❐ Cʜᴀᴘᴛᴇʀ Eɪɢʜᴛᴇᴇɴ ➶


Moon olha pela janela a paisagem borrada. O trem está viajando a uma velocidade imensa, deixando todas as árvores em voltas parecendo manchas verdes no vidro.

A garota está sentada numa cadeira, aproveitando seu vasto café da manhã no vagão-cozinha. Seu segundo café da manhã, na verdade. Desde que saiu do Distrito 1, a garota não consegue parar de comer.

As imagens daquela gente saudando ela e de vários jovens da sua idade a idolatrando com brilho nos olhos fez Moon repensar sobre ser uma carreirista. Os Distritos 1, 2 e 4 apreciam os Jogos, algo não muito normal para os outros nove.

ㅡ Cuidado não exagerar na comida e acabar passando mal! ㅡ Alerta Anthony se aproximando. 

ㅡ Só estou nervosa, faz tempo desde que estive em casa pela última vez... ㅡ  A volta pro Distrito 2 assustava Moon, ela tentava imaginar a multidão sorrindo orgulhosos pra ela.

ㅡ Não precisa se preocupar, vai ser bem recebida, te garanto! ㅡ Anthony pega uma xícara de chá e toma um longo gole. 

ㅡ Não sei se mereço ser tão bem recebida assim. ㅡ A garota olha para seu mentor. ㅡ Desde que recebi a coroa, algo tem me feito pensar bastante em tudo isso.

Mesmo não especificando o "isso", Saerom sabia que Thony entenderia o que ela queria dizer. Talvez ele fosse o único a entender.

ㅡ Ela é muito pesada pra mentes tão frágeis. ㅡ Anthony deixa sua xícara na mesa e se senta, cruzando as pernas. ㅡ Esse é o método utilizado por Snow para evitar que a situação saia de seu controle.

ㅡ Situação? O que quer dizer?

ㅡ Nós vivemos em um Distrito onde a maioria adora os Jogos, entretanto, nos distritos mais pobres, muitos só querem que o atual sistema de governo acabe. E é com o medo que Snow controla a população. ㅡ O homem olha profundamente nos olhos de Moon. ㅡ Enviando crianças para se matar, Snow mostra que não se sentem culpado em matar inocentes para que seu reinado continue.

Enquanto Moon reflete sobre toda a tradição dos Jogos, o trem começa a desacelerar e a paisagem de árvores borradas é substituída por uma estação de trem cinza e rostos sorrindo e acenando pra garota.

ㅡ Apesar de tudo, tente aproveitar sua vitória. Você fez por merecer! ㅡ Anthony sorri enquanto sai do vagão cozinha e vai em direção a saída quando o trem finalmente para.

Moon anda pelo cemitério de tributos do Distrito 2. As quase cem lápides de mármore brilham com a luz solar, rodeadas da grama verdinha. Todo ano, quando um novo tributo chega ao cemitério, as lápides são restauradas em honra e memória aos que morreram nos Jogos.

Depois de finalmente ter escapado da multidão de cidadãos do distrito, a garota só queria um tempo pra esvaziar sua cabeça e sabia que o melhor lugar seria o calmo cemitério. A brisa fresca do distrito fazia o cabelo curto de Moon balançar.

Cada vez mais próxima da lápide de Kelvin, o primeiro tributo do Distrito 2 a morrer no Massacre, Moon percebeu que alguém estava sentado no chão em frente as lápides de Kira e Jonathan Everest. Por trás, Saerom percebeu ser um garoto forte. Seu coração começou a bater mais rápido.

Por fim, assim que chegou ao lado do garoto, Moon suspirou aliviada. Exceto pelo fato de ter barba e cavanhaque, o garoto sentado era idêntico a Jonathan. Aquele era o irmão gêmeo do carreirista, Trent Everest.

ㅡ Quanto tempo, Moon. ㅡ Trent sorriu para Moon enquanto limpava algumas lágrimas. ㅡ Como vai?

ㅡ Não esperava te encontrar aqui. ㅡ Saerom se ajoelhou ao lado de Trent, encarando as lápides de Kira e Jonathan. ㅡ  Achei que estava morando na Capital.

ㅡ Eu voltei pra casa do meu pai logo após a morte de Kira. ㅡ Trent coçou a barba. Apesar dos anos que não o via, Moon percebia que ele não havia mudado nada fisicamente. 

ㅡ Cansou da vida extravagante?

ㅡ Eu nunca gostei, só preferia ficar longe dele. ㅡ Trent apontou pro nome de Jonathan esculpido no  mármore. Abaixo do nome estava a frase "grande herói, bravo guerreiro". ㅡ Provavelmente foi meu pai que mandou escrever isso aqui.

Trent riu alto. Saerom, apesar de ser bem próxima dos irmãos, nunca soube o porquê Trent se mudou pra Capital logo após a morte da mãe, seis anos antes. 

ㅡ Seu pai é realmente um grande idiota.

