Torna-se

"Lamento esbravejante, dor que lhe conduz
Pela lua pálida; prata vindoura,
Das frias noites agouras,
Sob os tristes resquícios da esperança e da vingança: minha fraca luz”

Alfira suplicava para que parasse com esses joguinhos de palavra. Precisava de uma agenda para saber quantas insistências fazê-lo. Julgando o ditado comum de se comunicar com as batidas de seu coração, nunca pensou que isso fosse algo tão substancial. Então, por entoados passos lânguidos na areia da memória, de pequenos montes amarelos e falciformes, ela nomeava seu novo eu de distintas formas. “Peito Cantante… Coração Poeta… Chama Lúdica…? Ah! Coração-poema!”

Ela cobre seu nariz com a bainha rasgada de seu vestido floral, protegendo-se das ondas serpentinas de areia. Desejava um óculos para não ter que andar quase de olhos fechados. Apenas matizes entorpecentes guiavam seus passos em forma de fitas que apenas remetiam-na aos odores apaixonantes da casa de perfumes - e logo sentiu o leve rubor do orvalho. “Você está me guiando?”

Irrompeu a calada da queda vespertina com um bufo de canseira. Ao longe, árvores esguias e decrépitas tomavam seu horizonte, provocando clareiras horizontais aos olhos da fada - treliças vespertinas, desconexas.

Ao chegar, viu-se cercada de esguios troncos de ébano pálido, um pouco cinzas e desgastados. O feixe dourado em suas pontas ainda reluzia um tom de misericórdia - uma leve reminiscência nostálgica que fez a pequena se lembrar de casa. Eram versões muito maiores dos cetros que suas irmãs portavam para peregrinar em nome da arquifada - sua mãe espiritual. Seu peito tremulou. Um sorriso deformou-se sobre a pele púrpura de Alfira à medida que sua marca rasgava a alma em sentimentos odiosos. Odiosos! Sua mão vai ao peito e seus joelhos ao chão; não acreditava como queimava, queimava, queimava! A chama resplandece, ardendo em eternas súplicas.

“Expulsas de Brécilien, a Dama d’ouro via-se incapaz. À sua esquerda caminhavam dez mil, e, à sua direita, oito mil; mas agora restavam seis em cada ombro frágil: as asas daquela que não podia mais voar” - disse o “Coração-Poema”

“A Peregrinação das Doze Fadas… aqui…” - seu olhar contemplava as milhares de árvores pálidas que cobriam seu horizonte; dentro da treliça vertical, nenhum dos raios bastavam para iluminar seu coração com temperança; apenas sentia o reflexo mórbido de uma mentira - e temeu quantas ainda haveriam de ser descobertas naquele pesadelo. “Milhares… Mãe, o que você fez?”

O mundo parecia mais sombrio. Fosse a revelação, Alfira precisava de um abraço quente, palavras de conforto - mas recebera medo - desprezo - sua marca gritava dor! Sentia sua alma rasgando em mil pedaços - sol fragmentado em diminutas escuridões dançantes por entre a treliça das esguias árvores, nas recônditas profundezas de onde o domínio de “sua” arquifada não chegava. Quando tomou-se por si, via-se engolida pela mesma escuridão - agora tangível e tão mais densa que mercúrio. Sentia seu peito expandir e explodir - seus pulmões inchando e rompendo! O medo tão real que alongava-se em acordes cacofônicos de gritos de desespero: balbuciadas estridentes de feras do Lugar-nenhum - o abismo inebriante que sondava todos! E quando abriu seus olhos, tarde era! Sentiu-se abocanhada, rasgada e jogada ao longe!

Ela rolou pela grama tomada pela escuridão. Não havia um palmo à frente de seu próprio nariz - apenas o som abafado das bocarras semi cerradas, sedentas por sangue feérico. Pôs-se de pé e tentou fugir - tombada logo em seguida pela criatura trajada de completa inexistência. Ao fundo, ouvia-se uma triste canção de ninar. E a fada logo se sentiu sob o repouso do colo materno da escuridão: a mãe dos desolados. A canção finalmente toma forma por entre os ébanos esquálidos. Agora uma lua prateada reinava por todo o domínio das trevas, onde diminutas estrelas vermelhas queimavam no céu. O astro iluminou as faixas simplórias que o pranto da fada alcançava, revelando a mãe de toda canção e de toda a perversidade, dos atos de dor e terror, da persuasão e da perda.

