DÉCIMO PRIMEIRO CAPÍTULO
Acordei mais cedo, assim que o sol raiou. Se eu tinha dormido mais que quatro horas, era muito. Mas, apesar dos meus olhos secos e cansados, eu fiz o melhor para tomar um banho sem dormir no box ou não cair colocando as calças. A casa inteira estava silenciosa quando eu pisei para fora do quarto, entretanto consegui ouvir alguns ruídos e a voz de Meryl na cozinha. Fui até ela para ajudar com o que fosse necessário. Aproveitamos para conversar bastante. A beta não disse nada sobre o dia anterior e eu realmente adorei poder saber mais sobre a sua vida.
— Quando o meu filho era mais novo, ele dizia que queria vir para Londres porque era onde “aqueles guardas engraçados e sérios ficam protegendo o castelo” — ela disse, imitando uma voz infantil e deu risada.
— Ele sempre gostou desse tipo de coisa, então? Voltadas para o Exército e tal?
— Sim, desde pequeno — ela suspirou em saudade. — Uma vez ele se meteu numa briga na escolinha porque o coleguinha disse que os soldados da rainha eram chatos.
Arqueei as sobrancelhas, dando risada. Sally chegou alguns minutos depois e com isso eu fui acordar Harry, porque o horário que a alfa chegava batia com o que ele precisava acordar. As coisas foram quietas, como no dia anterior, e a rotina matinal se manteve, mesmo que o cacheado tivesse limitado ainda mais nossa comunicação, decidindo ignorar absolutamente tudo que eu falasse que não fosse de seu interesse.
Ele tinha algumas reuniões para fazer e os documentos já haviam sido organizados e, por isso, eu tinha o dia livre. Era estranho quando aquilo acontecia, porque eu me sentia morando na mansão Styles. Não queria dizer que eu considerava aquele lugar minha casa, mas não era ruim desfrutar dos cômodos luxuosos e das outras coisas que me eram oferecidas.
De toda forma, pude terminar de ler Orgulho e Preconceito e, apesar de Sally ter dito que poderia me emprestar mais livros da Jane Austen, eu respondi que preferia ler outros gêneros. Não foi um problema, aparentemente, porque ela me orientou a subir até o terceiro andar e dar uma olhada na porta do outro lado do corredor, contrária à da academia. E como eu tinha bastante tempo e estava curioso, segui suas instruções.
O que eu encontrei foi simplesmente a maior biblioteca caseira que eu poderia ver em toda a minha vida. O cheiro do lugar já era diferente do resto da casa, como se um incenso suave tivesse sido queimado ali e, também, se misturasse ao cheiro do papel das páginas de todos aqueles livros. Era tudo bastante claro, com uma enorme janela ocupando quase toda a parede de frente para a porta, e o cômodo era do mesmo tamanho — senão maior — do hall de entrada e a sala principal do primeiro andar juntos.
As estantes de mogno escuro se estendiam por vários corredores e chutei que existiam, no mínimo, quarenta delas. Todas repletas de prateleiras cheias de livros, organizadas por gêneros literários e ordem alfabética. Eu, mesmo não tendo feito ensino médio numa escola propriamente dita, sempre busquei estudar em casa por conta própria, e mesmo gostando muito de livros didáticos, os de ficção e fatos históricos sempre teriam um lugar especial em meu coração.
Quis chorar de emoção ao ver o quão minuciosa e delicada aquela sala parecia ser. Era outro mundo, como se a biblioteca não pertencesse ao restante da casa. Os tons que iam do marrom escuro ao branco traziam muita leveza para os olhos e imaginei o quão agradável seria passar a tarde lendo ali. E, claro, isso foi exatamente o que eu fiz.
Existiam pufes e poltronas e tapetes felpudos enrolados para que quem fosse ali pudesse se sentar, todos ao final de cada corredor de estantes. Passei os olhos pelas plaquetas pregadas na parte mais alta, e parei meus olhos quando li POESIA ÉPICA. Com deleite absurdo, vislumbrei as lombadas dos livros com os respectivos títulos. Todos tinham capa dura e surpreendente estavam muito bem conservados, apesar do cheiro denunciar alguns bons anos de existência.
