Vol. 19

Damra manteve um certo afastamento. Sua expressão revelava o impasse que havia se formado, entre mim e o Mulato.

Minha pistola estava apontada para ele e àquela distância era impossível errar. De sua face brotava o cinismo e aquilo só acrescia o meu desprezo por ele. Minha mão estava firme e o dedo coçava o gatilho.

— Já vimos esse filme rapaz. — Disse usando de ironia. — O desfecho não foi nada bom para você. — Completou, enquanto seus olhos hora estavam em mim hora em Damra.

Sentimos um breve deslocamento de ar. Minutos depois nossos ouvidos captaram o som dos lupinos. Eles haviam neutralizado os esforços de Mason e conseguiram escalar a grande corrente. Mais cedo ou mais tarde estariam todos aqui. Carmelo, ciente da breve chegada de seus comandados, exibiu um sorriso vitorioso.

Neste momento pude perceber minha mente sendo invadida. Carmelo tentava ordenar meus movimentos, como outrora, tendo como desfecho a morte de Mason. Minha mão tremia levemente, mas desta vez não precisei me esforçar muito para coibir o seu controle mental. Carmelo não podia mais me manipular, provando que o feitiço havia se extinguido. A filha de Kalisto havia me dito a verdade, depois de minha morte, estava livre para decidir.

Olhei discretamente para Damra, que mantinha um ar de suspense, sem saber o que esperar daquele momento. Logo em seguida voltei a fitar o testa de ferro, que havia mudado sua expressão, percebendo, enfim, que algo em mim havia mudado. Seus estímulos mentais haviam falhado e agora era ele que ostentava a dúvida.

— Eu decido! — Falei de maneira seca.

O meu dedo pressionou o gatilho e um projétil foi liberado acertando o ombro de Carmelo. O impacto o fez cair. Incrédulo, ergueu-se. O sangue manchava sua roupa. Naquele instante seus olhos mudaram de cor. O grande lobo negro chegaria logo. Antes que isso pudesse ocorrer, descarreguei o pente da pistola sobre ele, que tombou inerte a nossa frente.

O cano da pistola fumegava no momento que a descartei.

Me aproximei do corpo.

— Ele não está morto. — Disse Damra.

— Ele me parece bem morto... — Rebati.

— Você apenas o retardou, além de estragar sua roupa. — Replicou Damra, sendo sarcástica.

— Não importa, ele mereceu isso. Esta foi a minha homenagem póstuma ao Mason.

Damra me olhou discretamente. Entendeu que se tratava de um acerto. Precisávamos deixar aquele lugar imediatamente, antes que os outros lupinos chegassem. Adentramos o passadiço sem olhar para trás. O corredor era estreito e mantinha uma claridade incomum, bem diferente das outras galerias. Definitivamente, aquela torre era um local estranho.

Não estávamos mais sozinhos naquele corredor. Os lobos haviam chegado. Usamos nossos dons para imprimir um ritmo mais acelerado. Os urros e grunhidos eram estridentes, sendo potencializados pelo eco que reverberava pelo corredor. Olhamos brevemente para nossa retaguarda e conseguíamos visualizá-los.

Para nossa sorte avistamos a saída. Assim que cruzamos o fim do corredor tivemos uma ingrata surpresa. Hanna e seu filho Vishal nos aguardavam. Com eles, uma infinidade de lobos, ávidos por um simples comando. Nosso fim estava diante de nossos olhos. Minutos depois o grupo que nos perseguia chegou, fechando o cerco. Não havia muito o que fazer. Lutar não seria a melhor escolha, pelo menos não naquela hora.

— Ora ora... — Hanna adiantou-se. — Vejo que meus esforços para o matar não deram resultado, mas ao invés de se manter oculto, decidiu vir até os meus domínios. — Hanna mantinha o ar aristocrático, ostentando sua verdadeira aparência. Apesar de nefasta, sua beleza era hipnotizante. O fino tecido que cobria seu corpo revelava através de sua transparência a nudez de um corpo perfeito.

— Por todos esses anos acreditei que o meu pai estava morto, mas ele está aqui, na Cidade Escarlate, cativo. Me leve até ele! — Exclamei, fazendo com que Vishal desse um passo à frente, sendo contido ligeiramente por sua mãe.

— Tudo no seu tempo Rick. — Hanna aproximou-se fitando Damra, a filha de Kalisto. — Que bela jovem. — Neste momento Damra revelou seus caninos, arrancando de Hanna um sorriso malicioso.

— Onde está Kalisto?! — Inquiriu Damra.

— Por que se importa com ele?

— Ele é o meu pai sua desgraçada! — Agora foi a vez de Damra avançar. A contive a tempo. Sua ousadia gerou um breve tumulto que foi silenciado logo em seguida.

— Um encontro familiar... — Respondeu com ironia. — Kalisto está no lugar que merece, da mesma forma que vocês estarão. — Sua voz se tornou áspera. — Levem eles daqui! O coloquem em locais separados. Em breve saberei o que fazer com eles.

Damra foi levada. Em seguida, Vishal se aproximou, e subitamente me golpeou na boca do estômago. Para a minha surpresa o golpe doeu. Imerso em tosses, fui abaixo, me ajoelhando de maneira forçosa.

