Sonho
Assim que ouvi os passos indicando que Daryl estava se afastando, desliguei novamente a luz. Me vesti rapidamente e deitei na cama bagunçada. Me embrulhei, cobrindo até o topo da cabeça, deixando apenas o rosto de fora. Eu já havia me habituado com a escuridão, e fiquei observando aquele quarto que por hora seria meu.
Desde que o mundo acabará, eu jamais imaginei que teria um quarto só para mim, que moraria em uma casa novamente, que poderia utilizar a cozinha para fazer o meu famoso mousse de maracujá, que poderia tomar banho em um banheiro com água morna ou que dormiria mais de duas horas, sem me assustar com os andantes esbarrando em um cesto de lixo na rua e fazendo um grande barulho, atraindo mais deles.
Fazia frio em Washington. Não aquele frio de tremer o queixo ou de precisar andar com agasalhos até o pescoço por aí, a temperatura era ideal. Ideal, para ficar deitada debaixo da coberta, podendo chorar e acabar pegando no sono, sem ser incomodada. Mas, é claro que isso não aconteceu. Ouvi duas batidas na porta. Não me movi, para que a grade da cama não rangesse, e parecesse que eu estava dormindo.
- Mandy, - ouvi a voz de uma mulher do outro lado - sei que esta acordada.
A porta foi aberta e me virei um pouco para ver Michonne parada ali, segurando um prato de comida. Ela entrou no quarto, fechou a porta atrás de si, e manteve a luz apagada. Com o prato ainda em mãos, estendeu para que eu o pegasse. Não me mexi, mantive-me debaixo da coberta, na esperança de que ela desconfiasse e fosse embora logo.
Ouvi o som da porcelana sendo posta em cima da madeira do criado mudo e logo mais um pequeno som vindo da cama, indicando que Michonne havia se sentado. Tirei o cobertor de cima da minha cabeça e olhei para ela, a mulher estava sentada ao lado dos meus pés, seu olhar estava fixo na janela. Quando me pegou encarando-a, soltou um longo suspiro.
- Quer conversar? - ela perguntou e não respondi nada. - Eu tenho a noite inteira e a madrugada também. - ela disse, se espreguiçando.
Meu Deus, quando consigo tempo para ficar sozinha e sossegada, me aparece alguém, querendo conversar quando não estou afim. Eu só queria, dormir em paz.
- Olha - ela disse me encarando - você me conta sobre como era antes de encontrarem Alexandria e eu falo sobre minha história para você. - fez uma breve pausa e completou - Ed, me contou sobre o Mark.
Olhei para ela surpresa. Mas tentei me desviar do assunto.
- Por que eu gostaria de saber sobre a sua história? - perguntei. Em momento nenhum quis soar arrogante, foi apenas o modo que encontrei para escapar daquela situação e poder ficar em silêncio sobre isso. Ela soltou um pequeno riso.
- Talvez não queira, mas eu quero saber a sua. E faz bem desabafar. - quando percebeu que eu não ia ceder, começou a falar - Eu namorava com um cara fantástico antes de tudo isso acontecer, e eu era extremamente feliz. Nos conhecemos na faculdade, e desde então não nos separamos. - seu olhar estava no horizonte, como se lembrasse de cada momento com clareza, e é bem provável que a lembrança seja clara - Quando a merda toda começou, fomos para um tipo de centro de refugiados, e até então, estava tudo bem lá, mas alguém ficou doente e tudo foi por água a baixo. Quando ele voltou a vida, junto com nosso melhor amigo Terry, foi terrível. Eu não sabia o que fazer, me sentia sozinha e com medo. Com muito medo na verdade. Talvez isso soe doentio, mas os dois se tornaram meus guarda-costas. Eu meio que consegui domestica-los, cortei os braços e as mandíbulas inferiores deles, o que fez com que não me atacassem. Eles me mantinham segura, contra os outros mordedores.
Ela estava pensativa, e quando parou de falar, percebi que eu havia me sentado, com as costas na cabeceira da cama, e que meus olhos estavam marejados. Michonne respondeu que estava tudo bem, que eu não precisava me preocupar, e que agora era minha vez. A coberta estava sob as minhas pernas, e estendi para que a mulher se cobrisse também. Ela cruzou as pernas em cima da cama, como as professoras no Jardim de Infância fazia conosco, e as cobriu. Ficamos de frente para a outra. Respirei fundo, e comecei a falar.
- Antes de o mundo acabar, eu estava quase terminando curso de Medicina.
- Então temos uma quase médica aqui? - Michonne me interrompeu.
