Vol. 17
A madrugada estava em seu apogeu quando me encontrei com Damra e Mason no terraço de um prédio antigo no distrito mais afastado de Parallel. Aquele ponto era o mais distante do centro da cidade e fronteiriço à Cidade Escarlate.
— Por que demorou tanto? — Perguntou Damra com um olhar impaciente.
— Depois de me alimentar, visitei um velho amigo. — Respondi, mostrando a bolsa.
— Lindo, mas temo que esse poder de fogo não ajudará muito. No máximo fará barulho demais, nos expondo. — Neste momento ela sacou sua espada. — Isso é uma arma, silenciosa e fatal. — ela exibia um sorriso.
— A conversa está boa, mas precisamos entrar. — Interrompeu Mason, mantendo seus olhos imortais na Cidade.
— Como faremos para entrar? — Perguntei, de maneira simplória.
— Entraremos a pé! — Respondeu Damra. — Eu nunca estive na Cidade Escarlate. — Completou. Neste momento nossos olhos repousavam em Mason.
O ex-agente da polícia nos devolveu o olhar.
— Ok, creio que desta forma, serei o líder desta comitiva. — Falou com um certo ar de sarcasmo.
Fazendo uso de suas aptidões deslizou o dedo indicador no chão e se valendo da pequena camada de sujeira, fez dois círculos. Eles se cruzavam, criando uma intercessão.
— Parallel é o círculo "A". Este outro, o círculo "B" é a Cidade Escarlate. Este ponto em comum, vou chamar de "C". Neste ponto as duas cidades se encontram. Estamos à beira deste ponto e será por aqui que entraremos.
— O que nos espera no "ponto C"? — Interpelou Damra.
— Não sei ao certo, mas com certeza absoluta, nem lupinos nem alados habitam esta região. — Respondeu Mason. — Cruzando este ponto, estaremos na Cidade Escarlate. Não posso garantir nada depois do "ponto C". Nossa missão é suicida. — Concluiu nos encarando.
— Suicida? Já estamos mortos. — Ironizei.
Damra sorriu por um breve instante, voltando logo em seguida à seriedade. Ela sabia que a probabilidade de dar errado era quase que certa.
Os primeiros passos fora do último distrito de Parallel foram tranquilos. Olhamos para trás, nos certificando de nossa segurança. Apesar de insensíveis as mudanças de temperatura, o toque da brisa em nossas peles havia mudado. Sentíamos uma atmosfera mais pesada e pelo ar, muitos insetos, produzindo zumbidos perturbadores. Mason era o único que não se importava, uma vez que os insetos atravessavam o seu corpo translúcido.
Mantínhamos um silêncio obrigatório. O ranger de nossos passos rivaliza com o som dos pequenos bichos. A tensão se mantinha. Parallel ficava para trás e a cada passo adiante, sabíamos que o regresso era improvável.
Alaridos se misturavam com os zumbidos, uma mistura que inundava nossos ouvidos. Nos entreolhávamos em silêncio absoluto. Mason flutuava, alheio ao que estava sob seus pés. O chão movia-se, seguindo-o. A terra mais seca rachava com os movimentos em seu interior. Olhei para a minha retaguarda e rastros tortuosos nos seguiam, abrindo feridas no solo já castigado. Toquei no ombro de Damra, que se moveu para ver. Sacando sua espada recuou, esperando pelo pior. Saquei uma das armas e antes que as usasse, Damra me impediu. Os estampidos poderiam colocar toda a missão a perder.
Com a interrupção de nossos passos, as fissuras pararam. Um breve suspense se fez até a terra sob os nossos pés começar a ceder. Mason alçou voo, distanciando-se do perigo. Damra afundou. Antes que pudesse desaparecer segurei sua mão. Potencializei minha força para puxá-la. Algo a estava tragando do outro lado. Subitamente, a filha de Kalisto foi liberada, facilitando o seu resgate. Nos distanciamos da cratera, mas mantínhamos nossa atenção para novas eventualidades.
Estalos quebraram o silêncio até eclodirem ao nosso redor. Seres que mais lembravam larvas emergiram. Em sua extremidade dentes pontiagudos e línguas bifurcadas. Eram desprovidos de olhos e se debatiam a todo o momento, tentando captar qualquer presença alheia. Mason, estava relativamente à salvo, uma vez que sua aparência astral era imperceptível para essas criaturas.
Evitamos de nos metamorfosear, para que nossa energia vital não denunciasse nossa presença. Tínhamos que nos virar da maneira tradicional. Um dos vermos deslizou em minha direção e usando sua enorme língua envolveu uma das minhas pernas. Ao recolher o órgão fui jogado ao chão. A filha de Kalisto arremessou uma de suas espadas e a lâmina fincou no solo. Estava sendo puxado para a boca da criatura. Aguardei o instante apropriado para pegar a espada fincada, e ao fazê-lo, deslizei a lâmina cortando a língua do verme que emitiu um grunhido agudo. Sem desistir de sua presa o verme se projetou em minha direção. Um golpe lateral dividiu a criatura em dois. Me surpreendi com a destreza.
