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"Um clima de sonho se espalha no ar"
Natal Todo Dia - Roupa Nova
De todas as coisas que eu mais amava, a única que não perdi foi o natal. Ah, e eu mesma, claro. A época mais mágica, brilhante e quente do ano sempre deixa ótimas lembranças; essas que eu luto com unhas e dentes para manter imaculada por toda a minha vida. É como um combo: se o natal for bom, eu também fico bem e não perco minha essência.
Tirando isso, geralmente perco desde coisas importantes a coisas bobas, como o anel de côco, da década de oitenta, que pertencia à minha mãe. Porém, o que mais dói não é levar um sermão, por perder algo que não era bobo para ela, e sim coisas mais importantes, como meu avô, que morreu na pandemia. Foi como se parte de mim tivesse ido junto.
Ou quando meu primeiro namorado disse que precisávamos terminar porque eu era fria demais. Aquilo me fez pensar se eu estava, de repente, parecendo o Edward Cullen... Não seria problema nenhum, na verdade eu levaria como um elogio, porém... Não, esse não era o caso.
Doeu demais, mas ainda finjo que isso não me afetou. Caramba, quatro anos! Se minhas amigas souberem que não superei meu namorado da adolescência, nunca me deixarão em paz!
Balanço a cabeça e tento respirar fundo, mesmo com o motorista me encarando como se eu fosse sínica. Essa situação me fez lembrar de coisas inconvenientes demais, principalmente para esse momento.
— Como assim não tem mais malas?! — pergunto novamente, tentando manter a calma.
— Pode olhar se quiser, moça, mas já pegaram todas as malas.
— Mas e a minha mala que eu coloquei aqui?! — Aponto para o local exato no porta-malas do ônibus em que eu deixei minha mala rosa-choque gigante.
— Ora, como quer que eu saiba?! Se não está no meu ônibus então não posso fazer nada!
— Mas eu coloquei a minha mala dentro desse seu querido ônibus, então o mínimo é o senhor se responsabilizar dela!
O senhor grisalho bufa e fecha o porta-malas com certa raiva.
— Sinto muito pela sua perda, mas não posso fazer nada.
Meu queixo vai ao chão e eu permaneço estática, tentando processar o ocorrido. Acabei de fazer uma viagem de quatro horas, pra chegar nesse fim de mundo e descobrir que roubaram minhas coisas?
O que é isso, karma?
O motorista volta para dentro do ônibus e dá a partida, como se nada tivesse acontecido. Como se eu não estivesse sem minha mala, longe de casa e com data para voltar só daqui duas semanas.
— Bem que o dia estava correndo bem demais... — resmungo para a minha melhor amiga, Pérola, que ficou esse tempo todo do meu lado, mas com a cabeça em algo dentro do celular.
— Sei lá, achei ele meio sem noção — ela concorda, ainda olhando para o celular, o que me deixa confusa se está realmente falando comigo. — Mas nesse caso, precisamos ou ligar para a empresa ou para a polícia. — Ela levanta a cabeça e dá um pulo, com os olhos castanhos brilhando. — Melhor! Vamos ligar para a imprensa e contar tudo na TV!
Faço uma careta e nego com a cabeça. — Eu só quero minha mala, e a cama que prometeram ter naquele maldito chalé.
— Bem lembrado! Espero que tenha ar-condicionado lá, eu estou morrendo de calor!
Agora é minha vez de bufar, como o motorista sem noção fez há um minuto atrás.
— Eu mataria um para ter minha mala, sério... — Olho pra cima, e encaro o céu com a cara mais fechada que consigo, como se ele fosse o culpado do sumiço da mala. — Qualquer coisa, menos isso...
— É isso aqui que você perdeu?
Tomo um susto com a voz masculina e desconhecida para mim, olho na direção de onde veio e o encontro na minha frente, há uns três ou quatro passos de distância; mais perto do que esperava.
Franzo a testa, caindo a ficha tarde demais de qual fora sua pergunta. Abaixo meu olhar, passando pelos seus braços morenos, fortes e tatuados com certa dificuldade, então encontro minha mala rosa-choque, que além de ser de alça, é super pesada, mas na mão dele não parece ser nada. Minha alegria é imensa, junto com o alívio, porém minha desconfiança ultrapassa isso tudo e encara o moreno de cabelo encaracolado com a maior dúvida do século:
— Aonde você achou, e como sabia que era minha?
— Ah... — Ele fica meio sem graça, mas não desvia seu olhar de mim. — Talvez eu tenha pego para você...
— Como assim? — Pérola pergunta antes mesmo que eu assimile a frase. — Se pegou para ela, porque não entregou antes?
— Bem...
Não me aguento e falo antes dele.
— Porque fez isso?
— Olha, foi numa boa intenção, eu só...— Ele parece... Corar? Ele está corando? — Eu queria ter um motivo para falar com você, e como eu tinha te visto colocar essa mala no ônibus, lá na faculdade, então dei um jeito de descer antes e pegar... Pra você! Toma.
