tipo de gelatina laranja e decorada por cerejas.

— Vossa Graça, fiquei impressionado no passeio pela sua bela charneca hoje. — Harold soltou casualmente, iniciando uma conversa com papai. Eu levantei os olhos da comida para olhá-lo. — Sua propriedade está ainda mais bonita do que quando a vi pela última vez. Nunca havia visitado a área das urzes-roxas, é realmente uma bela vista.

— Eu também adoro as urzes. — Papai concordou. — Embora me sinta tentado a dizer que gosto mais do meu pequeno jardim do que de toda terra restante.

— Você é suspeito para falar do jardim, Wilson! — Thomas disse, já rindo. — Por pura coincidência, ele tem apenas sua flor preferida, não?

Todos riram e a conversa continuou entre Thomas, Harold e papai. Em silêncio, eu olhei de soslaio para Ben. Ele estava muito silencioso e não havia dito mais que duas ou três coisas triviais durante a refeição. Na verdade, tudo estava mais esquisito do que deveria estar naquele jantar, ainda mais estranho do que normalmente seria a segunda noite após literalmente voltar no tempo.

— Bem, vejo que o passeio pela manhã foi mesmo uma excelente ideia. — Papai falou novamente, me libertando dos meus pensamentos. — E você, Aaron, o que achou?

A pergunta pairou no ar e disparou sirenes em minha mente. Minha respiração freou na garganta e meus olhos prenderam-se ao prato, tentando não entregar meu susto. Um mísero segundo de silêncio se fez, nada mais que uma pausa habitual, mas isso já foi o suficiente para fazer um tufão revirar minha cabeça.

Se lorde Chapmont contar sobre a discussão na charneca, pensei, eu estou encrencada. Muito encrencada.

Com os pensamentos atordoados, toda concentração que eu tinha na minha sobremesa se esvaiu. Em seguida, tudo aconteceu num piscar de olhos e, ainda assim, com ares de câmera lenta: num movimento descuidado, eu deixei a pequena colher passar pela gelatina, mas ao invés de atravessá-la, o talher desordenado a empurrou e o barulho do metal colidindo com o prato anunciou o desastre. Então, para minha infelicidade e total desgraça, o doce deslizou da louça dourada direto para a taça de vinho tinto de lorde Chapmont.

Um splash da bebida respingou em nós dois. Tão assustado quanto eu, Aaron recuou um pouco, mas não a tempo de impedir a catástrofe: a taça virou pelo peso da sobremesa e o vinho derramou-se sobre a mesa e em nós, manchando meu vestido, as roupas dele, as cadeiras e tudo mais no caminho. O líquido frio arrepiou minha pele e um gritinho de Lila foi tudo que ouvi antes de me dar conta do que fizera.

Droga, minha mente suspirou.

Era um total desastre.

Rapidamente, todos se levantaram da mesa para ver a bagunça, exceto lorde Chapmont e eu. Ambos estavam estatelados demais para esboçar qualquer reação.

— Meu Deus! Vocês estão bem? — Papai perguntou.

Chapmont assentiu e finalmente levantou-se, analisando a situação. Eu também despertei e fiz o mesmo, estudando a bagunça que havia causado.

— Está tudo bem, não se preocupe. Foi um acidente. — Ele tranquilizou, virando-se para mim em seguida. — A senhorita está bem, Lady Greaves?

Eu sopesei rapidamente o cenário: estragara nossas roupas, a mesa e o jantar, mas nada estava quebrado e ninguém saíra ferido além do meu orgulho.

— S-sim — respondi por fim, erguendo meus olhos para encará-lo. Senti meu rosto ruborizar, vermelho como as cerejas que um dia estiveram na minha sobremesa. Estava mortificada. — Céus... me desculpe.

— Está tudo bem. Foi apenas um acidente. — Ele repetiu.

Ninguém notou, mas eu havia percebido uma nota de ironia e um tanto de acusação nas últimas palavras de lorde Chapmont. E, na verdade, quer tivesse sido para impedi-lo de contar sobre a discussão ou pela imensa antipatia que nutríamos um pelo outro, talvez ele realmente tivesse motivos para acreditar que eu havia feito a cena de propósito, ainda que não fosse o caso. Me sentindo ainda mais envergonhada e um pouco irritada, eu respirei fundo e desejei que minhas bochechas não estivessem tão vermelhas.

— Lady Greaves, está bem? — Benjamin repousou uma mão em meu ombro.