— Espero que sua opinião sobre as espadas tenha mudado! — Disse Damra enquanto acumulava corpos dilacerados sob seus pés com movimentos quase que coreografados ao usar sua espada.
Mason, jogava pedras nas criaturas, que acabaram ficando sem saber de onde vinham os ataques. Ele precisava ser rápido uma vez que não conseguia segurar objetos por muito tempo. Com os vermes distraídos, abrir caminho ficou menos complicado.
Os corpos se amontoaram, mas com o tempo o ímpeto das feras foi diminuindo e os remanescentes retornaram às fissuras, desaparecendo.
— Algo me diz que ainda iremos enfrenta-los. — Disse Mason.
— Não duvido disso. — Completei.
Andávamos sempre olhando para trás. Havia uma sensação incômoda de vigilância, como se estivéssemos sendo monitorados. As lamúrias preenchiam o ar e inundavam nossos ouvidos. Uma melodia perene. Nossos corpos estavam parcialmente cobertos pela mucosidade dos vermes, o que liberava um odor nada agradável. Em nossa retaguarda, o horizonte enevoado apagava qualquer vestígio da cidade humana. Parallel havia ficado para trás.
A sensação de afunilamento causava uma certa claustrofobia. As construções que nos cercavam pareciam se deslocar, diminuindo nossos espaços. A impressão de estarmos sendo vigiados aumentava e decidimos parar e observar. O cenário lembrava uma terra arrasada, com casas e prédios destruídos, uma visão distópica.
— Não estamos sozinhos. Algo se encontra em meio às edificações. — Balbuciei.
Pontos luminosos começaram a surgir em pares, saltando à penumbra. Não demorou muito para percebermos que se tratavam de olhos vigilantes. Nossa intuição estava correta. Aqueles que estavam nos seguindo se revelariam a qualquer momento.
— O odor os atraiu! — Disse Damra, no momento em que as feras saltavam da escuridão.
Cães enfurecidos deixavam as edificações rumando ao nosso encontro. Essas criaturas lembraram ligeiramente cachorros, mas tinham aparência bastante distorcida. A impressão que nos passava era de que haviam nascido e crescido em meio a uma terra tomada pela radiação nuclear. As deformidades de seus corpos lhe conferiam um aspecto asqueroso.
A filha de Kalisto avançou contra as feras com a espada em riste. Com extrema perícia a espada abria caminho entre as criaturas que se multiplicavam. Também fiz uso da espada rechaçando algumas criaturas. O volume era muito grande e uma das feras saltou sobre mim, jogando-me ao chão. Virei rapidamente tentando conter o seu ataque. Sua mandíbula aberta procurava o meu pescoço. Com as mãos nuas segurei sua boca. Usando minhas habilidades recém-adquiridas forcei até deslocar a mandíbula. Depois de um crash, a besta caiu ao meu lado sem vida. Outra fera cravou seus dentes em meu braço. A dor era inexistente, mas se não me livrasse do cão, perderia o membro.
— Que se dane! — Vociferei enquanto metia uma das mãos na bolsa.
— Não Rick! — Alertou Damra sobre a nossa exposição.
Retirei uma Uzi da bolsa e encostei na cabeça da fera. Ao apertar o gatilho abri um rombo no animal. Retirei a outra pistola-metralhadora, abrindo fogo nas criaturas.
Uma a uma, as feras tombavam. Alguns chegaram a fugir, mas a grande maioria perdeu a vida. Liberei os pentes vazios, separando-os da arma. Os canos fumegantes davam o arremate final à cena.
— Incrível! — Elogiou Mason.
— Você é um idiota Rick! Esse espalhafato certamente denunciou nossa posição.
Olhei para a filha de Kalisto com certo desprezo. Carreguei as automáticas e continuei em frente. Mason e Damra se entreolharam e me seguiram.
Minha nova condição limitava minha paciência. Como minha morte ainda era recente, precisava aprender a dosar minha tolerância. Os instintos rivalizavam com a razão e em muitos casos o reprimiam.
Estávamos saindo da zona de interseção, entrando de fato nos limites da Cidade Escarlate. As labaredas eram mais intensas a partir deste ponto. Acima de nós estava uma amplidão avermelhada, com nuvens escuras. Relâmpagos cortavam o ar, chegando a tocar no topo da torre, que se encontrava acima das demais estruturas. Ela não tocava o solo e grossas correntes, uma em cada extremidade serviam como ancoras.
Alados faziam voos ao redor da grande estrutura. Eram muitos.
— Ali é o centro da cidade. Seu pai está lá dentro. — Disse Mason. — Provavelmente o seu também está Damra. — Completou.
— Ainda não consigo sentir sua presença. — Disse Damra depois de uma breve concentração. — Ele pode estar morto. — Completou, tentando não acreditar nessa possibilidade.
Começamos a caminhar em direção a grande torre e neste momento, uivos preencheram o ar.
— Eles sabem que estamos aqui. — Disse Mason, tomado pelo terror.
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