🌈

Nem tudo que vem do céu é sagrado. Nem tudo que brilha como estrelas no céu escuro da madrugada tem qualquer significado astrológico. Nem tudo que reluz é formado de preciosidades raras extraídas da terra sob o preço do suor e sangue derramado de almas desavisadas que foram colocadas no caminho de impiedosos seres. Clichês eternos, eu sei, mas existem motivos para serem como tal. Algumas verdades são indiscutíveis e inerentes mesmo que nos recusemos a enxergá-las sob a óptica simplória de nossas vidas medíocr...

— Alê!

Pauso o lápis na página do caderno que tenho apoiado no meu colo antes de levantar o olhar para a dona da voz tão familiar gritando meu nome ao longe. Sorrio quando vejo saltitando na minha direção a garota vestida em um macacão preto já desbotado pelo tanto que usa, a blusa branca de mangas longas cobrindo seus braços apesar do calor que faz. Debaixo do sol forte de meio-dia, sua pele escura reluz, as trancinhas balançando com o movimento de seus pulos tornando-a uma aquarela viva.

Aqui, debaixo da árvore, a sombra da copa cheia de folhas verdes me protege os olhos e permite que eu desfrute da visão da garota que é minha amiga há pelo menos uma década. É difícil lembrar um momento da minha vida em que Íris não estivesse presente e nem me esforço para isso. Meus dias não seriam tão iluminados sem ela.

Solto uma risada alta quando ela entra debaixo da sombra da árvore e põe as mãos nos joelhos, a respiração descompassada depois de um esforço físico mínimo, resultado do seu sedentarismo inato. Sua mente é inquieta e nunca dorme, mas seu corpo não acompanha seus picos de energia. Ponho de lado o caderno seguro, fechado sobre a grama macia, protegido de seus olhos castanhos curiosos cobertos por lentes redondas em uma armação fina que adorna perfeitamente seu rosto rechonchudo.

Indico com a cabeça e ela se joga no chão, sentando-se ao meu lado, a cabeça indo diretamente ao meu ombro em um gesto já tão familiar que não deveria enviar um arrepio ao meu estômago, mas envia. Vem enviando por bons meses agora e esse sentimento inesperado me desespera.

— Te procurei em todo lugar, Alê! — fala, deixando um tapa na minha perna. — Você sumiu. Esqueceu que a gente combinou de ir ajudar minha irmã com a apresentação de dança dela?

— Claro que não — respondo, recostando a cabeça no tronco que me serve de apoio. — Não é só de noite esse negócio? Está mal na hora do almoço.

Íris levanta a cabeça do meu ombro e passa a mão por meus fios meio desgrenhados. O toque gentil e despretensioso me faz fechar os olhos por um segundo.

— Eu sei, mas ela está me enlouquecendo. Por que não sou filha única? — pergunta, mexendo-se no lugar. Ela vira e deita na minha perna, fechando os olhos enquanto se acomoda sem qualquer cerimônia. — Juro, às vezes acho que prefiro arrancar minha cabeça do que ouvir Giovana reclamar de mais alguma coisa na vida.

— Você era igualzinha na idade dela — implico, sentindo meu coração disparar com a proximidade que parece tão natural para ela. E por que não seria? Sempre fomos assim, nada nunca foi esquisito entre a gente. Nossa relação não mudou.

Eu mudei.

Íris abre os olhos e faz uma careta, mostrando a língua como a bela menina madura de dezesseis anos que é. Apenas alguns meses nova do que eu.

— É sério — continuo. — Não lembra quando você tinha onze anos? Meu Deus, ninguém te aguentava. Tudo reclamava, tudo chorava, tudo achava que era o fim do mundo. Bem chatinha sim.

Ela morde a boca tentando segurar a risada e meu olhar se perde no seu lábio preso entre os dentes. Lábios que eu venho pensando em beijar com frequência demais ultimamente. Ideia inoportuna demais para o bem da minha sanidade.

— Eu não era não ruim assim — ela murmura, fazendo um bico.

— Era sim, você era um saco, Íris — respondo, com um sorriso fácil no rosto.

Ela ri e se remexe um pouco no meu colo, fechando os olhos de novo, cruzando as mãos em cima da barriga. Íris respira fundo, um sorriso doce crescendo em seu rosto. Não diz nada, apenas me usa de travesseiro e descansa a cabeça sobre mim.

Penso no que estava escrevendo antes de ela chegar, nas aleatoriedades das palavras sem muito sentido, como tudo que tenho me forçado a escrever nos últimos tempos. Qualquer coisa. Qualquer coisa desconexa para evitar escrever sobre o que realmente quero.