Eneida, Os Lusíadas, Beowulf, Kalevala e…
Sorri enormemente ao puxar com cuidado um dos livros mais grossos que havia ali, e suspirei ao ver as letras douradas estampadas na capa de couro bordô. Fui até o final do corredor para estender no chão um dos tapetes felpudos, de cor branca, que cheirava a uma mistura de amaciante de rosas e um mísero quê de pó. Sentei-me e comecei a ler A Divina Comédia, ficando animado como uma criança por ter os três livros num só.
Eu só fui me dar conta de que estava a manhã inteira ali quando Sally foi até a biblioteca para dizer que Liam tinha chegado e queria falar comigo. Agradeci a ela e gravei a página onde eu tinha parado antes de sair de lá para descer as escadas de dois em dois degraus. Quando vi o alfa ali, fui recebido por um abraço apertado e caloroso, então fomos até a varanda dos fundos, e Meryl disse que levaria chá para nós e alguma coisa para petiscarmos.
— Como está sendo ficar aqui? — Liam perguntou depois de alguns segundos em silêncio. — Zayn me disse que Harry te atormenta bastante, e que tiveram uma discussão séria ontem.
Sorri sem graça, suspirando quando o sol reapareceu entre as nuvens e aqueceu um pouco o meu corpo.
— Nós tivemos. Ele é muito inóspito, parece sentir muita repulsa quando se trata de mim — minha boca secou pela falta de nicotina por tantos dias e grunhi. — Você tem um cigarro?
Liam me olhou meio surpreso, mas enfiou sua mão no bolso e logo em seguida retirou um maço lacrado dali, estendendo-o para mim.
— Zayn quer parar de fumar, e pediu este como um último. Mas posso comprar outro quando eu estiver voltando para casa.
Agradeci baixinho e peguei a caixinha vermelha de Pall Mall. Abri a embalagem e quando tirei o primeiro, Liam me estendeu o isqueiro. A primeira tragada fez meus olhos lacrimejarem, mas a sensação boa da fumaça densa em meu corpo tranquilizou-me.
— Isso vai te matar, você sabe — assenti com as palavras do alfa. — Niall fuma?
— Não — balancei a cabeça, dando um sorriso pequeno e divertido com a ideia de meu melhor amigo com um cigarro na boca. — Na verdade, ele quer que eu pare.
— E por que nunca parou?
— Teimosia, acho — respondi depois de pensar. — E também porque faz sentir-me preenchido, de certa forma.
— Niall não o faz sentir isso?
Eu estava tirando o cigarro da boca, mas parei com ele entre meus dedos quando ouvi aquilo. Claro que o irlandês tirava boa parte daquele vazio que eu constantemente sentia, mas, ainda assim, eu não o considerava uma válvula de escape. Seria egoísmo prender meu melhor amigo aos meus problemas, seria falta de empatia com ele porque Niall sempre foi o mais sonhador e o mais animado. Niall sempre estaria lá por mim, bastava eu pedir, só que, ao mesmo tempo, ele tinha o total direito de viver a própria vida sem ter um fardo como eu em suas costas.
O cigarro era inanimado, não tinha alma e nem nada que remetesse à vida. Um maço não poderia reclamar de todas as noites em que eu chorei escondido, com um daqueles tubinhos de câncer instantâneo. Além de que, eu não oferecia risco a ninguém além de mim, como poderia acontecer caso eu largasse aquilo e começasse a beber. E não, não havia outra solução porque psicólogos eram caros demais, e psiquiatras eram um sonho distante e inalcançável para pessoas como nós.
De toda forma, porém, aquilo se resumia a uma única pessoa: Niall. Era por ele que eu não colocava uma gota de álcool na boca para ficar bêbado, era por ele que eu descontava minha raiva na luta — porque, dessa maneira, eu sempre estava calmo para lidar com as coisas, além de conseguir lidar com o estresse que ele passaria — e, principalmente, era por Niall que eu fumava. Todos os dias, pelo menos três cigarros. Assim, eu supria meu egoísmo ínfimo de ainda querê-lo perto por mais algum tempo, além de poder livrá-lo de mim, mesmo que aos poucos.
— Claro que faz — respondi, por fim. Traguei uma vez e tirei o cigarro da boca para soltar a fumaça.
— Então, por quê?
— Para dá-lo uma vida sem mim, Oficial Payne — olhei para frente, além da piscina e das flores no gramado. — Para ter a chance de Niall não acordar todas as manhãs preocupado com o nível de ferro e vitamina D em meu sangue. Para que ele possa ir atrás de alguém que o faça feliz e fique tranquilo em um encontro, sem checar o celular de meia em meia hora, apenas para ter certeza de que eu estou bem.
