IV - A arte da Guerra

"Você destruiu meu mundo inteiro quando você veio, e me atingiu como um furacão" - Hurricane, Luke Combs

Durante todo o almoço em família Alison não tirou os olhos de John, que se sentava bem a sua frente, do lado oposto da mesa de madeira. Não porque ele fosse excessivamente bonito, ou porque seus traços marcantes fossem aprazíveis de serem admirados, Alison Grace jamais admitiria esse fato, mas porque John Rutherford era um verdadeiro mistério a ser desvendado.

Sua avó lhe fizera diversas perguntas, sobre trabalho, sobre faculdade e sobre a internação da qual ele acabara de retornar. Alison prestava atenção em cada palavra que o loiro falava, colhendo provas e construindo teorias sobre a vida do problemático rapaz.

Alison Grace não queria saber um pouco mais sobre John, ela queria saber tudo sobre ele. Não porque gostasse dele, ou porque quisesse se aproximar, na verdade, era justamente o contrário.

Alison havia estudado A Arte da Guerra de Sun Tzu algumas vezes, e sabia que não podia vencer uma batalha sem conhecer o seu inimigo, e ela não estava disposta a entrar nesse jogo para perder.

Além disso, John acabara de acusá-la de ser rasa e simples, e as palavras que ele disse ainda ecoavam em sua cabeça. Alison sabia que aquela era só outra maneira de chamá-la de uma patricinha mimada e superficial, e agora, ela precisava provar de alguma maneira que ela era, em muitos sentidos, melhor do que ele.

Ao final da refeição Alison retirou a mesa e se ofereceu para lavar os pratos, embora não fosse algo que estivesse acostumada a fazer, ela não queria parecer mimada como John a acusou de ser.

A garota estava ciente de que nunca precisou fazer tarefas domésticas em sua casa, mas isso não significava ser mimada, muito menos rasa ou simples como John lhe chamara. Sua mãe sempre lhe ensinou que precisava estudar muito e trabalhar duro pra que pudesse pagar pra alguém fazer tais tarefas por você.

Qualquer pessoa rasa e simples poderia lavar um simples prato, Alison sabia que era melhor do que isso. Ela falava quatro idiomas, sabia boa parte da constituição norte americana e das leis do seu estado de cabeça, podia debater com clareza por mais de uma hora sobre quase qualquer tema da atualidade, e de quebra, ainda sabia tocar alguns instrumentos, mesmo assim, se deixava abalar por aquelas palavras.

Ela queria provar para John que não era nada daquilo que ele achava.

Assim que terminou o serviço, caminhou em direção ao jardim nos fundos da casa. Vasculhou o espaço com os olhos, mas não encontrou a avó, apenas John sentado na escada de madeira que dava acesso da varanda ao gramado, onde ele pregava algumas tábuas soltas usando a mesma pistola que emprestou para Alison um pouco mais cedo.

A garota recostou-se no batente de madeira da porta e encarou-o em silêncio por alguns instantes.

− Perdeu alguma coisa? – O loiro perguntou fazendo uma breve pausa em sua tarefa para levantar seus olhos azuis até encontrarem-se aos de Alison, e esboçou um sorriso no canto dos lábios. – Ou está só pensando no próximo comentário ácido que vai fazer sobre mim?

− Você ficou me devendo uma coisa – a garota retrucou sorrindo.

− Se for um pedido de desculpas você pode esperar sentada. – Ele riu e sacudiu a cabeça em negativa.

− Não! – Ela revirou os olhos. Se bem que ela achava que um pedido de desculpas formal cairia bem depois da maneira grosseira com que ele a tratou, mas estava ciente que sua fina educação lhe obrigaria a pedir desculpas pelas indelicadezas também, caso ele o fizesse. Depois disso teriam de apertar as mãos e erguer uma bandeira branca anunciando a paz. Alison Grace não veio em busca de paz, ela sabia que não existiam pedidos de desculpas e apertos de mãos em tempos de guerra. – Você ficou me devendo um segredo. – Arqueou as sobrancelhas. – Eu te contei um meu. Agora é a sua vez.

