todas essas chamas dentro de mim.


São Paulo, 10 de outubro de 2024.


      Henrique,

      Minhas mãos estão geladas, e me pergunto se isso tem relação com o fato de que algo dentro de mim acabou de morrer.

      Ainda não parece fazer sentido. Me sinto flutuando, como naquele instante instável assim que acordamos, divididos entre o sonho e a realidade.

      Sonhei milhares de vezes com o dia em que você finalmente iria embora, mas nunca acreditei de verdade que acordaria de manhã sem a presença do seu corpo ao meu lado. Tão estranho.

      Minha cabeça gira enquanto relembro os eventos de duas noites atrás em flashs. Não sei se a leve tontura deriva das duas taças de vinho que tomei ou da garrafa de vidro que você acertou na minha têmpora.

      Aquilo doeu.

      Você se lembra de todo o sangue respingando no chão? Se lembra das palavras repulsivas que gritava na minha direção?

      Eu duvido. Você nunca se lembra direito, não é?

      Mas aposto que se lembra das luzes. Vermelho, azul, vermelho, azul, vermelho, azul. E do som da sirene, tão ensurdecedor. Mas eu não me lembro nitidamente de nada disso. As únicas coisas que não desapareceram da minha mente são o som dos seus gritos e o seu olhar mortal. E você cheirava a alguma coisa, também. Não consigo descrever. Algo amargo e distante.

      Não deixo de pensar que era cheiro de fim.

      Eu gostaria de me lembrar daquilo, das algemas em torno dos seus pulsos, das outras vozes, de você sendo levado para longe de mim. Mas só me lembro de sentir dor. E então do vazio, que só se dissipou completamente horas depois, quando acordei na cama do hospital.

      Depois dos pontos na cabeça e do efeito do diazepam passar, estou em casa. Se é que posso chamar esse lugar de casa.

      Ainda sinto cheiro de sangue, mesmo depois de ter esfregado a sala inteira com água sanitária.

      Não sei onde você está agora, mas não está na cadeia. Seu dinheiro provavelmente comprou uma versão da história onde eu tropecei e caí de cara na garrafa.

      Sei disso por causa das 38 ligações perdidas no meu celular.

      Você vai me pedir perdão. Vai me pedir pra voltar. Vai dizer que está arrependido e que nunca fará algo assim de novo.

      Você vai usar aquela voz melosa e carente e autodepreciativa para me dizer que é incapaz de viver sem mim.

       Vai dizer que, apesar de ter me agredido mais uma vez, essa foi a última. E, quando mentir não parecer funcionar, vai dizer que minha reação é desproporcional. Afinal, nem tinha tanto sangue assim. Eu estou exagerando. Eu sempre exagero, não é?

      Exagerei quando você me deu um tapa por queimar o arroz, um ano atrás, e exagerei em todas as vezes desde então. É conveniente para você que eu sempre seja a vilã.

      Sei que você vai mentir mais uma vez, me pintar como a errada da história, fazer com que eu me sinta culpada, e é por isso que bloqueei seu número e desliguei o celular.

      Porque a culpa não é minha.

      Estou tão, tão exausta.

      Você não foi bom em me amar o tempo todo, mas sempre foi excelente em pedir desculpas. Você sempre soube como usar as palavras, seja para me ofender ou para pedir perdão por isso.

      Mas dessa vez eu decidi que o jogo muda.

      Não vou aceitar as suas desculpas pela metade.

      Não vou acreditar novamente na narrativa de que minha vida não seria completa sem você. E, mesmo que não seja por um tempo, prefiro me contentar com uma vida em pedaços do que continuar me agarrando ao medo e a culpa em um ciclo vicioso. Você me deixa doente, e não posso continuar estática enquanto me assisto morrer.

      A vida ao seu lado é apenas a face mais fria da sobrevivência.

      Eu sempre quis voar, Henrique, mas você me fez esquecer que o chão não era o limite.

      Agora, me sinto mal por estranhar a sua ausência, como se algo dentro de mim tivesse sido consumido por chamas. O porta-retratos sobre a escrivaninha – aquele com a nossa foto na praia, a que você dizia ser a sua preferida – está virado para baixo, o vidro sobre a madeira. Nossos rostos sorridentes escondidos. Ainda não tive coragem para tira-lo dali, mas também não consigo encarar as expressões alegres sem sentir algo dolorido.

      Queria que você nunca tivesse tirado aqueles risos do meu peito: seria muito mais fácil te deixar ir embora. Muito mais fácil te odiar para sempre, desacreditar que as coisas podiam ter sido diferentes, talvez.

