2. Desvio de qi (parte um)

Shen Qingquiu havia se encolhido num canto dos aposentos há dias, não falava nada, olhava desconfiado ao redor abraçando os joelhos e balançando-se para trás e para frente. O lorde do Qing Jing não permitiu que Mu Qingfang o examinasse, tentou arranhar o rosto dele e os exames só prosseguiram porque Yue Qingyuan conseguiu imobilizá-lo, o que se mostrou uma solução, mas também o causador de vários problemas. Yue Qingyuan não podia se afastar nem mesmo mais de três metros que Shen Qingquiu ficava agitado, enquanto o líder não podia se afastar, outros não podiam se aproximar. Olhou para o nobre imortal encolhido em posição fetal no canto do quarto, os cabelos escuros cortados tortos acima dos ombros como seda rasgada, as roupas sujas e as unhas com sangue coagulado embaixo pela força com que ele apertava os joelhos.

— Seus discípulos precisam de você. — Yue Qingyuan falou tentando puxá-lo para a realidade.

Como sempre, Shen Qingquiu não pareceu ouvir até que de seus lábios brancos saiu:

— Não quero saber deles.

Qingyuan ficou surpreso, foi a primeira frase coerente que Qingquiu falou em dias. Ele apertou o pincel do qual cuidava dos assuntos da seita, desde que Shen Qingquiu acordou ele trouxe todo o trabalho para a casa de bambu.

— Há obrigações que você deve cumprir com eles, Xiao Jiu. — Yue Qingyuan tentou manter a conversa fluindo.

— Eu não quero saber deles! — Shen Qingquiu escondeu a cabeça entre os joelhos e cobriu-a com as mãos trêmulas. — Estão melhor sem mim!

Yue Qingyuan se levantou da cadeira em que trabalhava e caminhou devagar com medo de assustá-lo para o canto em que Shen Qingquiu estava.

— Eles estão preocupados com você, shidi. Todo dia perguntam sobre você.

— Não me interessa! — Shen Qingquiu continuava tentando se esconder em si mesmo.

— Seus discípulos…

Shen Qingquiu levantou o rosto e encarou Yue Qingyuan com toda a determinação que tinha:

— Se você está tão preocupado com eles, pegue todos eles pra você! Estarão bem melhor sob seus cuidados! Não quero saber deles! Não quero ver eles!

Yue Qingyuan viu pelo brilho nos olhos de seu shidi que ele não falou isso com arrogância ou troça como de costume. Ele falava muito sério. As sobrancelhas de Yue Qingyuan se uniram em preocupação. Isso não era um desvio de qi.

— Se é o esse shidi deseja, meu pico pode cuidar dos seus discípulos até que esse shidi melhore. — Acenou educadamente. — Mas para essa transferência temporária eu preciso conversar com Shang Qinghua sobre a logística.

— Não me deixe! — Shen Qingquiu avançou para as pernas de Yue Qingyuan sem se levantar do chão. Agarrou-se a elas como ferro. — Não me deixe, Qi-ge! Você não pode me deixar!

O jovem líder sentiu seus olhos marejarem, agachou-se para abraçar melhor Xiao Jiu e disse:

— Eu nunca mais vou lhe deixar. Eu prometo.

***

Shen Qingquiu acordou no meio da noite no canto escuro em que se abrigava como se as paredes às suas costas fossem lhe dar a proteção que precisava. Sonhou com a cela úmida no palácio Huan Hua, ao abrir os olhos pensou que essa fosse sua residência e hiperventilou até sua visão se ajustar a escuridão percebendo as cadeiras e móveis de sândalo elegantes da casa de bambu. Pescrutou todo o cômodo sem o encontrar, chamou pelo seu nome e mesmo assim nada. Engatinhando foi para os outros cômodos e estavam vazios.

Não saia da casa.

A voz de antes avisou dentro de si. Que voz era essa? Ela realmente existia ou era só a materialização de sua consciência? E se fosse Luo Binghe? Shen Qingquiu sacudiu nervoso a cabeça, não, não poderia ser ele, a besta gostava de jogos mais sutis. Sabia porque passou anos sendo uma mera peça naquele tabuleiro de horrores que o demônio comandava.

Sim, eu não sou ele. Não saia da casa.

