Capítulo 03 - Deus abençoe a língua humana

Tomei coragem e cheguei até onde Nathan estava. Ele tinha trago seu violão, que estava depositado sobre a única cadeira da mesa. Fiquei parada, sem saber o que fazer. Será que deveria lembrá-lo que instrumentos musicais não sentam? Palhaçada! Por que garotos têm que ser tão desligados?! Poxa, vida!

E Nathan estava lá, feito um idiota, sorrindo e olhando para mim. Será que ele não percebeu que eu queria, tipo assim, sentar?

Eu precisava me acalmar, antes que dissesse algo do tipo:

— Foi o seu violão que você trouxe para um encontro? — Arregalei os olhos, percebendo minha voz dizendo aquilo, em voz alta, e botei a mão sobre a boca.

Nathan olhou para mim atônico, coitado. E lá estava eu estragando algo que nem tinha começado! "Caramba, que mancada".

— Olha Nathan, me desculpa. Eu não disse por mal... Eu só estou... — Suspirei. — Esquece! Eu vou pegar outra cadeira.

— Não. Tudo bem. Eu achei engraçado — disse, se levantando. Achou engraçado? Arrã... Sei! — Deixa a cadeira aí.

— Não. Eu insisto. Ninguém está usando mesmo. Pode deixar seu violão sentado.

Desta vez ele riu, de verdade. Uma alta gargalhada. E eu me peguei pensando que adoraria ouvir aquela gargalhada mais vezes. Me repreendi; até perceber que todos nos olhavam divertidos.

Ótimo! Éramos os palhaços!

Puxei a cadeira, levemente nervosa e constrangida, e Nathan tentou impedir dizendo que não precisava, que insistia que eu me sentasse naquela cadeira, a maldita que estava com o violão!

— Nãoooo. Eu já disse que pode deixar o violão lá — respondi, emburrada. Por que garotos sempre têm que tentar controlar as coisas? — Solta a cadeira, Nathan! Tá maluco?

— Qual o problema de se sentar na minha cadeira?

— Dãã! Primeiro, a cadeira não é sua, é da tia Marta! — Fechei os olhos me sentindo estúpida por ter dito aquilo.

Ele sorriu, provocativo. Qual era o problema dele de ficar com aqueles dentes arreganhados todo santo minuto? "Só quer se mostrar, aposto!"

— Obrigada por me lembrar — rebateu, sem soltar a cadeira.

Aquilo estava ficando chato. Eu iria arremessar a cadeira na cara dele!

Irritadíssima, puxei a cadeira com força.

— Soltaaaaa!

Ele soltou, e a cadeira voou no garçom, o Júlio, que estava carregando duas xícaras de café. Também né, quem é o sem noção que toma café à essa hora da noite, num barzinho? E... Pobre Júlio! Pelo menos ele estava bem, com exceções das xícaras despedaçadas no chão.

Que desastree!

Respirei fundo, começando à contar até mil, novamente.

Nathan olhou para mim, e simplesmente começou a rir. Rir de mimm!! Vê se pode? Meninos não sabem de nada mesmo. De repente tia Marta e Júlio estavam rindo, e todos ali presentes gargalhavam como se minha desgraça fosse realmente divertidíssima.

120, 121, 122...

E eu pensando que ao escolher um lugar que me sentisse confortável as coisas seriam menos embaraçosas.

145, 146...

Eu só queria enfiar minha cabeça debaixo da terra e nunca mais tirá-la.

— Vêm, sente-se aqui? — Nathan falou, estendendo a mão.

Eu aceitei, à contra gosto.

Aí rolou aquele clima estranho, sabe...

Ele ficou me olhando, com requisitos de sorrisos nos lábios.

Eu fiquei direcionando meus olhos para todos os lados, menos nele.

Ninguém disse nada.

Ele sorriu, abertamente, desta vez.

E eu tive que olhá-lo para entender o motivo do sorriso.

— Gostei da camiseta — ele disse, e apontou a minha blusa.

Segui seu olhar.