Ele chega mais perto e deixa a mala aos meus pés com cuidado, como se soubesse que tem coisas frágeis dentro.
— Você é algum tipo de stalker? — Pérola pergunta, o encarando com certo nojo que me faz achar graça.
— Não... — Vejo ele segurando o sorriso no canto da boca e no mesmo momento também me seguro para não sorrir. — Mas, mesmo que fosse, eu não falaria.
Pérola o mede da cabeça aos pés, revira os olhos e só então me encara com aquele olhar dela de "Você tem um segundo pra se livrar disso".
— Você precisa se explicar melhor, se não quiser que eu chame algum segurança desse resort. — Eu o observo se encolher com a ameaça, mas ao mesmo tempo se prender nessa segunda chance que dei.
Espero que ele seja inteligente o suficiente para entender o que está rolando.
— Eu juro que não sou stalker, eu só queria ter um motivo para vir falar com você... Assim, somos de turmas consideradas rivais e provavelmente você nunca notou minha existência então, como eu disse, quando te vi colocando a mala no ônibus eu tive essa ideia e, bem, de certa forma deu certo, não é?
— Não precisava roubar uma mala só pra conseguir o número da garota, seu mané — Minha amiga bufa, ao nosso lado.
— É — concordo, com uma careta — , foi uma péssima primeira impressão.
— Posso tentar de novo, se você topar.
Sinto aquele sorriso que estava segurando, lutando para sair. Pergunto à Pérola com o olhar, sobre o que ela acha, mas minha amiga revira os olhos e dá de ombros.
— Tudo bem — deixo o sorriso aparecer enquanto pego minha mala do chão. — A gente se vê na praia depois do almoço.
Dou a volta por ele, notando a diferença de altura, e entro na recepção com minha melhor amiga ao meu lado, se segurando pra não surtar junto comigo.
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Às vezes eu me surpreendo com minha própria ousadia. Mas é mais forte do que eu. Quando vejo, já saiu e eu fico de mãos atadas tendo que lidar com esse meu lado ousado e sem censura, mesmo que, muitas vezes, ele tenha razão. E, para ser bem honesta, eu gostei do que vi. A pele morena, dourada e brilhante, a altura do Monte Everest, os olhos verdes com um toque castanho, os cachinhos caindo na testa... Eu me pergunto como nunca o notei antes...
— Ele disse que sua turma é considerada rival da nossa — Pérola comenta, enquanto nos acomodamos em nosso quarto compartilhado. — Com certeza é do noturno, aquela turma insiste em competir com a gente, como se estivéssemos no fundamental!
— Mas como pode ter notado a Nathalye, mas a gente nunca ter o visto? — Sara - que além de estudar na mesma turma desde o início do curso, também vai compartilhar o quarto com a gente e nossas outras três amigas, da mesma sala - ficou sabendo de tudo assim que pisamos no chalé.
Mal tive tempo para notar o quarto com três beliches, só cheguei, me sentei na primeira cama que vi e despejei tudo como um vômito. Sarinha escutou com os olhos arregalados e depois deu uns pulinhos de animação, por eu ter sido tão impulsiva a ponto de marcar um encontro com o cara que pegou minha mala só para ter motivo um para falar comigo.
— Talvez ele realmente seja um stalker — Pérola dá de ombros, enquanto guarda suas roupas no armário branco, gigante o suficiente para as seis pessoas que passarão as próximas semanas nesse quarto.
— Não faço ideia do que ele viu em mim, mas, já que fiz essa loucura de marcar algo, o que me resta, além de ir?!
— Saber se ele não é um maluco — Sara aponta, andando de um lado para o outro no quarto, conhecendo cada canto.
— Acho que isso já sabemos — Pérola resmunga, com a cabeça dentro do armário.
Essa observação faz subir um arrepio pela minha espinha, talvez de ansiedade ou medo, ou até mesmo de concordância.
E se for loucura?
— Não vai se arrumar? — Sara para na minha frente, com as mãos na cintura. — Já é meio dia! A sua briga com o motorista, mais o check-in levaram quase a metade da manhã.
— Nossa, achei que ainda fossem onze horas... — Pego meu celular e fico chocada com o horário.
— Nós chegamos às onze, mas isso foi há mais de uma hora atrás.
— Mas e minhas coisas? — Aponto pra minha mala, jogada perto da porta, onde deixei assim que cheguei.
Pérola bufa e tira a cabeça de dentro do armário para me encarar com o semblante sério.
— Vá logo, antes que eu te arraste pelo cabelo!
Dou um pulo, resgato minha mala do chão e a arrasto até o banheiro, ao lado da porta do quarto. Me agacho e procuro no interior dela algo bonito e fresquinho para andar na praia. Antes disso tudo, quando ainda estava tudo bem e estávamos dentro do ônibus, marquei com minhas amigas de passar a tarde na praia, mas nossos planos foram por água abaixo, e por culpa de um homem que eu nem sei o nome... Ainda.