— Você está diante do senhor desta Cidade! Precisa se ajoelhar! — Exclamou Vishal.

Assim que o encarei, um novo golpe me levou ao chão.

Algo estava em minha mente, conseguia sentir. Estava longe, quase um murmúrio, imperceptível aos ouvidos comuns, mas eu podia perceber. Aquilo me acordou. Meus olhos ainda vagos não atentaram para o local. Ao tentar me mover, fui contido pelos grilhões. Grossas correntes me mantinham preso as paredes de pedra. Tentei forçar ao máximo para arrebentá-las, mas o que consegui foram marcas fundas no pulso. Estava isolado. O silêncio sepulcral era quebrado apenas pelo terlintar das correntes.

Rick... Rick...

Através do murmúrio consegui ouvir um nome. O meu nome estava ecoando pelas galerias escuras daquela masmorra.

Rick... Rick... o meu tempo é breve...

Tentei mais uma vez forçar as correntes, e novamente não surtiu efeito. Em mais uma tentativa de arrebenta-las, a pedra que segurava os grilhões se moveu. Passei a tentar retirar a pedra. Não demorou muito para que a pedra tombasse, criando uma falha estrutural da parede.

Fiz o mesmo com o outro braço. Ainda me mantinha acorrentado, mas agora possuía alguma perspectiva. O barulho das pedras chamou a atenção de dois alados, que mantinham guarda nos corredores. Ao se aproximarem projetei uma das pedras sobre um dos alados que inadvertidamente teve o crânio afundado.

O segundo, vendo o desfecho do golpe, tentou escapar, a fim de dar o alerta. Prontamente arremessei a outra pedra, que se chocando em suas costas o fez cair, inconsciente. Eles possuíam espadas. Elas eram dotadas de propriedades místicas e não tive problemas em romper os elos das correntes.

Rápido...

Furtivamente comecei a seguir a voz. Minha soltura ainda era um evento isolado, mas, cedo ou tarde notariam minha ausência. Precisava ser rápido. Aos poucos comecei a captar uma essência, ainda que fraca. Quem quer que fosse, estaria prestes a sucumbir.

Rick... Estou aqui...

Parei em frente a uma porta de madeira. O murmúrio vinha de seu interior. Ela estava trancada, mas depois de uma trombada, cedeu, me revelando um salão. No centro daquele local havia uma criatura, acorrentada. A luminosidade dos archotes era débil, impedindo em um primeiro momento sua identificação. Me aproximei, e para o meu espanto, se tratava de Kalisto, pai de Damra.

Ele estava pálido, sem os membros. Apenas o tronco estava preservado, mas em um estado deplorável. Sua pele enrugada, revelava uma velhice avançada. Abaixo dele, um ralo que recebia o seu sangue. Correntes transpassavam o seu corpo deixando-o suspenso. Estava sendo drenado e perecendo de forma lenta.

Submetendo-se a um esforço descomunal ergueu a cabeça. Seu olhar parecia perdido. Abaixo de seus olhos, olheiras imensas ornavam o rosto cadavérico. Ao abrir a boca para falar, percebi a ausência dos outrora proeminentes caninos. Eles foram retirados.

— O meu... fim... está próximo. Sei... que minha filha... está aqui... pude sentir... sua essência... — Balbuciou tais palavras com extrema dificuldade.

— Por que me chamou aqui?

— Posso sentir... sua força também... você se tornou... um de nós... — Tive que me esforçar para compreender as palavras, mesmo com os sentidos mais aguçados.

Kalisto foi tomado pelo silêncio. Seus olhos se fecharam por instantes, dando a impressão de ter feito a passagem, mas subitamente, seus olhos voltaram a abrir, e tentando conter o peso de suas pálpebras voltou a me encarar.

— O que quer de mim? — Perguntei decidido.

— Você... precisa... sorver o que sobrou... do meu sangue...

O pedido me pegou de surpresa. Recuei prontamente sem saber o que fazer.

— Desta forma acabaria por sucumbir.

— Não... importa. O meu sangue... o libertará...

Sem reação fiquei paralisado, sem resposta.

— Seja... rápido... posso sentir a presença... eles estão a caminho.

Kalisto tinha razão, também captei a energia. A esta altura, encontraram os dois alados mortos. Estava sendo procurado.

Olhei decidido para Kalisto. Me aproximei do que havia sobrado do pai de Damra. Revelei meus caninos, cravando-os em sua jugular. Kalisto quase não tinha sangue, e depois de alguns segundos, recebi o que ainda restava em seu corpo. Sua cabeça pendeu para baixo e depois de um breve suspiro, deixou de existir, sobrando apenas uma carcaça mutilada amparada pelas grossas correntes de ferro.

Recuei zonzo. Algo incomum percorria o meu interior. Trôpego, me vali da parede para não cair. Ainda entorpecido meus olhos testemunharam a chegada do grande lobo negro. Em seu corpo, cicatrizes dos ferimentos à bala. Carmelo me encarava com os caninos a mostra. Seria ele ou eu.

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