Olhei para a camiseta mais estúpida do que nunca, que eu mesma customizei. Era uma camiseta dos Smiths que eu amava, e tinha achado uma ótima ideia ir com ela, já que Nathan também curtia. Ele também estava com uma escrita uma frase de Ask*. Diferente da minha que dizia: "Girlfriend in a coma"*. Parece até que tínhamos combinado dizer algo pelas entrelinhas.

Eu corei.

Juro que corei! E tenho certeza que ele percebeu. Só esperava, que tipo assim, ele não pensasse que...

"Odeio, odeio, encontro!"

— Obrigada. A tua também é... Hum... Legal! — Rir, nervosa, querendo me socar.

Burra. Burra, Malina!

Um gênio, você!

AHHHHHH

Eu queria gritar!

Júlio trouxe o cardápio e eu me escondi atrás dele, fingindo escolher o que iria pedir, mesmo que soubesse tudo de trás para frente. Era impossível não saber. Passei muito tempo ali ajudando tia Marta, e acompanhando Jaqueline nos seus ilimitados encontros.

Ficamos cinco minutos em silêncio. Deu tempo de contar até 300. Nathan fingia uma torse vez ou outra para chamar minha atenção, mas eu estava resoluta em ficar atrás do cardápio mais um pouquinho.

Eu que não ia olhá-lo tão cedo!

Até que ele decidiu falar:
— Olha... — Eu o espiei, obrigando-me à baixar o cardápio. Ele respirou fundo e eu o olhei, curiosa. — Vamos começar de novo?

— Hãm?

— É. Por exemplo: Oi, eu sou Nathan.

Observei sua mão estendida.

— Eu sei quem você é — respondi, rolando os olhos, como se dissesse "Por um acaso você acha que sou burra?"

Ele riu.

— Eu sei. Só estou tentando fazer com que a noite seja... boa.

Oh!

Certo. Nathan não era tão babaca, assim, afinal.

— Oie, garoto chato. Eu sou Malina.

Apertamos as mãos e rimos, feitos dois bobos.

— Oh, é um prazer conhecê-la, cara Malina, a garota em coma. — Rir, sem graça e ele adiantou: — Então, fale algo interessante?

— Tipo?

Entregamos o nosso pedido à Júlio, e ele continuou:

— Ah, sei lá. Sobre você? — sugeriu.

— Eu conto até mil todas as vezes que fico nervosa. Conto cada número, começando do zero, a cada segundo, em 17 minutos.

Nossa, interessantíssimo!

— Sério?

— Pode falar, é estranho, não é? eu rir.

Ele negou.

— Não, poxa. Quero dizer... — Eu fiz um a-há!, apontando-o. Nathan passou a mão na nuca, bagunçando o cabelo e disse divertido: — Não é muito normal. Mas é interessante.

Eu concordei, porque não é normal nem aqui nem nunca.

— Sabia se você contar um número à cada um segundo, dia e noite, você levaria mais de uma semana para conseguir contar até 1milhão e 1 bilhão lhe custaria metade da sua vida?! — comecei. — Levando em conta, claro, se você vivesse até, em média, 64 anos, mais ou menos. E você não conseguiria contar 1quintilhão nem se tivesse a idade do universo!* — Gargalhei, pelo falso interesse dele ao soltar um "Ah é?". — Sabia que somos todos primos...

Nathan me olhava atencioso, com atenção, enquanto falava sobre o universo e seus números. Eu nem fiquei mais encabulada em sua presença. Estávamos nos entendendo. Ele ouvia, comentava minhas falas, e ria na hora certa, de coisas certas. Ele respondeu todas as minhas perguntas, e nem eram aquelas que eu tinha gravado. Nathan falou sobre ele, sobre ser guitarrista de uma banda de garagem, da sua família, sobre mim... Pelo visto ele tinha notado em mim. Só que me achava muito... Malvada.

Eu rir e aproveitei e contei todas minhas piadas — horríveis — para ele.

Naquele momento eu nem conseguia me lembrar sobre a advertência que Jaqueline tinha me dado antes de sair. Mas agora eu me lembro bem. Ela tinha dito:

— Só não tente contar suas piadas para ele, ok?