Traguei uma última vez a fumaça para meus pulmões e apaguei a bituca no chão, deixando-a em cima da mesa para jogá-la fora depois. Apontei para o filtro amassado.
— Essa coisinha está me ajudando a dar uma vida sem um infortúnio como eu para meu melhor amigo, Liam. É por isso que eu não parei.
O alfa me encarava sério e apenas deu um suspiro. Voltou-se para o mesmo lugar no horizonte para onde eu estava olhando antes.
— E você tem certeza de que ele te acha um infortúnio?
— Como assim? — Olhei-o confuso. — Preste atenção nas coisas que eu disse. Eu sei que sou um.
— Não, Louis, você não sabe. Niall chora quase todas as noites por não ter você por perto, e sempre que vemos algo na televisão que remeta a você, ele é o primeiro a comentar e parecer uma criança mostrando a coisa que ela mais gosta no mundo.
As palavras de Liam me fizeram recostar na cadeira, meio em choque. Eu sabia do amor de Niall por mim e ele sabia do meu, mas eu achava que ele estaria conseguindo se desprender de mim ao longo daqueles dias e conseguisse fazer tudo que ele não podia enquanto morávamos juntos.
— Você é a pessoa que nunca será superada para ele, Louis — Liam sorriu e olhou para mim com ternura. — Não se mate por incertezas tão toscas.
Depois desse diálogo, nós ficamos alguns minutos em silêncio, apenas observando as árvores chacoalhando com os ventos do outono e eu podia sentir minha cabeça um pouco morna pelo sol. Na mesa em que estávamos, havia um furo no meio para que a haste do guarda-sol ficasse firme e apesar de ele cobrir uma boa área, eu preferi sentar um pouco mais afastado. Eu estava ficando mais pálido por quase não sair da casa.
Esse pensamento me lembrou de algo.
— Aliás, Liam, acho que você já sabe do que aconteceu com Harry — sugeri, já que ele e Zayn eram casados e possivelmente conversavam sobre tudo um com o outro. O alfa assentiu. — Quando fomos ao hospital, ele me disse que eu poderia sair da casa contanto que em sua companhia. Como isso funciona?
Liam balançou a cabeça em compreensão, agradecendo quando Meryl surgiu com o chá e alguns pedaços de bolo. Agradeci também.
— O chip que foi implantado no seu tornozelo tem três mecanismos básicos: o de rastreamento, o de permissão e o padrão — ele tomou um gole de chá. — O de rastreamento é autoexplicativo, ele serve para que eu e os outros dois Oficiais responsáveis por você saibamos onde te encontrar. O de permissão é quando você está com Harry e ele autoriza que você saia, tendo um limite de até 24 horas para notificar a Contenção.
— Se Harry não fizer isso nesse prazo, o que acontece?
— Nós vamos atrás de você e te levamos.
Engoli em seco e assenti, optando por comer um pedaço de bolo.
— A permissão não tem limite de área, você pode ir para qualquer lugar do mundo contanto que Harry esteja com você. E, por fim, o padrão define o quão longe você pode ir sem Harry. O seu, devido ao tamanho do terreno da mansão, permite que você o percorra por inteiro. O que é muito bom e, particularmente, você deveria me agradecer por ter conseguido isso para você.
— Tudo bem, eu já sou grato também pelo resto que fez — arqueei uma sobrancelha. — Qual o tamanho desse terreno?
— Precisamente? Cinco hectares.
Engasguei com o chá e tossi várias vezes, ouvindo Liam rir de mim e senti tapinhas leves em minhas costas. Quando me recompus, olhei-o indignado.
— Eu fiquei nessa casa por todo esse tempo achando que não podia sair, Liam! — Resmunguei. — Deus, eu poderia ter me transformado e corrido livre por aqui. Meus ossos doem.
— Eu imagino que sim — ele sorriu. — Bom, se já acabamos de jogar conversa fora, eu gostaria de falar sobre algumas coisas mais sérias. Sobre o seu caso na justiça.
Me ajeitei desconfortável na cadeira.
— Não estou vendo mais brechas do que as que eu já consegui, porém talvez haja uma chance mínima de vocês não precisarem nem pisar o pé no tribunal.
— Algo sobre bom comportamento?