      Mesmo agora, detestando cada parte podre de você e cada parte de mim que nutriu uma esperança vazia em permanecer, ainda consigo me lembrar de seus dedos carinhosos desatando os nós em meus cabelos depois dos dias difíceis.

      Quando você me tirou da casa da minha família aos meus 21 anos, com um anel de noivado em seu bolso e um sonho para buscar em São Paulo, eu não imaginei que, 5 anos depois, estaria presa em um pesadelo.

      Não imaginei que a cobertura que um dia fez com que eu me sentisse parte de algo, se tornaria agora um símbolo de solidão. Cada uma das paredes brancas parece me sufocar, porque tudo relacionado a você se tornou um veneno.

      Mas não foi sempre assim, não é?

      Antes de ser um monstro, você era apenas o meu marido. Era o homem que me carregou nos braços, de roupa e tudo, para entrarmos no mar em nossa lua de mel.

      Consigo me lembrar da sua voz doce dizendo que eu era seu tesouro.

      Engraçado.

      A mesma voz que me disse coisas tão terríveis naquela noite.

      Não vou mentir e dizer que não te amo: amo a parte de você que foi gentil e amorosa, que me servia café na cama aos domingos e que me ensinou a dirigir. Mas já não posso conciliar suas duas versões, aceitar ser feita de medo, esperando por uma recompensa que dura cada vez menos.

      Por isso, estou me despedindo de você.

      Me despedindo das incertezas, das agressões, das manipulações, de tudo.

      Quando sua mãe perguntar sobre a separação, você vai ter coragem de responder que fui embora porque ela não conseguiu evitar que seu filho se tornasse um espelho do próprio pai?

      Diga a ela. Aquele garotinho que se escondia atrás do sofá quando os gritos começavam a ficar altos demais, que não conseguiu defender a mãe sem sair com um braço quebrado, que chorava dormindo, aquele garotinho se tornou o que passou metade da vida condenando.

      Talvez seja um impulso perturbado, um ódio não controlado. Falta de terapia? Já quis te tirar desse lugar escuro, mas não posso salvar quem não quer ser ajudado.

      Você insiste nos mesmos erros, apesar das desculpas, apesar de já ter estado do outro lado.

      Dois dias atrás, você me assistiu sangrar no chão e disse que eu merecia, tudo porque fantasiou com uma traição inexistente.

      Chega.

      Eu mereço mais, Henrique. Mereço a droga do mundo inteiro.

      Você me derrubou, mas agora estou de pé. Você poderia ter me matado, mas eu sobrevivi, e estou decidida a começar a viver.

      Talvez voltar para a faculdade, para o curso que você dizia ser uma perda de tempo. Voltar para o interior, porque tudo nessa cidade sem alma me lembra do seu rosto. Usar as roupas que ficaram escondidas no fundo do armário, fazer uma tatuagem, me permitir sentir raiva.

      Mas, antes, vou queimar essa droga de carta. Quero jogar na fogueira todas as expectativas e os planos, esperando que tudo o que fomos vá embora com as cinzas.

      Minhas malas já estão prontas. Se você chegar perto o suficiente para sentir o cheiro de papel queimado na lareira, eu já estarei longe.

      Por mais que seja dolorido, ir embora é um grande consolo. Minha família estará esperando por mim de braços abertos. E, com todo o meu coração, sei que o Davi estará ali por mim também, como sempre esteve durante o último ano.

      Posso não ter conseguido ver seus dedinhos gorduchos crescendo, mas posso senti-los de alguma forma apertando os meus, me dando forças para seguir em frente.

      É isso que vou contar sobre nossa separação, infelizmente. Que a perda de um filho recém-nascido te destruiu. Te transformou em uma versão amarga, violenta.

      Vou dizer que entendo a dor que te corrompe, mas que você nunca se esforçou para compreender a minha. Pelo contrário: me machucou ainda mais, numa tentativa doentia de fugir das próprias feridas.

      Vou curar as partes de mim que puderem ser curadas, e torcer para que um dia você possa melhorar também.

      Mesmo te odiando, ainda desejo o seu bem. Isso faz algum sentido?

      Talvez não.

      Mas desejo, do fundo do coração, que se caso você escolha criar uma nova família, se esforce para não estragar tudo mais uma vez. Espero que não faça com que outra pessoa passe pelo que eu passei.

      Adeus, Henrique.

      Por favor, fuja da escuridão.

Atenciosamente,

Larissa.

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