- Quase isso. - falei - Mark, já havia terminado o curso quando o conheci. Fui a uma festa de uma fraternidade, meio que arrastada por Lea, eu jamais gostei desse tipo de coisa, mas ela vivia insistindo para que eu fosse, algum dia. Já passava das duas da manhã, e aquilo não tinha previsão para acabar. De repente começaram a jogar, "verdade ou consequência" e foi quando não aguentava mais ficar dentro daquela casa, me sentia meio sufocada. Quando fui em direção à parte de trás da moradia, encontrei ele, sentado em um balanço, com um copo vermelho de plástico na mão. Após algumas trocas de olhares, ele veio falar comigo e ambos chegamos a conclusão que nosso lugar não era em festas e marcamos de nos encontrar depois. E assim fizemos, até que no terceiro encontro, nos beijamos pela primeira vez e cerca de um mês depois, ele me pediu em namoro. - fiz uma pausa, e prossegui.
"Quando eu estava no meu penúltimo ano, decidimos todos viajarmos juntos para Atlanta. Éramos inseparáveis, Lea, Zach, Ed, Mark e eu. Decidimos ir a Atlanta, pois os pais dele havia nos convidado e estavam ansiosos para me conhecer. Antes de irmos para lá, passamos duas semanas em uma Fazenda, onde não havia televisão, nem sinal de telefone, nem nenhum tipo de equipamento que nos ligasse ao mundo. - contei olhando para ela.
"Depois dessas duas semanas, que Ed decidiu batizar de "a desintoxicação", fomos a Atlanta. Mas quando chegamos lá, tudo já estava um caos, pessoas sendo devoradas no meio da rua, militares atacando civis, enfim era tudo muito assustado. Essas duas semanas "longe" do mundo, nos fez ficar sem qualquer tipo de informação. Não sabíamos o que fazer, para onde ir, se aquilo iria acabar ou como nos manteriamos vivos. Mark, que descobriu como matar os andantes. Ele que nos ensinou como matar um, sem chamar a atenção dos outros.
"Durante três meses moramos em um pequeno prédio, próximo a casa onde os pais de Mark moravam. Em uma noite, decidimos ir ate lá para ver se os encontrávamos, ou até mesmo para ver se era seguro ficar lá. A comida no prédio, já estava escassa, e não podíamos ir muito longe para conseguir as coisas. Quando chegamos a casa da minha sogra, havia um pequeno bilhete, pregado a geladeira com os dizeres 'Fomos ao supermercado no fim da rua. Voltamos logo. xoxo, Mamãe'. Naquele momento, Mark perdeu as esperanças, mas consegui convencê-lo de ir até o lugar onde eles possivelmente estariam. Eu não tinha nenhuma esperança de que os encontrariamos, mas era um supermercado, com certeza haveria comida lá. Mas eu não podia dizer isso a ele. Então Ed, Zach, meu namorado e eu fomos até lá. O local não era muito grande, e não havia indícios de muitos monstros no interior. Acabamos com alguns e começamos a pegar alguns alimentos, o mais rápido que conseguimos. Estava tudo bem, até que do nada, Mark parou de encher as mochilas e olhou para frente. Seus pais estavam andando um ao lado do outro. No momento, não consegui acreditar, que mesmo depois de mortos, eles continuariam juntos. Lembro-me bem, de ter segurado a mão dele e pedido para que ele não se movesse e ficasse calmo, que daríamos um jeito naquilo. Mas ele não me deu atenção, e eu até compreendo. Soltou minha mão gentilmente, e caminhou em direção aos mortos vivos. Os pais começaram a devora-lo, e tínhamos feito um trato anteriormente, de que não deixaríamos nenhum de nós se tornar um deles, foi quando eu atirei contra a cabeça do Mark. Zach atirou nos monstros que estavam comendo o rapaz, e o som dos tiros atraiu andarilhos de diversas direções, e tivemos que sair às pressas dali. Quando Mark foi atacado, este olhou em minha direção e focou os olhos no meu, e sussurrou um 'me perdoa'. Eu jamais me esquecerei daquela cena."
Quando terminei de contar, Michonne estava secando as lágrimas que escorriam pelo seus olhos. Ela estendeu as mãos para segurar as minhas e as apertou carinhosamente. Sequei meu rosto também.
- Foi isso.
- Você - ela disse baixinho, devido ao choro - falou que só você, teu irmão, e os outros dois rapazes foram ao supermercado. Onde estava Lea?
Droga! Tinha me esquecido dessa parte, e era algo que não gostaria de contar, pelo menos não agora. Mas, e se eu não tivesse outra chance? Michonne havia se aberto comigo, e sei que eu também - até demais, talvez - mas se fosse para eu ficar em Alexandria, não deveria haver mais segredos, e sei que se eu contasse a história de uma vez por todas a ela, nao precisaria repeti-la, para mais ninguém.