— Sim, mais ou menos — ele chacoalhou a mão aberta. — Se você conseguir um bom desempenho no seu trabalho com Harry, sua avaliação sobe e então poderá ficar aqui pelo tempo que eles determinarem sem precisar depor. Mas do jeito que eles são, não tenho certeza se serei eu quem irá assegurar o seu desempenho.
— Isso significa que algum agente do governo viria aqui? — torci o nariz.
— Não exatamente. Você não é um criminoso latente, não representa risco à sociedade, na visão deles. Mas muito possivelmente eles pedirão um detalhamento minucioso sobre o seu desempenho aqui, e acredito que isso será tarefa de Harry.
— Oh.
Entrelacei meus dedos e os estralei, nervoso. Era no mínimo desconfortável saber que parte do meu destino estava nas mãos daquele que menos gostava de mim, aparentemente. Liam pareceu notar minha preocupação, porque ele esticou o braço e fez um carinho de leve em meu ombro.
— Não se deixe enganar por essa personalidade de merda que ele está agora. Harry é muito profissional e nunca deixaria que uma pessoalidade dessas interferisse — ele se espreguiçou e sorriu. — Além de que, Zayn te adora. E se qualquer um faz algo contra alguém que meu marido gosta, eu mesmo tomo as providências.
Aquilo me fez sorrir grande e senti um certo calor fraternal pelas palavras de Liam. Eu sabia que poderia confiar nele.
— Ah, Louis — ele pareceu levar um choque leve e se ajeitou como se estivesse envergonhado. — Eu queria conversar com você sobre uma coisa bastante importante. Não tem nada a ver com o seu caso, é sobre Niall, na verdade.
— Algo de errado com o caso dele? — Perguntei, preocupado, com mil e uma coisas começando a se passar em minha mente.
— Não, não é sobre isso. É que… Não sei se ele comentou alguma coisa na primeira vez que eu o trouxe aqui — Liam riu e coçou a nuca, ficando um pouco embaraçado.
Franzi a testa por estranhar o comportamento do alfa. Era bastante difícil vê-lo ficar sem graça, tinha de ser um assunto bastante delicado para ele. Mas tentei puxar nas minhas memórias o que Niall poderia ter conversado comigo para deixá-lo daquela forma.
— Quer dizer sobre vocês provavelmente serem almas gêmeas! — Exclamei em surpresa e compreensão.
— Shhhh! — Liam estendeu a mão para tapar minha boca, mas desviei quando me agachei e comecei a rir.
Eu ri por alguns segundos e apenas observei a cara fechada de Liam, como uma criancinha birrenta. Respirei algumas vezes para controlar a risada e tossi algumas vezes, meu pulmão doendo pelo fumo depois de tanto tempo. Tomei um gole de chá.
— Acabou? — Ele perguntou resmungão, e eu assenti me segurando para não rir mais. — Sua aura está agitada, seu idiota.
— Como sabe? — Cessei meu sorriso, olhando-o desconfiado. Somente Impuros conseguiam enxergar auras.
— Fui treinado para saber disso, mesmo que não consiga ver.
Balancei a cabeça em concordância, surpreso pelo nível de aprendizado que a Contenção oferecia. Era um ótimo trabalho, apesar de tudo.
— O que quer conversar sobre Niall? — Perguntei, enfim.
— O que exatamente ele te disse, quando viemos?
— Bom, disse que sentia certa inquietação perto de você, só que parecia restar um vazio. Um espaço vago. Além de que, quando Zayn chegou, tiveram uma enxaqueca forte pelo resto da noite.
Liam concordou com a cabeça e suspirou pesadamente, como se tentasse escolher bem as palavras que iria dizer.
— Você é uma pessoa muito importante para ele, Louis. E eu sei que é incomum, mas da mesma forma que alfas podem se relacionar entre si, ômegas também podem. Eu queria saber como você se sente diante disso tudo.
Naquela hora, eu fiquei realmente confuso. O que Liam queria dizer com aquilo? Que raios tinha a ver com os três sendo almas gêmeas? Olhei-o por alguns instantes até realmente entender o que estava havendo.
— Você realmente achou que eu e Niall tínhamos algo — arqueei as sobrancelhas.
Ele me olhou como se aquilo fosse óbvio.
— Hã, sim? Digo, vocês são bem próximos e muito carinhosos entre si.