“Culpada; sentença era a vida que lhe foi entregue, nas frias orlas onde a luz não reina. Rasteira canção; feixe inebriante. Roubada a chama, agora essa era motivo de conforto dos enfermos e esquecidos”

Escondida por véus pretos translúcidos, uma grande Arquifada trajada de escuridão. Sua pele alva, virada à lua, parecia morta. Segurava com as duas mãos um buquê de orquídeas sem vida: serviçais eternas de uma esplêndida rosa flambada ao centro, que pingava gotas de mercúrio pelo pistilo. Seu corpo nu era escondido pela penumbra transiente , expandindo e voltando desuniformemente, como milhares de seres em desespero. Ao topo, chifres retorcidos cintilavam estrelas, enquanto a figura assistia o luar e as feras repulsivas uivavam, à prata virgem, suas preces.

“Eu sonhei por muito tempo. Minha carne… apodrecida. Meus tendões… romperam, perderam-se, enquanto eu esperava… por esse momento.” - disse a arquifada

O coração-poema de Alfira se agita novamente, em uma nova gama de percepções indecifráveis! Aos passos lânguidos e uníssonos da Arquifada, flores murcharam, morreram e queimaram; a vida gritava! - e incorporava os contornos da Dama da Perda! - Silentes e imparáveis, as feras rugiam! - adoeciam - morriam! - e voltavam dos infernos! As sombras cada vez mais intensas à medida que sua presença aumentava!

e o toque gelado da morte veio logo em seguida.

Mesmo enorme - mesmo que insondável e imutável! -, parecia quebrar todos os sentidos das dimensões. Parecia ser maior que montanhas - mas menor que areia. Parecia esmagar Alfira com um dedo: mas arrancava-lhe o coração do peito.

"De culpa semeou, em pequenos gestos, a redenção. E condenou, às trevas, tudo que seu toque alcançou. Nasceu, assim, sua maior vergonha - não as fadas desabrigadas de sua irmã - mas os miseráveis Filhos da Noite”

O coração batia. Ardia. Suas chamas harmoniosas eram colírio. Nostalgia. Sobre os decrépitos dedos como coroa; coração-floral: as pétalas de Alfira murchavam e caíam uma por uma. “O que quer… de mim?” - a fada engasgava em seu próprio medo, agarrando o braço empalador da arquifada sombria.

“O poder que me foi destinado. A força para consertar… tudo que quebrei.”

Os dedos pálidos afundam nos tecidos flácidos do coração-floral, mas repelidos são por ondas intensas da chama de Brécilien. Então entendeu: Alfira não era hospedeira, era parte intrínseca do fogo bréciliano - não era fator de mudança: era a mudança em essência. Não era fada, havia de se tornar uma.

O rosto da Dama da Perda desfigurou. De esperança simplória, os lábios se tornaram frustração.

“Ah… ha!… então… é assim que as coisas são, afinal. Ela sempre vence no fim, enquanto nosso povo chora - sofre - clama! - pela liberdade. Mas se não eu…” os dedos da arquifada afundam, sanguinários, no coração. Agora queria apagar as ondas flambadas com todo o seu ódio. “Se não eu… por que você? E por que agora?”

“Cética, já não acreditava na luz. Então marchou, com seus filhos, em busca de sua própria noite sem fim. Lágrimas cristalizadas em mercúrio; os lamentos daqueles que vivem na morte. Foi-se fundido em dor, labutas inglórias, desejo de vitória”

Trovões passam a irromper o horizonte longínquo, cingindo aquele mundo em tempestades violentas enquanto as estrelas vermelhas do céu de prata começam a despencar!