− Você não me contou um segredo. – John riu. – Você só me disse quantos idiomas você fala e, por sinal, vindo de você, não me surpreendeu. Se quiser ouvir um segredo, vai ter que me contar um segredo de verdade primeiro.

− Se era algo sobre mim que você ainda não sabia então era um segredo sim – ela disse batendo o pé e cruzou os braços na frente do corpo.

John apenas a ignorou e voltou a ligar a pistola barulhenta fazendo com que os parafusos penetrassem na madeira, prendendo-a em seu devido lugar.

− Tá legal, tá legal! – Alison cedeu, ela queria mesmo saber qual era o segredo de John Rutherford, e um segredo por outro até que lhe parecia uma regra justa. O garoto largou a pistola e voltou a encará-la sob suas sobrancelhas grossas. – Eu sou líder da minha turma de debate no colégio – contou estufando o peito e sentindo-se orgulhosa.

− Qual é Alison? – Ele riu incrédulo e revirou os olhos. – Eu pedi um segredo e não o seu perfil no linkedin.

− Isso é um segredo! – ela protestou. – E agora você já tem dois meus, e ainda não me contou nenhum.

− Sem chance de eu considerar isso daí um segredo. – Ele saltou para ficar de pé em encará-la na altura dos olhos. – Nem se você quisesse seria tão superficial. Quero ouvir algo íntimo, algo que você só diria para o seu amigo mais próximo, ou para o seu namorado.

Alison não tinha nenhum amigo muito próximo, muito menos um namorado. Ela tinha suas colegas de sala, com quem trocava uma palavra ou outra nos intervalos, mas ela nunca conseguiu discernir a linha invisível a qual precisava transcender para tornar um simples coleguismo em uma amizade verdadeira.

Naquele exato instante, encarando os olhos azuis incisivos de John Rutherford, Alison constatou: Ela não tinha nenhuma amizade. Esse era o tipo de segredo que John gostaria de ouvi-la falar, mas ela jamais deixaria que ele desconfiasse.

− Não tenho nenhum segredo intimo! – ela mentiu. – Então por que não me pergunta logo o que quer saber?

− Eu quero saber o que te trouxe aqui Alison Grace. – O loiro sorriu satisfeito. – E não me diga que veio ajudar a sua vó com a reforma porque está na cara que você não sabe nem trocar uma lâmpada, quem dirá colocar a mão na massa e colocar de volta no lugar as telhas que voaram e as madeiras no revestimento.

− É claro que eu sei trocar uma lâmpada! – exclamou com os olhos arregalados, embora nunca houvesse trocado uma na vida. Ela não achava que tinha nenhum segredo pra executar tal tarefa, ou será que tinha? – E eu também posso muito bem usar essa... – Ela tentou lembrar o nome daquela pistola que não era uma furadeira, mas havia acabado de ter um branco. Mordeu os lábios de nervosismo. Ter um branco não era algo aceitável, não para Alison Grace. – Coisa aí para prender umas madeiras de volta na parede.

− Coisa aí? – John arqueou as sobrancelhas e deixou escapar dos lábios um riso curto. – Você está desconversando Alison, então me conta: O que veio fazer na Geórgia?

− Visitar a minha avó – Alison disse com a resposta na ponta da língua.

−Assim como fez todo verão nos últimos quinze anos? – Ele revirou os olhos e cruzou os braços na frente do corpo, recostando-se sobre a pilastra de madeira da varanda da casa.

A garota não se espantou. O que um garoto como John Rutherford poderia entender sobre agenda lotada e falta de tempo? Alison havia passado os últimos dez anos de sua vida, desde que entrou na escola, dedicando-se integralmente aos estudos para poder ser aceita em uma boa universidade de direito, o que, provavelmente, consumiria integralmente o seu tempo pelos próximos dez anos até que ela se formasse no doutorado.

Alison sabia muito bem o motivo para estar na Geórgia, esse era o último verão da sua adolescência e, embora parecesse madura e adulta em boa parte do tempo, tinha muita coisa sobre a própria vida que ela ainda não conseguia entender.