— Nós somos ômegas, cara — eu ri. — Nós agimos assim naturalmente quando em família ou entre amigos.
Percebendo sua bobeira, ele também riu e eu agradeci muito por aquele clima leve e amigável. Depois daqueles dias infernais, era bom rir daquela forma.
— Acho que você não pode me culpar, nunca convivi com muitos de vocês — ele deu de ombros. — Bem, mas ainda assim, vocês são muito ligados. Quero saber se eu e Zayn temos sua permissão para tentar algo com Niall.
Aquela cena poderia parecer estranha, principalmente porque eu me senti como se fosse o responsável por Niall. Ainda assim, aquilo fazia parte dos antigos costumes onde era normal um alfa pedir à pessoa mais próxima de seu pretendente, sem olhar a qual parte da hierarquia ela pertencia, a benção para qualquer tipo de relação amorosa com a pessoa quista.
Achei bonito o fato de Liam ainda manter tal tradição, então sorri para ele sentindo a ternura aflorar e disse, também respeitando aos antigos hábitos:
— É claro, alfa. Tem minha permissão.
Naquele tipo de ocasião, era apenas cordial eu chamá-lo por alfa. Porém, em outras circunstâncias, seria pessoal demais. Como amantes. Mas Liam sorriu e agradeceu, interpretando da maneira correta.
Depois que conversamos um pouco mais sobre os gostos de Niall, Liam disse que precisava ir embora pois tinha bastante trabalho para fazer. Mesmo comigo insistindo para que ele ao menos almoçasse lá, o alfa negou e se despediu com um beijo na testa e um abraço. Não muito depois, a campainha soou e eu suspirei, pensando que tinha sido bom demais para durar. Eu fui seguindo minha audição até onde Harry estava, parando em seu quarto.
Ele estava de costas para mim quando entrei, tentando alcançar uma caixa em cima de seu armário com a bengala. Apesar de Harry ser consideravelmente mais alto que eu, ele tinha algumas sequelas da convulsão e não conseguia se endireitar muito bem. Tossi audivelmente e ele se virou, e estiquei meu dedo para onde ele queria chegar.
— Posso pegá-la para você, se quiser.
Harry assentiu e se afastou, com uma careta de dor enquanto esfregava suas costas. Puxei um dos bancos estofados que ficavam ao pé de sua cama e tirei os chinelos antes de subir neles.
— É aquela preta, com a alça verde. A branca, também.
Puxei as caixas pedidas e as estendi para ele antes de descer do banco. O alfa não reclamou quando eu peguei uma das caixas — a mais pesada, somente para que ele não sentisse dor — e começou a ir até a porta, logo sinalizando para que eu o seguisse. Chegando no escritório, Harry explicou-me que aqueles eram documentos agora inúteis e que estavam ocupando muito espaço, e mesmo que eles somente ficassem em cima de seu guarda-roupa, não ousei contestar.
Ele colocou a caixa que tinha nos braços sobre a mesa e fiz o mesmo, vendo-o sumir por uns instantes entre duas estantes de madeira e voltar empurrando uma fragmentadora que tinha rodinhas. Harry abriu a caixa que tinha trazido e pegou um arquivo de lá, tirando os papéis e ligou a máquina, que era bastante silenciosa.
— Quem estava aqui? Há um cheiro diferente em você.
Desviei os olhos dos papéis sendo picotados e encarei a lateral do corpo de Harry, apenas por um segundo, então voltei-me para a máquina.
— Liam. Ele veio falar sobre o meu caso.
Harry assentiu num movimento curto pelo que vi na visão periférica.
— Conversaram por bastante tempo. Contou a ele também sobre o que aconteceu?
Seu tom foi rude e defensivo se referia à madrugada em que fomos para o hospital, como se estivesse se segurando para não se exaltar.
— Não, senhor Styles — respondi entredentes. — Não entramos nesse assunto. Não falo da vida dos outros avulsamente.
— Não foi o que pareceu, por Zayn.
— Você também nunca me pareceu alguém que tirasse conclusões errôneas sobre os outros, devido aos requisitos do seu trabalho. Mas, olhe só, eu me enganei.
Harry se virou para mim e pareceu com raiva, seu pescoço ganhando um tom de rosa.
— Como se atreve a falar assim comigo, Tomlinson? Não seja petulante.