- Quando chegamos a Atlanta, e fomos para esse prédio, tivemos de limpar o local para podermos ficar. Só que, de um dos apartamentos ouvimos um choro, e quando entramos, dentro de um quarto que estava com a porta trancada, estava um bebê, de no máximo 8 meses de vida. Os pais haviam cometido suicídio, no quarto ao lado e por algum motivo, que jamais irei entender, deixaram a criança ali. Eu a resgatei e durante um tempo cuidei dela como se fosse minha. Mark ajudou muito também. Quando ele morreu, não consegui dar a atenção devida ao bebê, e meus amigos começaram a passar o dia fora, procurando coisas úteis. Houve um dia, em que Lea deixou a porta do fundo aberta, e alguns walkers entraram no prédio. Tivemos de pegar as coisas rápido e sair de lá. Estava chovendo demais lá fora, e quando encontramos um lugar seguro, semanas depois o bebê ficou doente. Pegou uma gripe muito forte. Ele morreu de forma "natural", e se transformou em um deles. Não é fácil ter de acabar com o sofrimento de um bebê, mas também não era justo deixa-lo naquela situação. Então, Zach enfiou a faca na cabecinha dele, com toda a dificuldade do mundo.
Michonne me olhava atenta.
- Qual era o nome do bebê? - ela perguntou e sorri ao me lembrar de quando todos demos sugestões de nomes.
- Decidimos chama-la de Daisy. Foi escolha do Ed, não me pergunte por que esse nome.
A mulher sorriu e falou.
- Eu já tive um filho. Seu nome era Andre.
Olhei para ela surpresa, pois ela também havia deixado de fora essa parte, quando me contou sobre a sua história. Arqueei uma sobrancelha, esperando que ela continuasse.
- Façamos um trato, você vai comendo e te conto sobre ele. Okay?
Concordei, pegando o prato que estava em cima do criado mudo. Nele havia duas coxas de frango, arroz, cenoura e batata.
***
Quando Michonne terminou de contar, passamos mais alguns minutos conversando sobre como ela encontrará Rick, e como acabaram juntos.
- Nunca vi Daryl se preocupar com alguém, como ele se preocupa contigo, Mandy.
- Quando cheguei, pensei em não me aproximar dele, pois ele foi meio frio e nem um pouco agradável, como os outros.
- Você se parece com Beth. - Michonne disse, mas se arrependeu logo depois - Eu nunca disse isso.
- Quem é Beth? - perguntei curiosa
Michonne protestou, dizendo que não contaria e que ela nao devia ter falado sobre isso, mas insisti bastante e ela acabou cedendo.
- Beth, era irmã de Maggie. Daryl e ela acabaram juntos quando a prisão foi atacada e os dois criaram um laço muito forte. Talvez isso venha desde quando chegamos ao nosso antigo lar, ou antes disso, não sei. Mas, Daryl se preocupava muito com ela. Quando Beth morreu, quando ela foi assassinada, Daryl estava la vendo tudo e isso o derrubou. Ele ficou mau, durante um bom tempo, antes de voltar a ser o que era antes.
- Ele a amava? - perguntei
- Eu não sei. Ele me disse apenas algumas coisas sobre. Mas, não comente com ele, por favor. - ela implorou, juntando aos mãos - Só eu sei, ele não contou a mais ninguém.
- Não se preocupe. - falei. Bom, eu acho que falei, pois o comentário foi seguido por um longo bocejo.
- Vou deixa-la dormir.
- Michonne, eu ainda preciso de um tempo sozinha, então não sei se amanhã estarei de pé para ser sociável com todos, nem para ouvir meu irmão.
- Eu entendo. Boa noite - ela disse beijando minha testa - Não se preocupe, ninguém a irá incomodar. Pode dormir tranquila, aqui é seguro. - ela estava saindo pela porta, segurando o prato que agora estava limpo, quando se virou - Posso contar ao Rick, que temos uma quase médica?
- Claro - dei um sorrisinho - Aproveite e conte que, Lea é arquiteta, que Zach é engenheiro mecânico e que Ed, estava quase terminando enfermagem.
- Deus atendeu nossos pedidos. - ela disse sorrindo e fechou a porta quando saiu.
Por fim, eu estava sozinha. Pronta para descansar. Eu me sentia melhor, depois de ter contado tudo a Michonne, e sei que ela conversara com Rick e Carl sobre meu passado. Disse a ela que não comentaria com Daryl sobre Beth, mas faria com que ele contasse a mim sobre ela. E no momento eu havia me esquecido do meu irmão, e só conseguia ficar irada com o senhor misterioso, por so me tratar bem pelo simples fato de eu me parecer com ela.
Sonhei com ele.
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