Memories

"Memórias, não são só memórias

São fantasmas que me sopram aos ouvidos

Coisas que eu nem quero saber"

Pitty.

Onze de outubro de 1888, quinta–feira. (madrugada). "...?" Inglaterra.

XXX

Meu peito está apertado. É hoje! Hoje eu vou sair daqui, mas não é por um bom motivo...

Meu pai morreu. Foi assassinado, assim como ele fez com minha mãe, maldito! Como pode morrer e me deixar aqui? Nem ao menos sei sair desse local, nesse velho instituto de tortura que usam como fachada uma escola. Encaro o quarto pálido e quase vazio, duas camas, dois criados mudos, dois abajures. Mas não há sentido para haver dois de cada aqui. Isso é torturante...

Mas agradeço por poder sair daqui antes de ter o mesmo fim do outro garoto que dividia quarto comigo. Agradeço imensamente...

XXX

Acordo suando frio. Encaro o quarto ao meu redor, duas camas, dois criados mudos, dois abajures, e uma Lilith. Esses pesadelos, dois dias seguidos... Ah não. Não são pesadelos. São lembranças. Olho o relógio na parede, são três da madrugada, definitivamente não posso acordar Jared. E também não pretendo voltar a dormir. Levanto-me e me enrolo no cobertor fino, preciso andar, para afastar o sono.

Saio sorrateiramente sem bater a porta, vou para a sala de estar, lá é bom para pensar. Caminho em direção a escada e paro a encarando pasmado.

A escada está subindo ao invés de descer. Mas não quero ir para cima, não sei o que há lá. Bem... Aqui embaixo existe o corredor misterioso que dá na sala da Raposa e possui as gárgulas, mas o que tem para cima? Lilith nunca me disse nada, acho que porque ela nunca subiu verdadeiramente uma escada misteriosa que dá em algum lugar acima do nosso corredor. Piso hesitante no primeiro degrau. Ele range, bem, não quero voltar a dormir, então vamos lá.

XXX

A cada passo a escada parece diminuir e parecer mais frágil. Como uma escada de emergência, ou outra que não seja uma escadaria de uma mansão. E o ar fica mais frio, quando penso que isso não tem fim, bato a cabeça em algum teto. Um sótão?

Olho para baixo e não vejo nada, droga. Por que está tão escuro? Deslizo minha mão pelo teto até achar uma corrente, empurro o alçapão e sou recebido por uma cortina de poeira. Subo até o último degrau e encaro o sótão.

Caixas espalhadas e cheias de pó. Panos brancos cobrindo coisas, coisas muito estranhas. Piso no chão do sótão e encaro a luz da lua que invade o local por uma pequena janela circular. Quero olhar pela janela. Caminho me certificando de que o alçapão não se fechará. E encosto meu rosto contra o vidro, arquejando. A lua está tão próxima. Nunca a vi assim, a paisagem quase não se vê abaixo, apenas a lua, estamos tão alto. Que lindo...

- Lindo não?

Meu coração falha. Engulo em seco.

- Quem está aí...? – Sussurro, sem me virar.

- Ninguém. Pode continuar a apreciar a vista.

Não escuto passos ou respiração, viro-me lentamente e encaro o sótão, as mesmas caixas os mesmos lençóis. Estou sozinho... Caminho de volta receoso, mas não vejo ninguém. Apoio-me na escada e continuo a encarar o sótão. Bem, não custa nada tentar...

- Adeus. – Digo e espero. Nada...

Mas quando fecho a porta, penso ter escutado a resposta, ou será que estou sonhando? Deve ser só sono mesmo. Desço as escadas lentamente e chego ao patamar de meu corredor, fecho os olhos com força e quando os reabro a escada está seguindo para baixo. Desço-a novamente e chego à sala de estar quando o relógio bate quatro horas. Meu Deus... O que faço para esse pesadelo acabar?

XXX

- FANTASMA!!! – Jared guincha. – A Charlotte sempre disse que em sótãos existem fantasmas!

- Psiu! Fale baixo. – Sussurro.

- Deve ser a gárgula feia, ela tem cara de quem faz isso. – Lilith sussurra.

- Mas eu não vi nenhuma gárgula lá!

- Ela podia estar escondida.

- Gárgulas não ficam em telhados?

Suspiro ressentido, nunca devia ter lhes contado sobre a voz e o sótão. Agora estamos discutindo feito um bando de idiotas desde manhã. Mas aquilo realmente me pegou desprevenido... Arrepio-me quando uma mão fina desliza por meu ombro.

- Porr que vocês não chamam Barbiê parra brincarr? Ela está tan sozinha... – Chevonne encara o outro lado da sala.

Barbie está sentada brincando com a boneca, sozinha... Suspiro. Lilith me encara alarmada, sei que elas não se gostam. Mas é engraçado vê-las disputarem minha atenção.

- Barbary, a senhorita gostaria de se juntar a nós?

- CAIN?! – Lilith guincha.

- Esto tan orrgulhosa. – Chevonne diz se afastando.