Tatiana, Amanda e Geovana foram as primeiras a chegar no quarto, junto com Sara, mas não aguentaram esperar eu e Pérola chegarmos, para irmos juntas pra praia. Provavelmente as três estão esperando por nós, se perguntando o porquê da demora. Provavelmente vão se corroer a tarde toda, até que uma de nós conte o que rolou. Ou pior, achem ruim que eu tenha saído com alguém da turma rival; elas são sempre as primeiras a aceitarem as brigas que a outra turma cria, então eu não acharia estranho se não concordassem com esse... Rolo...?
Será que já posso chamar assim?
Por fim, acabo escolhendo um top azul de alcinha e um shorts branco. Tomo banho e me visto num segundo, nem me importando de secar o cabelo e indo com ele molhado mesmo. Calço minha havaianas azul, que combina com o top e saio correndo do quarto, não ligando para o fato de não conhecer o resort além das fotos e do mapa disponível no site.
Eu devo estar muito louca mesmo.
Ando pelos chalés, todos iguais ao meu e de minhas amigas, diferenciados apenas pelos números em cima das portinhas de madeira. É como um labirinto de chalés, vegetação litorânea e asfalto de pedrinhas; era para ser um sonho, se não fosse um verdadeiro filme de terror.
Depois de andar pelo que parecem horas, e em círculos, vejo uma plaquinha, escrito PRAIA, com uma seta embaixo, apontando para a esquerda, e mais embaixo escrito PISCINA, com uma seta apontando para a direita. Decido confiar na placa e sigo para a direita, torcendo para que o boy - stalker - sem nome ainda, esteja me esperando.
O caminho de pedras dá lugar ao de madeira assim que a terra e a grama mudam para a areia branquinha da praia, passo pela vegetação que cobre as laterais do caminho, como um corredor, e num segundo vejo o marzão azul brilhante. Me lembro da foto no site do resort, e de como eles quiseram deixar bem explícito que a praia é reservada apenas para hóspedes.
O caminho de madeira é como um calçadão, só que menor, e também leva até metade da areia e por toda a área reservada prometida no site. Tem três quiosques, muitas mesas e cadeiras e mais perto do mar há espreguiçadeiras e guarda-sóis. Não está lotado, mas tem um tanto bom de pessoas, e algumas eu reconheço da faculdade.
Minha faculdade faz competições anuais, cada ano com um tema e com uma premiação diferente, nestes dois anos em que estudo lá, essa foi a primeira vez que minha turma ganhou e a turma "rival" ficou em segundo lugar. A viagem foi prometida para os dois primeiros lugares e aqui estamos, as duas turmas mais competitivas passando as duas últimas semanas do ano juntas, como se fossemos melhores amigas para sempre...
Que piada!
Avisto os cachinhos de longe, lá no final da praia, sentado em um banco de madeira. Apresso meu passo, ansiosa, e quando chego apenas me sento ao seu lado, sem falar nada. Ele não se assusta, como se soubesse que eu apareceria bem nesse momento, se vira para mim e abre um sorrisinho.
— Oi. — Suspiro, me dando conta que ele é maior do que eu me lembrava, e seus olhos são mais bonitos de perto do que deviam.
— Oi.
Ele deve ser do tipo caladão, o que se for pensar bem, é uma merda, já que eu falo pelos cotovelos.
— Vim pensando no caminho que isso não foi uma boa ideia. A primeira impressão que tive de você foi... Bem, digamos que bizarra e também tem o fato de você ser da outra turma e isso não vai pegar bem...
Falo tudo olhando para qualquer outro lugar, menos para ele, que fica calado, apenas escutando.
— Me desculpe ter chegado daquela forma, eu também pensei nisso depois e você tem total razão, mas sobre sermos de turmas diferentes... Não é motivo, você sabe. Não estamos na escola, somos adultos.
Dou de ombros e encaro o mar azul, com suas ondas cristalinas. Tenho vinte anos mas constantemente me sinto com dezesseis... Balanço a cabeça, tentando mandar meu ex embora da minha mente. Ele tinha que aparecer logo agora?!
— Que tal a gente só dar uma volta pela praia? — ele pergunta, um tom mais baixo. Talvez esteja pensando melhor e uma hora ou outra vai acabar concordando comigo. — Depois vemos o que acontece.
Encaro seus olhos verdes e me arrependo na mesma hora, porque eu sei e, provavelmente ele também sabe que, não importa o que diga, eu concordaria com qualquer coisa sem questionar.
— Tudo bem, mas posso saber seu nome? — Pergunto, um tanto envergonhada pela pergunta nessa altura do campeonato. — É estranho não saber seu nome, minha cabeça fica criando apelidos vergonhosos involuntariamente.
Ele dá uma risadinha e estende sua mão tão gigante quanto ele todo — Rafael.
Sorrio, aproveitando que estou mais perto para olhar suas tatuagens, e deixo que minha mão suma embaixo da sua. — Nathalye.
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