Sobre como seus olhos cintilam quando ela vê um gatinho.

Sobre como sua gargalhada desafinada é a coisa mais adoravelmente esquisita que já ouvi na vida.

Sobre como ela se comporta feito anjo caído, intocável, inabalável, mas na verdade é meu anjo da guarda a cada passo que dou.

Sobre como é inevitável implicar com sua empolgação quando começa a falar sem parar sobre pintores antigos que tanto gosta, dos quais não sei nada, mas escuto, porque qualquer coisa que ela fala parece o assunto mais interessante do mundo inteiro.

Sobre como eu quero enfiar a cabeça no travesseiro e gritar até recuperar o juízo e parar de vislumbrar minha melhor amiga toda vez que fecho os olhos.

Porque esses pensamentos não poderiam ser mais errados.

Muito, muito errados.

Mas às vezes a vida é incapaz de limitar-se entre o preto e o branco. Inifinitos tons do arco-íris invadem decisões e embaçam um juízo perfeito com a mesma facilidade com que um  dente-de-leão desfaz-se ao ar em uma tarde de brisa fresca.

— Que foi? — pergunto quando ela suspira pesadamente.

Conheço seus gestos e sei que tem alguma coisa incomodando essa cabecinha superativa. Espero que fale, porque o som da sua voz sempre invade o ambiente e toma toda atenção para si. O som da sua voz me arranca do meu próprio conflito e posso fingir por alguns minutos que não estou com um problema gigantesco.

— Eu não sei o que vou fazer da vida — diz, abrindo seus enormes olhos castanhos, olhando-me como se eu tivesse as respostas para todos os problemas do mundo, como sempre faz. Íris insiste em dizer que sempre sei o que fazer, o que não poderia ser uma ironia maior.

— Não morrer nem engravidar parece um bom plano por agora — digo e ela revira os olhos. — Você tem dezesseis anos, está preocupada com o quê? Tem a vida toda para descobrir isso.

— Não sei — murmura. — Meus pais resolveram conversar comigo ontem. Pelo visto eu já devia saber o que quero fazer porque ano que vem tem vestibular chegando. E eu simplesmente não tenho ideia, Alê. Não sei mesmo. Eu gosto de tudo, mas não gosto de nada.

Instintivamente, levo a mão às suas tranças e acaricio sua cabeça.

— Você vai ser ótima no que decidir fazer, como sempre — digo, quase sem pensar, porque é verdade.

Íris decidiu participar da peça da escola, foi escolhida como protagonista na hora. Resolveu que queria competir na olimpíada de matemática e carregou o grupo nas costas. Decidiu que precisávamos de um clube de debate na escola do bairro, e aqui estamos, nos preparando para uma palestra sobre desigualdade social. O que quer que ela decida fazer, faz.

Ela foca o olhar no meu com tanta intensidade que prendo a respiração, o medo bobo de que ela possa ler minha alma e meus desejos me invadindo.

— É tão fácil para você falar — resmunga e franzo o cenho, sem entender. Se tem alguém que não tem ideia do que fazer da vida, sou eu. — Você tem seus livros e textos secretos que tenho certeza que vão te render um Nobel da Literatura e um lugar na Academia Brasileira de Letras.

Rio sem conseguir disfarçar, mas me forço a parar quando vejo que ela fala sério.

— Você está bem louca — digo, balançando a cabeça. — Nunca nem leu nada meu.

Íris levanta do meu colo em um supetão, sentando de frente para mim com as pernas cruzadas. Ela arregala seus olhos pidões e começo a balançar a cabeça.

— Nem pensar — falo e ela se arrasta na grama, chegando mais perto, sua perna tocando a minha. — Íris, não.

— Por favor — pede. — Não entendo. Você sempre está escrevendo o tempo todo, para cima e para baixo com esse caderno. Você sabe todos os meus segredos, Alê. Todinhos. Até os mais constrangedores. Até que fiz xixi na calça porque não consegui esperar chegar em casa te contei.

— Mas isso é só porque você não tem filtro, sua louca.

Tento desconversar, mas ela só me olha. Encara-me com esses olhos tão cheios de vida, tão cheios de luz. Tão ridiculamente expressivos de uma maneira tão simples que é envolvente, esmagador. Sufoca minha resistência e me deixa completamente sem armas para negar qualquer coisa a ela.

— Por que você tenta tanto se esconder, Alê? — pergunta, agora com uma seriedade na voz que volta e meia a acomete, externando a maturidade escondida por trás dos gestos arteiros que a acompanham. — Você é incrível e eu sou uma das poucas pessoas que sabe disso porque você não deixa ninguém se aproximar, te conhecer. Por que não se mostra para o mundo?