“Não vou tolerar que percamos ou morremos eternamente. Hei de afundar em desgraças todo esse mundo-cão! E de intempéries sombrias, uma lua é vindoura. Escute-me, pequeno defunto: minha lua tapará o sol e destruirei tudo que há de ‘sagrado’: minha irmã, a gigante, a chama. E hei de libertar as fadas dos grilhões que Brécilien nos acorrentou!” - a Dama esbraveja. À medida que sua voz aumenta, mais e mais trovões começam a romper o céu. “os planos dela, os pesadelos florais, os aromas… acabam aqui!”

As sombras engolem toda a policromia cinzenta da prata lunar. Toda a vida, toda a compreensão e extensão de si haviam de ser apagadas da existência. Os dedos ferozes afundaram na carne do coração - perfurando - esmagando - rasgando! E em resposta, o brilho divino da chama dançante emerge, irrompendo as sombras como uma adaga que irradia - e dissipa! - das mãos do mal, o medo e o terror! Tudo se incendeia em gritantes artífices da piromancia; tudo que há de purificar arde e é reduzido às cinzas sob a eternidade do fogo perene de Brécilien, saltitante sobre o túmulo de seus inimigos.

Alfira queima. As costas da fada explodem em ondas flambadas de divinessência. E suas escápulas saltam para fora da carne queimada como asas de fênix pálida e levantam voo pelo domínio da escuridão. Icarus irrompe a penumbra em direção ao seu sol inventado. Mas antes que pudesse fugir da Dama da Perda, essa o alcança.

Vindo da fronteira do abismo, infinitas mãos repugnantes de aspecto “centópode” e semi-circular esticam-se bizarramente em direção da miserável fada que brincou de Icarus, para puxá-la ao fundo do desconhecido.

“Você não vai fugir! O tormento das fadas acaba aqui!” - ela diz. Um trovão irrompe as trevas paralelamente às duas. A era das trevas nunca havia passado às fadas.

“Vamos! Não sou mais um grão de areia no oceano, não sou mais uma escrava do destino! Eu vou libertar todas as fadas, mesmo que eu tenha que queimar as suas sombras!” - Alfira grita! “Mesmo que eu tenha… que me reduzir às cinzas!”

As asas flamejantes da fada alongam-se de infinidade à infinidade. Como o advento do fogo, a era das trevas é então partida com o voo impetuoso de uma borboleta enclausurada, rasgando toda a infinidade de monstruosidades que sondavam Alfira como Holofernes sondava Judite, repelindo e expulsando toda a escuridão esbravejante, que, afundando na melancolia, fechava-se como um portal.

Alfira contempla a última ponta de escuridão a esvair-se. Despencando para sua própria melancolia, a arquifada estava brilhando sobre a luz. Seu corpo de nada mais era formado além de pequenos rostos em agonia, moldados, e deformados às curvas de uma jovem mulher cadáver. Em seu rosto, uma lágrima de mercúrio escorria; mais uma herança da história daqueles que vivem na morte.

“E vendo a fria face de seu cadáver, a Filha da Perda cobriu-se com os tristes negros véus da vergonha.”

Alfira rodopia pelo céu poente, mergulhando nas nuvens. E mesmo assim, nada havia de ser mais nebuloso que sua mente. Torturando-se em perguntas nas quais não sabia a resposta, deu voz ao seu coração-poema - a essência da chama dentro de seu coração-floral.

“Por favor… me conte sobre… o que sabe”

O coração tremula.

“Caíram, uma a uma, no colo escaldante do deserto. A bondade invicta da Mãe Primeva foi tomada pela amarga maresia da desesperança, de pedaço em pedaço.”

“Mãe.” - Alfira reflete.

“Um lobo espreitava pelas dunas. Aproximando-se, ele a convenceu que toda a história das fadas era fardo demais a ser suportado; uma mancha na história na qual deveria ser esquecida. Entorpecida pelo cansaço e vergonha, a Mãe Primeva ajoelhou-se no limite do Morro das Súplicas e vestiu em si mesma os grilhões da culpa, prometendo a si mesma que nunca, nunca mais iria deixar que suas filhas sofressem como naqueles sangrentos dias.”

“Vamos, fale!”