− Talvez eu estivesse indo à loucura com a rotina do Tennessee – acabou confessando. – Acho que eu precisava me afastar um pouco de tudo e respirar.

− Agora você começa a falar como uma garota de verdade, e não como uma boneca barbie idiota. – John esboçou um sorriso satisfeito. – Parece que Alison Grace também tem alguns defeitos que tenta esconder.

− Sua vez. – A garota ordenou, não queria que o foco ficasse em seus próprios problemas, mas sim nos dele.

− O que você quer saber sobre mim? – Ele ergueu uma sobrancelha.

Alison refletiu por alguns instantes, ela não sabia quase nada sobre John e, com certeza, tinha muita coisa que queria descobrir, mas tinha um único assunto que lhe deixava especialmente intrigada:

− Como foi que o filho do pastor acabou virando um viciado? – perguntou em um tom sarcástico.

− Eu pensei que você tinha sua própria teoria sobre isso – o rapaz respondeu com um sorriso torto. – Aquela coisa sobre não se encaixar em padrões sociais, não era isso?

Por força do hábito o garoto puxou um maço de cigarros do bolso e colocou um entre os lábios.

− Eu pensei que você tivesse acabado de sair de uma internação por causa do vicio – Alison retrucou franzindo o cenho.

John soltou um longo suspiro e acabou voltando a colocar o cigarro de volta no maço, sentindo-se um pouco frustrado.

− Não é esse tipo de internação que você está pensando – disse.

− Como você sabe o que eu estou pensando? – indagou.

− Me diga se eu estiver errado, mas tenho certeza de que você imaginou uns enfermeiros me buscando com uma ordem judicial, e me levando a força dentro de uma ambulância que mais parece um camburão para um lugar macabro onde eu ficava preso em uma cela toda branca amarrado em um colete de força provavelmente atacando a cabeça contra a parede por causa da abstinência.

− Eu não imaginei o colete de força – Alison respondeu sacudindo os ombros e depois prosseguiu. – Mas se não é esse tipo de internação, então qual é?

− Sua vó me convenceu a fazer uma internação voluntária depois que eu tive uma overdose de antidepressivos – ele confessou. – Então meu pai interviu, como sempre, e eu acabei passando alguns meses em uma fazenda-clinica terapêutica cristã que acreditava na cura pelo poder da adoração a deus.

− E você?

− Rezei bastante, jejuei, tomei alguns remédios controlados, eles me deram alta porque eu não representava mais um perigo pra mim mesmo ou para os outros, mas ainda tenho vontade de me dopar às vezes, então você decide se o amor de deus me curou ou não.

Alison não se sentiu feliz ou satisfeita como pensou que ficaria ao saber dos distúrbios do rapaz, e não era porque ele acabara de provar ser muito mais profundo do que ela havia imaginado, mas porque se sentia emocionalmente ligada a ele de alguma forma, e sentia uma vontade quase que incontrolável de abraçá-lo e dizer que tudo ficaria bem, mas é claro que não o fez.

− Então, você e o seu pai não se dão muito bem?

A expressão pesada no rosto do rapaz de repente se converteu em um sorriso e ele arqueou as sobrancelhas.

− Calma aí Alison Grace, eu acho que tá bom só um segredo por vez.

A garota bufou contrariada, mas acabou concordando.

Checou o relógio e se deu conta de que as horas haviam passado voando, o que pra ela, que sempre tinha horários estritos e programados, não era habitual. Sentiu um desconforto no peito porque parecia que estava atrasada para alguma coisa, embora soubesse que não tinha nenhum compromisso essa tarde, ou mesmo na tarde seguinte. Era estranho ter um espaço vazio em sua agenda.

Entrou na casa e tratou de procurar sua avó, para ofertar um pouco de sua ajuda. Como não tinha nenhuma habilidade com reformas, acabou ficando responsável por juntar alguns galhos de árvores que se aglomeraram na frente da casa com a tempestade.

Mais tarde, quando se recolheu para o quarto, Alison fez uma observação curta em seu caderno antes de dormir: "John Rutherford é um enigma, e eu estou prestes a decifrá-lo".

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