A voz lhe respondeu casualmente, nesse instante Shen Qingquiu desesperado correu para fora da residência empurrando e derrubando todos os objetos do caminho. Na própria loucura disparou para a parte de trás do pátio tentando escapar da voz dentro da mente e esbarrou com tanta força em alguém que esse caiu para trás derrubando a lamparina a óleo que segurava.

A luz laranja iluminou o rosto da pequena figura de branco assustada com os quartos traseiros no chão de madeira. Olhos como céus estrelados e uma aparência humilde, porém nenhum pouco simplória ou esquecível. Luo Binghe.

— Shizun…

A boca de Shen Qingquiu se abriu, mas não saiu nenhuma palavra, o mestre deu dois passos para trás.

Luo Binghe se levantou e se curvou de mãos juntas pedindo perdão:

— Este discípulo pede perdão por se meter no caminho de Shizun…

Shen Qingquiu sentiu a enorme dor de suas pernas sendo arrancadas, sem eles caiu como um saco de arroz no chão.

— Shizun?!

A queda do homem fez um baque contra a madeira, Luo Binghe ficou sem reação, Shen Qingquiu se virou e começou a se arrastar pelo piso com os braços, as pernas estavam totalmente imóveis.

— É a sua doença, Shizun?! Permita a este discípulo ajudá-lo. — Luo Binghe se aproximou e ao esticar a mão para ajudar o mestre esse começou a gritar sílabas incompreensíveis. — Shizun?! Shizun?!

— AAAHHHHH! AHHHHHH!!!

Luo Binghe ficou em choque, o homem que uma vez fora elegante agora debatia-se como um verme no chão enquanto berrava e fios de saliva saíam de sua boca. A doença era tão grave assim? Ou os boatos de insanidade eram verdadeiros? Seu Shizun usava somente os robes internos meio abertos revelando a pele, descalço com os pés sujos de tinta e o cabelo curto picotado.

— Shizun! Me deixe ajudar! — Luo Binghe ficou com o corpo tenso. Tentou se aproximar, mas os gritos do homem somente aumentaram assim como as sacudidas do corpo.

— O que houve?! — O líder da seita surgiu da saída com uma expressão perturbada.

Yue Qingyuan correu para a figura de Shen Qingquiu quase convulsionando. Assim que o viu, o lorde prendeu os dedos nos robes do outro tentando içar-se, Yue Qingyuan curvou-se e pegou-o nos braços carregando-o.

— Me tire daqui! Me tire daqui! Me tire daqui! — Shen Qingquiu soluçava com a cara enfiada no peito do líder.

— Calma, calma, shidi… passou. Passou. — Yue Qingyuan acalentava-o como faria com uma criança de colo. — O que houve? — perguntou para Luo Binghe.

— Este discípulo idiota tropeçou no Shizun sem querer! — Luo Binghe ajoelhou curvando-se de imediato. — Este discípulo queria saber o estado de shizun. Foi tudo minha culpa!

Yue Qingyuan fitou o homem em seu colo, uma casca do que era há poucos dias. Ele enfiava o rosto em suas roupas, sentia as lágrimas molharem as camadas de tecido até chegarem a pele e os soluços fazendo ecoar no seu coração.

— Não há como isso ser sua culpa. — respondeu. Olhou para Luo Binghe: — Não conte nada disso para ninguém.

— Sim, senhor! Este discípulo não abrirá a boca!

Yue Qingyuan acenou dispensando o garoto, era um bom rapaz e nada diria.

***

Oh, você acordou.

A voz falou assim que Shen Qingquiu abriu os olhos. Ele permaneceu parado tentando capitar de onde ela vinha: todos os lugares e lugar nenhum.

Não precisa se assustar comigo. Estou aqui para ajudar você! disse animada. Você dormiu a noite toda e a manhã toda, sabia?

— Luo Binghe mandou você para me aterrorizar nessa ilusão que ele criou? Onde está Yue Qingyuan?! O que você fez com ele, aberração?!

Aberração? Own! Eu já até ganhei um apelido! Como esperado do meu fav!

— Onde está Yue Qingyuan?! — Shen Qingquiu se levantou da cama. — O que fez com ele, Luo Binghe?!

Eu já disse que não sou Luo Binghe. O visual dele não faz meu estilo, prefiro cores claras e um ar elegante e distante.