“A chama exígua da individualidade foi-se apagada com o sopro piedoso da Mãe, que, de todas, sempre cuidou; foi-se embora o alento gentil da boa vontade primeva; foi-se embora o fulgor da existência que definia a fada como indivíduo incomum. Abaixo das ondas tempestuosas velejadas pelos corações indomáveis das fadas, nada mais existia, a não ser aquilo que as denominavam como eram. Agora, nascia-se fada.”

“Como um livro já escrito.” - Alfira completa, relembrando-se das lembranças nas quais nunca viveu.

“As patas do lobo afundaram na areia como adaga na carne traída. Ele, então, seguiu os passos da Filha da Perda e contou o que sua irmã fez. Em estímulo de vingança, ela assistiu as fadas perderem a única coisa que ganharam em toda a eternidade: não asas de libélula para irromper o vento, mas sim imaginativas, para voarem livremente entre os elos da individualidade: liberdade! O canto gentil que traçaram, em tons pastéis, o primeiro e único sorriso verdadeiro nas pequenas.”

“Assomou-se uma dor terrível no peito, e foi obrigada a viver nas sombras. Eu sinto pena dela” - a fada diz, melancólica.

As asas voltam a bater mais violentamente, desenhando todos os tipos de feixes e formas nas nuvens, indo rumo ao mar poente.

“O lobo, sentido, conta como combater sua irmã. As sombras então marcham em busca de vingança eleita. Enganação. Às mazelas dos sentidos ambíguos, sentimentos e deveres ofuscaram a verdadeira tragédia. E com o poder de mudar tudo em suas mãos, a Filha da Perda sacrificou a chama de Brécilien que roubara, junto do fogo exímio dentro de seus filhos, para dar às trevas uma lua de prata, na qual aqueles que vivem nos mortos sempre se reerguerão e batalharão contra a luz.”

As asas de fogo se desmancham quando Alfira finalmente alcança o chão, já revigorada de todos os ferimentos - remendados e cicatrizados pela chama. Ela caminha até a borda do Morro das Súplicas, contemplando o berço dos dois lados de uma moeda; onde nasceu o sol primevo e a lua prateada, os dois opostos de uma mesma origem.

Aqui, a Filha da Perda jurou que libertaria todas as fadas, de uma forma ou de outra”

Sentindo o vento alísio percorrer seus cachos emaranhados, Alfira enfim percebeu como não era nada. Não havia meio-termos. Quanto mais a fada destoava-se de sê-la, nem ao menos ser “o outro” era opção. Na cruel realidade, Alfira não era nada - nada além de um papel de branco - diferentemente daquelas que se tornaram preenchidas por princípios à deriva nas águas turbulentas do desejo.

"Passou-se o tempo de sermos apenas vítimas das mazelas desse mundo-cão. Aqui jaz minha promessa, marcada no fogo eterno de Brécilien: eu, Alfira, queimarei os grilhões das fadas até as cinzas!"

A fada se põe na beira do morro, encarando os astros quase em eclipse. Então seu corpo inclina e ela se se atira, mergulhando em profundezas mais infinitas que o universo de ponta e ponta, despencando às alturas incompreenssiveis do além com suas asas incendiárias!

Seu corpo se choca com seu próprio reflexo. O espelho entre as realidades se quebram numa multiplicidade de fragmentos de outras vidas vividas, de almas perdidas entre os paralelos de suas infinitas compleições - e emerge pelo céu amanhecido, como um meteoro transiente - estrela cadente! -, levando embora, entre os astros, todas as barreiras que, um dia, existiram.

Renascendo nas cinzas, uma fênix alva que um dia havia de incendiar o mundo! Que ressurgisse da terra, os mortos; que  transitassem entre as almas, os vivos, como amigos distantes de sonhos vizinhos. Que reinasse, eterno, a crisálida existência do não-pertencido!

O sol e a lua encontram-se no céu. Do circulo de fogo, Alfira sobrevoa as terras desoladas das fadas e adentra portal no interior do eclipse, teleportando-se.

Não bastava renascer enquanto ela jogasse as cartas.

Para Alfira, agora era claro. Não se nasce fada, "torna-se fada."

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