— Petulante! — Exclamei, atingindo meu limite. Perdi totalmente a paciência com aquele alfa. — Você não sabe nada sobre mim, caramba. Assumir coisas é fácil, e todo mundo faz, mas eu não admito que você seja tão infeliz comigo, senhor Styles.
— Olha a boca, garoto — ele começou a mudar sua voz, indo para a de alfa.
Apontei meu dedo em riste, sentindo meu pescoço esquentar de raiva.
— Eu sou três anos mais velho que você, não me chame assim. E eu não estou dizendo nada demais, porque o mínimo que todos deveriam fazer um pelos outros é manter o respeito, e nem isso você consegue fazer, Styles.
Ele suspendeu suas sobrancelhas e ia reclamar de novo, entretanto, não dei-lhe nenhuma brecha. Mesmo que minha aura estivesse gritando para que eu me calasse, eu não o fiz.
— E abaixe a porra do tom de voz comigo, porque até agora eu te tratei como um lobisomem descente. Não sou qualquer um para que você aja assim, e nem admito isso. Se quer me ignorar e só notar minha existência quando lhe convier, ótimo! Mas me chamar de fofoqueiro, garoto, petulante e todas as outras coisas que me menosprezem está fora de cogitação.
Abri a caixa que eu havia trazido e tirei todos os arquivos de lá, batendo-os sobre a mesa. Harry não movia um músculo e seu rosto estava sombrio, o que não me abalou em momento algum. Caminhei até a porta e, antes de sair, virei a cabeça apenas para dizer:
— Se precisar de mim, disque a porcaria da campainha.
Sentia que precisava sair e fumar de novo, e até cheguei a apertar o maço de Pall Mall dentro do meu bolso; por algum motivo não o peguei, os cabelos loiros de Niall vindo até minha mente. Ao invés disso, desci as escadas rapidamente e fui até a cozinha, onde Sally estava cozinhando. Na mesma hora ela notou que algo estava errado, mas eu não quis explicar nada e só pedi para que ela fosse para casa e deixasse-me cuidar da comida.
A alfa concordou, e disse que se eu precisasse, poderia interfonar pelo telefone que tinha na cozinha, agradeci. Sally se foi e eu me vi rodeado por aquela imensa cozinha, me sentindo leve por estar sozinho. Vi que a alfa estava preparando bacalhau com batatas no forno e tinha começado a fazer um molho vermelho. Com isso, decidi fazer uma receita antiga de ratatouille, uma que eu tinha aprendido porque Niall e eu éramos apaixonados pelo filme do ratinho, e me pus a trabalhar.
Seria impossível dizer, entre a culinária e a luta, qual era mais eficiente em acalmar-me. E eu não estava a fim de suar e nem ficar com dores nas juntas dos dedos, então aquilo não me pareceu má ideia.
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Depois que tudo estava pronto e da mesa ser posta com a ajuda de Ethan, eu estava lavando a louça quando ouvi a porta da frente ser aberta e uma conversa rápida rolar entre Meryl e mais alguém. Logo, senti o cheiro de Zayn na cozinha. Contudo, fingi não perceber seus passos gatunos porque, quando ele chegou logo atrás de mim, percebi que o alfa tinha aberto os braços como para surpreender-me. Assim que ele avançou, eu me abaixei e passei rapidamente para suas costas, agarrando sua cintura enquanto gritava “ARRÁ!”
O fisioterapeuta arfou com o susto, logo, ambos começamos a rir quando ele se deu conta do que tinha acontecido. O soltei para cumprimentá-lo propriamente e, ainda sorrindo, Zayn estalou os dedos e disse, em falso desapontamento:
— Droga, esse lobinho é realmente rápido!
Dei uma daquelas risadas gostosas, como um bebê.
— Eu sempre vou escapar de uma emboscada, Zayne.
— Ah, então quer dizer que já estamos na fase dos apelidos, Lewis? — O alfa ergueu as sobrancelhas em divertimento.
Empurrei de leve seu ombro e encostei-me à pia.
— Se veio ver Harry, ele deve estar no escritório — tentei ao máximo não transmitir meu desconforto por apenas citar o seu nome, mas Zayn pareceu perceber.
— O que houve agora? — Eu abri a boca para falar, mas ele acrescentou: — Não minta para mim, lobinho. Sou seu amigo.