Piscando com força como se despertasse de um pesadelo, eu assenti e sorri fraco para ele. Seus olhos estavam preocupados.

— Meu Deus, ainda bem que a taça não quebrou e os machucou! — Lila resfolegou. Analisando a enorme mancha de vinho em meu vestido, ela acenou para alguém na sala e disse: — Srta. Rosie, ajude a Mysie com isso, por favor.

Num segundo, a jovem criada que esbarrara em mim mais cedo chegou até nós. Ela me saudou rapidamente e jamais me fitando nos olhos, pediu que a acompanhasse. Seu corpo ainda estava tenso como da última vez que a encontrara e seus olhos, amedrontados como se estivesse em perigo constante. Mesmo quando deixei a sala e segui com ela para meu quarto, abandonando o alvoroço do jantar com muitos pedidos de desculpas, foi num silêncio brutal. Tinha até medo que, se ela falasse algo, fosse um pedido de socorro, porque isso era tudo que sentia em seus olhos.

Assim que fechei a porta do quarto, a Srta. Rosie pediu que eu lhe entregasse meu vestido para lavar imediatamente, apesar das minhas tentativas de tranquilizá-la quanto a isso. Por fim, resignada e atendendo à urgência dela, eu puxei a peça pela cabeça e a repousei no banco da penteadeira. Pelo espelho, a via de cabeça baixa atrás de mim. Ela permaneceu na mais absoluta quietude e somente se mexeu quando comecei a desatar o espartilho, pois toda minha combinação também estava suja de vinho.

— Deixe-me lhe ajudar, milady — finalmente falou, se apressando para desfazer as fitas do meu corset.

Eu aceitei sua ajuda e respirando fundo, deixei minha mente se esvair. Fizera uma enorme bagunça, vira coisas que não devia e ainda havia cometido uma das maiores gafes da minha vida. Não sabia como encararia lorde Chapmont depois daquilo. Nós já mal nos aturávamos e agora talvez a situação se tornasse insustentável, o que era um problema quando ele ficaria tanto tempo naquela casa.

Eu virei e revirei esses pensamentos até que, de relance, flagrei a Srta. Rosie me observando pelo espelho com seus olhos azuis estranhamente familiares.

— Srta. Rosie? — chamei. Ela desviou rapidamente o olhar para o chão. — Me desculpe a intromissão outra vez, mas está mesmo tudo bem?

— Estou bem, milady. Obrigada pela preocupação. — Ela respondeu, mas de forma tão automática e mecânica que ninguém no mundo teria acreditado.

Terminando de folgar meu espartilho, a Srta. Rosie o tirou pela minha cabeça, tão nervosa que ignorou os botões da frente da roupa. Ela pôs o corset em cima da cama e embrenhou-se atrás do biombo, de onde trouxe um roupão acetinado que entregou a mim. Então, virou-se de costas para que eu tirasse a combinação suja, o que fiz rapidamente. Me enrolando no roupão e lhe entregando a roupa manchada, observei enquanto ela apanhava o vestido do banco da penteadeira.

— Tem certeza de que está bem? — insisti. Não era normal que alguém estivesse tão assombrado o tempo todo. — Há algo errado?

Ao ouvir minha pergunta, a Srta. Rosie levantou os olhos das roupas sujas. Quando ela finalmente me encarou, eu podia jurar que, se já não tivesse eu mesma presenciado o medo avassalador da morte, jamais havia visto temor tão cru e profundo em minha vida. Fiquei angustiada e achei que a ansiedade por umaresposta fosse me rasgar ao meio até que ela abriu a boca receosa e disse tãobaixo que quase não ouvi:

— Há muitas coisas erradas aqui, milady. — Suas mãos tremiam. — Mas lhe imploro que não queira descobrir nenhuma delas.

Então, apressada outra vez, ela me reverenciou e saiu do quarto, deixando para trás o silêncio e o rastro do seu medo impregnados pelo cômodo como o perfume fugaz da morte.

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Oi, amore! 💜

Depois desse capítulo cheio de segredos, o que você acha que está acontecendo no mundo ~perfeito~ da Mysie? Tem algum palpite sobre o papel secreto ou sobre o que a Rosie esconde? 🤫 Se sim, deixe aqui nos comentários! Fico mais do que feliz em saber sua opinião. 💌

Obrigada pela leitura e até as cenas dos próximos capítulos! 🔮

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