— Qual o problema com elas?

— Elas são péssimas, Mali. Vai por mim, ninguém quer ouvir piada de números. Ninguém nem vai entender! E ah... Nada de matemática, ok? O intuito é você beijar na boca e não ensinar o cara a lei de ohm!

— Isso é física, Jaqueline!

— Tanto faz. — Deu de ombros e eu entrei no taxi, refletindo pela primeira vez sobre como Jaqueline passou em física.

É óbvio que não tinha seguido seus conselhos. Mas estava tudo indo bem. Nathan tinha rido de todas!

Quando deu nove e meia eu joguei a indireta que meu horário de recolher era as onze. Nathan estava muito lento. Ele não tinha tentado me beijar uma vezinha sequer! E olha que eu tinha dado várias, várias mesmo, insinuações. Nem parecia eu!!!! O que tinha de errado comigo, afinal? Era meu cabelo? Eu não era suficiente para ele? Eu estava endoidando.

— Tive uma idéia — Nathan falou, pegando o violão. — Que tal se déssemos uma puladinha na orla?

Era essa hora que o beijo iria rolar, né?

O que eu respondo? pensei, com receio, mas com aquele friozinho na barriga para acontecer logo.

— Pensei que você nunca iria dizer isso, garoto em coma — respondi, me levantando e brincando com o "nosso apelido".

Ahhhhhh! Tínhamos um apelido! Sabem o que isso significa? Eu também não sabia. Mas queria muito que significasse ele indo me beijar.

Saímos de fininho, mas não sem eu pedir o Júlio para avisar a tia Marta que íamos à praia rapidinho, para ela não surtar. Nem era tão longe. Andamos até lá brincando e provocando um ao outro. Ele me empurrava, e eu o empurrava de volta. Meus cabelos ao vento faziam a festa em todas as direções, sapateando para todos os lados. Não muito diferente do meu coração, que começou a bater descompassado quando chegamos à praia.

Ficamos em silêncio observando o mar se estender até o horizonte, sentindo aquela sensação boa de felicidade, simplicidade, de frescor da pele e da alma.

— Eu amo o mar — falamos em uníssono e nos olhamos, sorrindo um para o outro.

— Vem, garota em coma. Sente-se aqui, vou tocar algo para você.

Nathan tocou Cedo ou Tarde do NX Zero, e eu quase enfartei. Eu quase gritei! Era minha banda preferida, na época, depois dos Smiths.

Ele terminou a última nota e eu soube que aquele era o momento.

"Será que estou com bafo?"

"Só lembrar da laranja. Igualzinho! É!"

"Obrigada trident por existir!"

Ele foi se aproximando. Eu fiquei apavoradíssima! Mas, já?! Não ia dizer nada? Só chegar e beijar? Nathan encostou seus lábios aos meus, mas eu fechei a boca. Não!

— Calma aí... — Eu disse, e tirei o chiclete. Não dava para beijar mascando aquilo, né?

Ele riu e tentou de novo, determinado. Dessa vez iria dá certo. Ele se aproximou, entortando a cabeça para um lado — as pessoas entortam a cabeça para beijar? —, achei estranho mas entortei para o outro. Entortei demaiss!

— O que você está fazendo? — perguntou alarmado, arregalando os olhos como se fosse o exorcista na sua frente.

— Eu?? - — "Pensa numa desculpa, pensa numa desculpa"... — Nada! Vamos, hã...

De novo. Terceira tentativa. Ele se levantou um pouco sobre mim e minha reação foi recuar instintivamente, e ao perceber que ele só estava querendo me beijar, eu voltei com tudo, batendo com a testa no seu nariz.

— Aí!

— Me desculpa, sério. Você veio muito rápido... Ei, isso está ficando feio, em — Observei o local torna-se vermelho.

Ele ficou alguns minutos massageando-o com a cabeça erguida.