Aquelas palavras me fizeram sentir certa adoração e alegria, como se eu tivesse conquistado algo. E realmente era aquilo, pois significava que Zayn confiava em mim ao ponto de considerar o que tínhamos como uma amizade, o que era ótimo de se ouvir. Fazia-me sentir como se eu estivesse, aos poucos, encontrando peças perdidas de uma bússola, que me ajudaria a chegar em algum lugar bom. Primeiro Niall, depois Liam, e então Zayn. Havia também Meryl, Sally e Ethan, mas ainda faltava algo.
— Aconteceu o de sempre — respondi, afastando aqueles pensamentos. — Não dá para manter um diálogo que seja com Harry.
— O que aquele idiota fez?
Expliquei por cima o que tinha acontecido, mas mencionei o porquê de eu ter ficado tão chateado com o alfa de olhos verdes. Era estranho ver o quão rápido Zayn poderia mudar de expressões, com seus olhos antes preocupados indo para uma densa camada de raiva e descontentamento, o que me preocupou. Eu não queria mais confusões de Zayn com Harry por causa daquelas brigas que não diziam respeito a ele.
— Esqueça esse assunto, por favor — pedi. Meus ombros estavam tensos. — Vamos apenas almoçar, nós três, e deixar isso para lá.
— Deixar para lá, Louis? — Zayn pareceu indignado. — Você é a porra da alma gêmea dele, e aquele idiota de merda faz isso?!
Encolhi meu corpo ao que a voz potente do alfa atingiu meus ouvidos. Não machucou, mas foi bem alto.
— Zayn, eu…
— Espere só um pouco, Louis. Eu já volto para almoçar com você.
E antes que eu pudesse segurá-lo, ele simplesmente sumiu da cozinha como um furacão. Fechei meus olhos e torci para que as coisas não piorassem, porque sinceramente eu não sabia se conseguiria aguentar.
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VISÃO DE HARRY
Minha cabeça estava a mil depois daquela discussão com Louis. O jeito raivoso com que seus olhos azuis, que pareciam mais safiras, assombrando-me desde a primeira vez que nos vimos, deixou-me realmente puto. Quem ele pensava ser para falar daquela forma comigo?
Insuportável. Homenzinho insuportável, é isso que ele é.
Depois de tudo que ele tinha dito quando me forçou a ir para a porcaria do hospital, eu achei que ele realmente fosse desistir de me atormentar. Não que fosse importante para mim, e definitivamente aquilo não tinha me atingido ao ponto de me fazer pensar no desânimo e desistência que ele apresentou ao me chamar pelo nome pela primeira vez, dizendo que não fazia diferença tentar se aproximar de mim.
Eu nunca tinha pedido para Louis fazer aquilo, nunca disse que queria sua aproximação. Ele estava em minha casa somente para me ajudar e evitar ir preso, ou coisa pior, então que merda ele esperava de mim eu não fazia ideia.
Soquei os últimos dois documentos na fragmentadora e, mesmo não entendendo direito o porquê de eu estar tão frustrado, a sensação de destruir lentamente aqueles papéis me deu certa satisfação. Quase nada, mas ainda serviu de algo. Foi quando eu ouvi os passos pesados no corredor e a porta se abriu num estrondo. Arqueei as sobrancelhas ao ver Zayn ali, parecendo um animal.
Aquele pensamento me lembrou da briga que tivemos sobre o jeito que eu falara com Louis, anteriormente.
— O que está fazendo aqui?
Ele veio até mim e segurou a gola de minha blusa, me desestabilizando. Olhei-o indignado.
— Você acha isso engraçado, porra?! — Zayn praticamente gritou.
— Eu não sei do que você está falando, Malik! — Retruquei ao apertar meus dedos em seus pulsos, tentando fazê-lo me soltar.
Ele me encarou diretamente e rosnou, livrando-me de seu aperto. Ainda assim, seu corpo bloqueava o meu de sair, prendendo-me entre si e a fragmentadora.
— O que acontece dentro da sua cabeça para ser um lixo com Louis? Você nunca foi assim com ninguém, Harry.
— Ele é insuportável. Por isso.
— Você sequer deixou-se aproximar dele. Não sabe o quão doce Louis é!
Eu sabia que Zayn era comprometido — casado — com Liam, mas pelo simples fato de ele ser outro alfa e estar elogiando o ômega, o meu ômega, um incômodo brotou em meu estômago e rosnei baixo. Ao mesmo tempo, o pensamento de chamar Louis de meu parecia loucura, e arregalei meus olhos um pouco pela minha atitude.