— Pare com essas gracinhas! — Shen Qingquiu sentia os tremores vindo. Logo perderia o controle dos membros mais uma vez.

Ah, sim. Estou tão feliz de falar com você, fav, que eu até esqueci de responder! Hihihihihi! A voz limpou a garganta se contendo e disse: Ele foi resolver assuntos referentes ao problema dos desaparecimentos e assassinatos na cidade de Shuang Hu, lembra? Aquele lá que você resolveu e foi INCRÍVEL. Tenho várias fanarts sobre. Quer ver?

— Que língua é essa que você fala?! Quem é você?! — Shen Qingquiu estava transtornado procurando por um amuleto que escondia a pessoa que falava direto na sua cabeça, apesar de ainda acreditar que tudo aquilo se tratava de uma trama da pequena besta.

Eu sou quem mais gosta de você no mundo! Não! Em todos os mundos e todas as dimensões! É isso aí! Conte comigo para tudo!

O que está havendo? Shen Qingquiu perguntou para si mesmo ao sentir a mente ruindo em espiral. Tudo aquilo era um jogo imundo de Luo Binghe.

Não, não. A voz corrigiu com um tom infantil. Não se trata de um jogo imundo de Luo Binghe. Ele não tem nada a ver com isso. Eu salvei você, digo, fiz o que dava para fazer no momento. O enredo original não deixaria você livre antes de morrer.

O lorde apoiou-se numa das cadeiras de sândalo. A luz da tarde era filtrada pelas cortinas brancas deixando tudo mais vivo. Tudo era tão real, até os detalhes da madeira foram pensados aos mínimos detalhes nessa ilusão.

É porque tudo aqui é real. A voz respondeu novamente aos seus pensamentos. Você não está numa ilusão e nem preso nas masmorras de Luo Binghe.

— Eu tinha certeza que morri.

E tá certo!Empacotou total, bateu as botas, foi dessa para uma melhor, vestiu as calças de madeira, ela respondeu animada até demais, logo corrigiu a postura e continuou: Você realmente morreu naquele mundo após inúmeras torturas. Tudo aquilo aconteceu mesmo. Mas quando sua alma deixou o corpo eu a peguei e coloquei aqui.

Aqui aonde? Shen Qingquiu se perguntou transtornado. Onde era exatamente “aqui”?

— Eu voltei no tempo?

Ah, não. Não mesmo, ela debochou excluindo a opção. Tudo o que aconteceu, aconteceu. Nós estamos, tipo assim, em outra dimensão. Eu criei ela e trouxe você para cá.

— Dimensão? — A cabeça de Shen Qingquiu ardia.

É tipo um mundo paralelo ao seu. Vai ser muito difícil explicar isso agora… mas vou explicar mesmo assim porque é o que você vai exigir! Sabe como eu sei disso? É porque eu sou sua maior fã! Ela de repente tomou um tom muito sério e começou: Quando você toca a qin, as cordas soltam as notas vibrando, cada nota é um mundo original e cada vibração é uma cópia e consequência desse mundo. Só que no nosso caso as cordas continuam vibrando eternamente, são infinitos mundos e cada mundo varia um pouco do anterior. E essa qin é só um instrumento numa cacofonia de infinitos instrumentos. Quanto maior o eco, mais distante, quanto mais distante, mais diferente é o mundo. Mas as vezes pode não ser também. É complicado. Ela atestou.

Você é do “mundo original”, o que eu fiz foi pegar a sua vibração e colocá-la em uma nota antes que outras vibrações surgissem. Você não voltou no tempo, eu criei um novo tempo para você. Diz aí se eu não sou a melhor?

O homem abraçou a si mesmo na cadeira enquanto a boca emitia um “ooooooooo”.

Tudo bem você ficar assim. É difícil descobrir de repente que toda a sua existência é insignificante perante o universo e que sua vida, sonhos e vontades não importam de verdade porque você é só um grão de areia nesse enorme deserto sem início e fim que chamamos de eternidade. Você tá até reagindo bem, o pessoal de Harry Potter ficou super puto. Haha! Bruxos idiotas. A voz então tornou-se pacificadora. O melhor jeito de lidar com o assunto é não pensar muito sobre ele.