ㅡ Eu sei... ㅡ Lágrimas voltaram a escorrer pelas bochechas de Trent quando seu olhar se voltou para o nome de Kira.

ㅡ A culpa não é sua. ㅡ Moon abraçou o garoto.

ㅡ Eu nunca devia ter deixado ela sozinha com aqueles dois, era óbvio que algo assim aconteceria. ㅡ Trent mais uma vez limpou as lágrimas, correspondendo o abraço de Moon. ㅡ Jonathan já tinha provado do que era capaz.

Então, girando uma chave na mente de Saerom, ela se afastou de Trent com as sobrancelhas arqueadas.

ㅡ Como assim ele já tinha provado do que era capaz?

ㅡ Isso não me surpreende, é por isso que as pessoas continuam gostando de Jonathan. ㅡ Trent olhou no fundo dos olhos da garota, suspirando. ㅡ Que meu pai sempre foi abusivo com minha mãe, você já sabe. O unico problema é que minha mãe não morreu em uma tentativa de assalto a nossa casa.

O coração de Moon acelerou. Ela já tinha escutado a história da morte da mãe dos irmãos dezenas de vezes e nunca contestou sua veracidade, já que todos os fatos indicavam que era verdade. Os únicos questionamentos da garota era por que Trent se mudou pra Capital e por que Jonathan se tornou tão frio e se afastou dela.

ㅡ Meu pai, num momento de raiva, matou minha mãe. ㅡ Continuou Trent. ㅡ Eu e Jonathan vimos a cena, só não esperava que meu irmão fosse ajudar meu pai a acobertar o assassinato. Numa tentativa de me calar, meu pai me mandou pra morar na Capital.

Saerom trancou sua respiração. Aquela história, apesar de parecer impossível, começava a fazer sentido. Era por isso que Jonathan tinha se afastado tanto, que ele não ligou tanto pra morte de Kira. Ele já havia presenciado a morte de alguém amado e ajudou a esconder aquilo.

A garota fechou seu punho na grama, sentindo a terra entrar entre seus dedos. Ela inspirou fundo e se segurou muito para não socar a lápide de Jonathan.

ㅡ Maldito filho da puta!

Anthony, sentado no sofá do vagão-sala, escutava atento a história que Moon contava.  

ㅡ Isso explica os transtornos psicopatas deles. ㅡ O mentor bebericou sua garrafa de cerveja, apesar de estar se mantendo sóbrio a quase uma semana, era difícil pra ele ficar tanto tempo longe do álcool. ㅡ Ver o assassinato da mãe pelas mãos do próprio pai abalou a cabeça dele.

ㅡ Eu acho que o Jonathan já era assim a muito tempo, ele só escondia e não tinha achado uma oportunidade pra mostrar essa personalidade, os Jogos foram uma ótima desculpa. ㅡ Thony terminou sua cerveja e colocou a garrafa no chão enquanto Moon ligava a televisão e colocava a fita com o resumo dos Jogos.

ㅡ Cada vez que eu penso mais no que aconteceu lá dentro, mais eu penso no quanto isso é doentio.  ㅡ Moon colocou a mão na boca e assistiu atenta o banho de sangue. ㅡ E saber que já cheguei a idolatrar e incentivar algo assim...

ㅡ Não se culpe, todos temos nossos olhos abertos depois de sair. ㅡ O homem olhou pra garota, observando seus olhos agora tão cansados, mas antes brilhosos e cheios de vigor. Moon era um espelho do que ele já foi um dia, e o que os próximos vencedores do Distrito 2 seriam nos anos seguintes. ㅡ O que podemos fazer é lutar contra o sistema.

ㅡ Como? Snow é influente demais, ele mataria as pessoas que amamos.

ㅡ Já não me restaram nenhuma. ㅡ Anthony se levanta do sofá, indo em direção a saída do vagão, mas se vira antes de sair e sorri pra Saerom. ㅡ Ou, ao menos, eu finjo que não.

Moon observa atenta os rostos sofridos dos trabalhadores e cidadãos do Distrito 3, pessoas que já passaram por tanto nessa vida e mesmo assim continuam em pé.

ㅡ Eu sei que nada trará seus filhos de volta, mas garanto que farei jus a minha merecida vitória! ㅡ A abre um sorriso falso enquanto uma salva de palmas fraca ecoa. Ela não queria estar discursando aquilo, não podia. Mas precisava manter sua pose de Vitoriosa orgulhosa enquanto estivesse viva.

Descendo do palco, a garota atravessou o hall do prédio do prefeito e saiu, indo em direção à estação. Sabia que o trem não sairia agora, mas precisava fugir daquela multidão que a fuzilava com os olhos. No entanto, as mãos de Dave a impediram de continuar seu caminho.

ㅡ O que quer? ㅡ Indagou Moon. ㅡ Desculpa, não quis ser grossa.

ㅡ Tudo bem. ㅡ Dave sorriu pra menina. ㅡ Tem alguém que quer falar com você, pode me seguir?