Perspicaz, Zayn sorriu maldosamente.
— Não é bom ouvir outro cara elogiá-lo, certo? Porque, por mais que você negue, sabe que ele é seu, e só não quer aceitar isso por pura teimosia e preconceito.
— Eu não sou preconceituoso contra Impuros!
— Compará-los com animais mostra o contrário, idiota! — Ele exclamou. — O fato de eles poderem se transformar e terem instintos mais primitivos não os torna menos humanos. Sei que o seu histórico com eles não é bom, eu sei o quanto você sofreu, porém sua irracionalidade parece corroer seu cérebro.
— Acha que eu sou burro? Eu sei de tudo isso, Zayn — eu resmunguei ao empurrar seu peito para afastá-lo.
— Então, também deve saber que essa sua atitude infantil só vai tirá-lo mais de você, e logo ele irá embora. Achará alguém que saiba amá-lo, e você nunca mais poderá tê-lo, Harry.
Rosnei alto porque, sim, aquela ideia era dolorosamente ruim. Louis era insuportável, mas era meu, e ele não poderia negar aquilo.
— Eu não deixaria ele ir.
— Acha que isso importa? — Zayn riu em escárnio e cruzou os braços. — Agora, você não passa do cara com quem ele está ligado. Mas não ataram suas almas por completo e sequer tiveram uma boa convivência desde que Louis chegou. O que pensa que iria fazê-lo ficar? Ele te detesta, Harry.
Uma inquietação irritante surgiu em meu peito, e eu quis socar o alfa por estar certo. Era horroroso sentir aquelas coisas, como se eu começasse a me importar. Eu tinha noção de que, na realidade, sempre me importei, mas admitir aquilo para mim mesmo era como colocar minha mão no fogo.
A imagem de Louis veio à minha mente, seus orbes azuis como o oceano me chocaram como um soco. No dia em que ele chegara na minha casa, eu soubera que as coisas não seriam mais como antes. A mansão estava mais movimentada, mais barulhenta, e receber visitas regularmente quando Niall Horan aparecia era, no mínimo, estranho.
Eu nunca tinha gostado de mudanças porque minha vida nunca tinha sido estável, e quando tudo tinha finalmente acabado nos campos de batalha e também sobre as cirurgias quando eu quase morrera, senti que, enfim, poderia ter uma rotina monótona, como eu sempre quis. E foi bom durante os anos que tinham se passado, mas então, vindo do nada, surgiu Louis e sua língua afiada.
Furacão Tomlinson. Era um ótimo apelido, uma vez que aquele ômega esperto tinha virado minha vida de cabeça para baixo de novo. E eu tinha medo das mudanças que ele estava trazendo.
— O que eu posso fazer, Zayn? — Indaguei, sinceramente, após um momento. Afastei seu corpo para ir até minha cadeira, sentando-me.
— Primeiro, admita para si mesmo que está com medo de amar.
Encarei seus olhos castanhos, vendo eles não continham mais nenhum resquício de raiva. Carinho, amor e preocupações. Só isso, como quando éramos mais novos.
— Eu não estou com medo de amar.
— Está, Harry, você está, sim. Senão, jamais teria tratado-o de forma tão rude, e assim que eu o elogiasse ou Liam viesse visitá-lo, também não teria rosnado ou reprimido seu lado alfa.
Travei meu maxilar, amaldiçoando o paquistanês por um segundo por me conhecer tão bem. O que mais eu esperava? Eram mais de vinte anos de amizade; Zayn sabia ler-me como um livro infantil.
— Não sei se consigo.
— Então, fique nessa mesma situação, sem mudar, e veja-o partir, Harry — ele murmurou triste, descruzando os braços. — Não há mais nada que eu possa fazer. Vá almoçar quando se sentir à vontade, estarei lá embaixo com Louis.
Zayn saiu sem olhar para trás, e eu fiquei encarando a porta enquanto ela lentamente se fechava. Forcei minhas pálpebras umas contra as outras, sendo atacado pela visão cruel daquelas ondas azuis dos olhos do ômega Impuro.
De uma coisa, ao menos, eu sabia agora: deixar Louis ir embora, para enrolar-se nos braços de outra pessoa estava totalmente fora de cogitação. Ninguém seria melhor para ele do que eu.
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Eeeeita, o que vem por aí, hein? Hahaha.
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Até mais, eu amo vocês! ♥
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