Shen Qingquiu depois de vários minutos catatônicos voltou a respirar de modo menos terrível:

— Se você tem poder de fazer isso tudo por que não estalou os dedos e matou Luo Binghe?!

Oh, excelente pergunta. Como você é esperto! Adoro você! Ela elogiou. Se eu matasse Luo Binghe as notas e acordes mudariam tão drasticamente que a música não seria a mesma. As consequências seriam horríveis.

— Então como eu mato Luo Binghe? — Shen Qingquiu estava transtornado.

Bebê, você não pode matar Luo Binghe. Nem conseguiria. É uma das regras do mundo original e como somos uma “cópia” do mundo original as regras matriz se aplicam aqui também, disse num tom condescendente.

— Então ele é mesmo um enviado e querido dos céus? — Shen Qingquiu queria vomitar.

É isso aí, A-quiu. Ele transborda protagonismo.

— Nada do que você fala faz sentido, aberração!

Estou amando esse apelido.

— Tudo isso é loucura! Eu enlouqueci! Aquele sangue mestiço me enlouqueceu!

O universo é uma loucura, baby. Ela concordou. Eu adoro.

— Você quer mesmo que eu acredite nessa bobagem?! — Shen Qingquiu sentia o rosto ficar vermelho e branco pelo estresse.

Acreditar ou não? Tanto faz. Eu estarei aqui de qualquer jeito por isso pra sua saúde mental seria melhor que acreditasse ou pode fingir que eu sou só uma voz na sua cabeça. Ha! Isso é engraçado porque de qualquer uma das opções eu sou uma voz na sua cabeça!

Shen Qingquiu podia imaginar a criatura limpando as lágrimas de tanto rir.

Agora é sério. Ela se recompôs. Eu preciso explicar como…

— Se você não é Luo Binghe, o que você é então? E o que você quer? — Shen Qingquiu interrompeu frustrado.

Wow! Eu achei que fosse demorar para aceitar, mas pelo visto estamos seguindo bem! A voz dela obteve um ar de seriedade e mistério ao dizer: Eu tenho gostos peculiares. Você não entenderia.

Foi óbvio que ela atuou quando não conseguiu segurar a risada depois da frase.

Desculpe! Desculpe! Mas é sério, você não entenderia.

— Nós dois já estamos mergulhados nessa situação, me toma incapaz de entender? — Indignado.

Oh, não. Ela desculpou-se imediatamente. Não é que eu acho você incapaz. É que você literalmente não entenderia. Sua mente não processaria.

— Tente. — Shen Jiu desafiou.

Okay. Lá vai, eu sou…

Uma música num instrumento que Shen Qingquiu não conhecia começou a tocar em seus ouvidos quase estourando-os. Taaan ran ran ran raaann ran ran tannnranranrannnn tanranrannn.

— O que é isso?! O que você fez? — Shen Qingquiu tapou as orelhas.

Isso é um saxofone. É o que sua mente decodifica quando eu falo o que eu sou.

— Você está fazendo de propósito! — Shen Jiu quis apontar sem saber para onde. — Tente de novo dessa vez!

Se é o que esse mestre quer… tudo bem.

Shen Qingquiu respirou fundo se preparando dessa vez, usou do seu cultivo para aguçar a mente e a audição.

Lá vai. Eu sou…

A música voltou a tocar, mas dessa vez numa flauta. TAAAN RAN RAN RAN RAAANN RAN RAN TANNRANRANRANNNN TANRANRANNN.

— O quê?! — Shen Qingquiu quase enlouqueceu. — Você fez de novo!

Seu cultivo só piorou as coisas. Eu falei exatamente o que eu sou, sua cabeça não compreendeu e toda vez que eu falar você ouvirá a mesma música num instrumento diferente, bebê. Mas eu gostei da flauta, foi bem de acordo com o ambiente.

O homem tinha uma agulha em chamas cutucando seus miolos.

Sinto que você precisa de um tempinho. Sugeriu. Vou dar uma olhada naqueles manés de Harry Potter enquanto isso. Não hesite em me chamar, bebê.

Em menos de um segundo a voz desapareceu, Shen Qingquiu deslizou da cadeira para o chão e voltou a se abraçar em posição fetal. Estava louco.

O que acharam do capítulo?
Bjinhus!

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