ㅡ Alguém? Quem é? ㅡ Apesar de saber que poderia se defender sozinha, Moon não se sentia segura perto do homem, aquele sorriso simpático parecia transmitir uma grande fúria. Talvez ele quisesse vingança por Rey. ㅡ Desculpa, mas estou ocupada.

ㅡ Por favor. ㅡ Dave segurou Moon pelo braço. ㅡ Ela deseja muito falar contigo.

ㅡ Ela? ㅡ A mente da garota estava a mil. Ela não sabia o que fazer, não sabia o que esperar. As memórias da arena, junto com a crescente culpa, estava corroendo a garota por dentro. A revelação sobre a personalidade psicopata de Jonathan só a abalou mais, e, por fim, os olhares dos cidadãos, que nos outros dois distritos foram de admiração, agora eram de raiva e tristeza.

Antes que percebesse, Moon estava na frente de uma luxuosa casa de madeira, com três andares e sacadas. A casa, toda envernizada e as janelas brancas, se destacava das outras. Na pequenina área da casa, uma senhora de cabelos longos e grisalhos estava sentada em sua cadeira de balanço, ao seu lado uma mesinha de centro sustentava duas xícaras, um bule e uma bandeja cheia de biscoitos, além de outras duas cadeiras.

A senhora olhou para Dave e Moon, se levantou de sua cadeira e acenou sorridente para eles, indicando que se aproximassem.

ㅡ Olá queridos, como estão? ㅡ A senhora apertou a mão de Dave e depois a de Moon. ㅡ Sentem-se, por favor.

Ainda com dúvidas, Saerom se sentou, encostando suas costas na almofada da cadeira. De repente, aquela casa pareceu acolhedora.

ㅡ Perdão ir direto ao ponto, mas queria falar comigo?

ㅡ Claro, querida. ㅡ A senhora serviu as duas xícaras com o café que estava no bule e as entregou para os dois a sua frente. ㅡ Me chamo Tânia, mas acho que você não me conhece, certo?! 

Moon acenou negativamente com a cabeça enquanto bebericava um pouco de seu café. O líquido quente e doce desceu por sua garganta, fazendo com que seu corpo se arrepiasse e ela se sentisse mais tranquila. Tânia se sentou em sua cadeira de balanço e olhou nos olhos da garota.

ㅡ Minha neta era um dos tributos do Massacre. ㅡ A notícia atingiu Saerom como um soco no estômago. Como pode ser tão burra?  Era óbvio que Tânia era a avó de Rey e estava querendo vingança, aquele café provavelmente estava envenenado.

Enquanto Dave se aproximou da mesinha de centro e pegou alguns biscoitos, Tânia riu olhando para Moon.

ㅡ Não fique tão preocupada, criança, não quero lhe fazer mal algum! Muito pelo contrário, quero te agradecer. ㅡ Tânia pegou um de seus biscoitos e o mastigou. ㅡ Minha neta era Catheryne, ela faleceu logo nos primeiros dia dos Jogos.

Apesar de serem poucas lembranças, Saerom se recordava da garota loira treinando nas salas de treinamento.

ㅡ Desculpa, senhora Tânia, mas eu ainda não estou entendendo o que está ocorrendo aqui.

ㅡ Como disse, quero te agradecer. ㅡ A senhora pegou a bandeja e ofereceu para Moon, que pegou um dos biscoitos ainda com relutância. ㅡ A morte não é algo que costumo desejar para as pessoas, mas, assim como grande parte do distrito, quero te agradecer por matar Rey.

ㅡ Como? Ela era um tributo do seu distrito, por que tá me agradecendo pelo assassinato dela? A palavra "assassinato" ecoou pela mente de Moon, parecendo pesada demais. Então, a garota se lembrou que aquele distrito não prestigiava os Jogos e não considerava a vitória algo maior que a vida. ㅡ Desculpa, fui idiota.

ㅡ Pobre criança, tão machucada. Quero te agradecer pois seu ato permitiu que Rey pudesse descansar, além que impediu que alguém com aquela mentalidade continuasse vivo. ㅡ Enquanto Tânia falava, Saerom, atenta a senhora, terminou sua xícara de café e comeu alguns biscoitos. O gosto de doce continuava em seu corpo, fazendo ela pensar em como Catheryne tinha uma vida tranquila ao lado daquela idosa.

ㅡ Não tem pelo que agradecer, pra começo de conversa a Rey nunca deveria estar lá! Nenhum de nós deveria. ㅡ Moon terminou de comer o último biscoito da bandeja.

ㅡ Apenas aceite nosso agradecimento, criança. E não se culpe tanto, apesar de não dizer, sinto que você carrega muito peso.

Tânia se aproximou de Moon e a abraçou. No início, a garota pensou em afastar a senhora, depois apenas retribuiu o abraço, enterrando seu rosto nos fios grisalhos. Então, como uma cachoeira, as lágrimas desceram. Sentindo-se segura naquele abraço, Moon desabou em lágrimas, numa tentativa de livrar sua alma de todas suas decisões, falhas e arrependimentos.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top