Eu quis morrer. É claro que tinha que estragar tudo. Estava indo tudo muito bem para ser verdade. E como eu ia beijar, agora? Como? Eu tinha praticamente aleijado aquele idiota! Certamente ele nunca mais olharia para mim, com medo, e ainda falaria para todo mundo do desastre que sou! Eu estava fadada à ser solteirona para o resto da vida, eu sentia!

"Nunca mais vou tentar beijar alguém na vida!!" decretei.

— É seu primeiro beijo? — perguntou, de repente, me olhando de soslaio.

Fiz uma careta.

— Está tão na cara?

Ele se virou para mim, suas pernas encostando-se às minhas, e sorriu.

— Vamos fingir que não — sussurrou, colocando meu cabelo atrás da orelha e aproximando seu rosto do meu.

Desta vez eu fiquei calma. Porque eu estava confiando nele.

Ele pousou a boca no canto da minha, sorrindo, mas não me beijou.

Eu disse: lento!

— Posso? — perguntou.

Eu abrir os olhos e vi todas as estrelas do céu nos seus olhos. A pintinha na pálpebra do olho direito parecia simplesmente adorável. E eu me perguntei se ele não estava com dor, porque estava péssimo aquele seu nariz.
— Já devia ter beijado, garoto.

Ele riu e me beijou.

Ok. Tudo bem.

No início achei super... Melado. Mas depois, não sei. Parecia que o universo tinha virado ao contrário, e tudo mudou. Eu não sabia o que fazer com... O que eu fazia com minha língua, mesmo? E a saliva? Eu só deixei Nathan tomar as rédeas da situação. Aos poucos fui ao seu embalo, seguindo seu ritmo, e então eu estava o beijando também. E foi bom.

Bom não... Espetacular!

Caraca! Eu beijei!

O mais importante, é que eu estava amando. Amando sua boca na minha, seus dedos com calos de guitarra na minha nuca brincando com meus cabelos, seu corpo junto ao meu, sua mão milagrosamente na minha cintura, sua língua... Que língua, meu pai! Maravilhosérrima!

Abençoadas sejam as línguas humanas e as mãos apertando cinturas. Amém!

A gente se separou e eu soltei a primeira coisa que veio na minha cabeça:

— Uau. Eu beijei! — Dei uma gargalhada, colocando os dedos sobre os lábios e completei: — Abençoada seja sua boca.

Natham riu e me puxou para um abraço.

— Obrigada por ter nocauteado meu nariz — brincou, falando pertinho do meu ouvido.

— De nada. — Sorrir, tentando me controlar para não falar o que eu realmente queria dizer:

"Obrigada por ter feito o meu primeiro beijo valer a pena".

— A gente vai continuar se vendo? — foi ele quem falou! Eu disse, num disse, que ele era maravilhoso?! — Eu tenho um pacote de trezentos torpedos, só para você saber.

Eu brinquei com seu cabelo.

— Acho que sim, né, com quem mais você poderá gastar seus torpedos, se não eu, a garota que tem mil em bônus para ligações locais, hum?

— Ah, garota esperta! Ainda bem que somos da mesma cidade.

Nós rimos e nos deitamos na areia, observando o céu, em silêncio.

— Nathan?

— Hum?

Ele olhou para mim.

Eu já estava olhando para ele.

— A gente pode continuar se beijando, não?

Ele soltou uma gargalhada e me beijou.

Beijei muito!

Ah garotos...

Benditos-malignos garotos.

♥~♥

*"Ask", uma música dos Smiths. (N.T)

Na blusa de Nathan a frase em questão faz referência a este trecho da música:

- If there's something
You'd like to try
Ask me - I won't say "no"
How could I?

- Se há alguma coisa
Que você gostaria de experimentar
Peça para mim - eu não diria "não"
Como eu poderia?

*"Girlfriend in a coma" do The Smiths. "Namorada em coma". (N.T)

*Referência a um trecho do livro Bilhões e Bilhões Reflexões Sobre Vida e Morte na Virada do Milênio de Carl Sagan.

~~

Malina qndo chegou em casa depois de ter beijado muitíssimo kkk

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