Medo. Insegurança. Receio. Incerteza. Apreensão. Preocupação. Ansiedade. Inquietação. Dúvida. Uma boa dose de covardia. Enquanto guardar para mim o que quer que coloque no papel, não corro o risco de ter minha alma exposta a desconhecidos que não terão qualquer cuidado ao desnudá-la.

Dou de ombros, porque não quero dizer em voz alta. Íris suspira e brinca com o pingente da pulseira dourada que sempre tem ao redor do seu pulso.

— De qualquer forma, eu não sou todo mundo — aponta o que qualquer desavisado consegue perceber. Ela está longe de ser todo mundo. Está longe de ser qualquer coisa que não a inspiração para cada palavra que ponho nessas folhas.

Sem ter muita certeza de por que estou fazendo isso, estico a mão e pego o caderninho de capa vermelha, girando-o em minhas mãos. Parte de mim prefere morrer a deixá-la pôr os olhos nessas palavras, o medo de decepcioná-la é real. Sua opinião sempre foi a mais importante de todas e o que quer que ela diga será definitivo.

Não escrevo levianamente, existe um pedaço de mim em cada palavra. E se ela não gostar do que vê? Significa não gostar de mim no nível mais profundo que há.

Respiro fundo, fecho os olhos e estico-o para ela, em um gesto carregado de incerteza. Quase implorando em silêncio para que ela recuse. Se fosse outra pessoa, qualquer outra pessoa, a resposta seria um suspiro e um balançar de cabeça. "Não precisa, tudo bem. Se isso te deixa tão desconfortável desse jeito, não precisa se forçar." Mas não Íris, nunca Íris. A missão de vida de mulher de bochechas redondas é tirar da zona de conforto quem quer que cruze seu caminho.

Com um gritinho animado, ela toma o caderno da minha mão e abre logo na primeira página. Claro que na primeira página. Íris jamais se prestaria a perder-se em uma aleatoriedade qualquer. Precisa saber de tudo desde o início. Olhos famintos percorrem as linhas e arregalam-se aqui e ali.

Vejo seus lábios se separarem, seu peito subir e descer enquanto, concentrada, ela devora as linhas rabiscadas.

— "Revisou as palavras mais uma vez, apenas pela sua paz de espírito. A verdade é que não importava que história era contada naquele pedaço de papel envelhecido, coberto por sua caligrafia perfeitamente arredondada; nada tornaria perdoável o ato de ir embora sem se despedir do único amor que tomou seu peito em completude tamanha que fez seu mundo tonar-se um arco-íris de cores vivas."

Ela recita um trecho em voz alta e preciso me segurar para não tomar de sua mão o caderno. Meu coração dispara, sinto minhas palmas úmidas pelo nervosismo inegável.

— "De olhos fechados, permitiu que lágrimas rolassem por suas bochechas, externando nas gotas silenciosas o conflito de sentimentos que assolava seu peito, como maestro comandando uma orquestra, sinfonia improvisada compondo a mais triste das canções." Alê, isso é...

— É só um rascunho, não está pronto — defendo-me em um sussurro tremido antes que ela tenha chance de dizer qualquer coisa.

Íris balança a cabeça em negativa tão rápido que suas tranças finas sacodem junto. Ela põe de lado o caderno e aproxima-se de mim o suficiente para que seja difícil respirar.

— É lindo.

O brilho em seus olhos me desarma por completo. Sinto meu coração encher-se e despedaçar, derreter e tornar-me mais forte que qualquer metal conhecido. Íris estende sua mão e enlaça a minha, grudando nossos dedos juntos pelo que parece a primeira vez, mesmo que tal ato já tenha sido repetido em infinitas ocasiões.

— Você não devia se esconder do mundo assim, Alê. Devia usar sua voz. É tão linda, tão... poética.

Nego com a cabeça e ela me dá um tapa no braço.

— Deixa o mundo te ver como eu te vejo — fala, com o sorriso aberto de sempre, que ilumina e inunda qualquer coração desavisado.

E é com um simples piscar de olho e uma covinha à mostra em sua bochecha que ela me convence do impossível.

Um sorriso iluminado, mais brilhante que mil estrelas no céu. Olhos cintilantes, refletindo desejos escondidos, brindando-me com a mais pura das cores.

O misto de cores capaz de inundar o mais oco dos corações.

Intensa mistura de tons capazes de alagar mundos.

Íris.

Todas as cores do arco-íris em seus olhos que transbordam.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top