Barbie sorri e corre até onde estamos se sentando muito próxima de mim para meu gosto. Ela sorri para Jared que retribui enquanto Lilith o encara como se estivesse fazendo algo hediondo.

- Sobre o que vocês estão falando?! – Ela indaga.

- Sobre sótão mal assombrados. – Lilith diz sorrindo. – Algo que não a agrada correto?

- Claro que não! Eu adoro histórias de terror!

Oh não... Isso vai ser difícil de explicar. Mas é melhor ter mais peões para esse jogo.

XXX

O plano é feito, graças a nossa imensa falta do que fazer e a Nonsense que não nos permite sair daqui. Iremos ao sótão em duplas, primeiro Lilith e Jared, depois eu e Barbie, para ver quem consegue chegar lá. Porque esse é o nosso maior problema, já que a casa só funciona quando quer. Paramos em frente à primeira escadaria e Lilith já está a subindo com Jared em seu encalço. Queria ir com um dos dois, mas concluí que é mais seguro para todos que Barbie vá comigo. Eles sobem e após cinco minutos não retornam.

- Nossa vez. – Digo baixo.

Ela consente e subimos as escadas, chegamos ao segundo corredor, o do meu quarto, mas a escada não continua. Termina aqui.

- Eles conseguiram... – Digo irritado. – Nós não.

- Tudo bem, vamos esperar aqui, quando eles descerem veremos!

Resmungo irritado e me sento no chão encarando a parede. Seria tão bom conseguir andar normalmente por essa casa.

- Então Cain... Sei tão pouco sobre o senhor. – Não quero falar de minha vida. – Onde o senhor passou sua infância?

- Em um internato.

- Ah... – O tom de sua voz é estranho. – Eu morava em um hospital estranho, tudo era tão branco lá, chegava a me ofuscar. Eu não entendia porque estava lá, também porque sempre estava com sono... – Louca como é, deveria ser um hospício. – O que o senhor aprendia no internato? Era um lugar comum?

- Lições normais, mas também bons modos, francês, a tocar violino... – E a ser torturado. – Era um local divertido.

- Eu sei tocar piano! – Ela ri. – Um dia podemos tocar juntos, e Jared cantar. E... O senhor tinha amigos lá?

Amigos...? Não... Não quero me lembrar. Fecho as mãos em punho arranhando o chão.

- Então...? – Barbie me encara sorrindo. – Amigos?!

- Não.

- Não? – Ela se aproxima arregalando seus olhos claros.

- Não... Tinha um colega de quarto. François, eu acho. – Não consigo mais pronunciar seu primeiro nome. – Ele era de origem francesa, estava estudando lá também. Era um garoto... Notável.

- "Notável" não é elogio... – Ela sussurra.

- Ele era loiro. Alto, com olhos cinzentos. Era educado e bondoso, tocava piano como ninguém, era um garoto notável.

Ela ri, tento afastar minhas memórias sobre ele, quando vozes no andar de baixo me assustam.

- CAIN!!! Estamos aqui!!!

- Lilith...? Mas se eles não desceram então?

Ignoro-a e desço as escadas correndo, chego lá em baixo arfando e encontro Lilith e Jared sorrindo.

- Como foi?! – Disparo. – O que havia lá?!

- O que...?! Não nós.

- Ensinei as gárgulas a cantarem! – Jared dá a notícia, empolgado.

- Gárgulas? Mas...

- Não conseguimos chegar lá. Ficamos no corredor sombrio. – Lilith encolhe seus ombros. – Eu ia voltar, mas Jared queria ver as gárgulas.

- Ah... – Não consigo conter meu desânimo.

Barbie chega finalmente arfando e vermelha. Encaro-os sem nenhuma expressão. Bem... Tudo o que consegui foi lembrar coisas que queria nunca mais lembrar.

XXX

Que droga... Nada, de nada. Não acontece nada nessa droga de casa. Apoio meu rosto ao lado das teclas do piano e deslizo meus dedos pelas teclas brancas, estou tão cansado...

"Um dia tocarei piano para você."

Não! Ergo meu rosto e bato minhas mãos nas teclas emitindo um som agudo. Não... Maldito, eu disse que ia me esquecer! Eu disse... Mas hoje a vadia da Barbary me fez lembrar-se de você. Por quê? Aquele idiota! Eu o odiava!

Nunca mais fui o mesmo desde que me instalei naquele local. Perdi toda minha pureza de criança e me tornei esse monstro que sou hoje, não que eu me arrependa, mas mesmo assim, queria ser normal, às vezes. Mas você foi o principal culpado por isso. Suspiro, não quero chorar sobre o passado, já passou, é isso que importa, preciso focar no meu futuro glorioso, e devo aproveitar o tempo livre que tenho. Não para ficar aqui deitado sob as teclas do piano, e sim pensar em algo, devo criar um plano, afinal, o que farei ao me encontrar com Abel? Nem ao menos pensei nisso, e a Raposa, como vou tomar seu lugar? Preciso logo pensar nisso, e quem sabe...

Encontrar a pedra que me tornará o dragão que fui em outra vida. Será que terei poderes? Pelo que vi de Abel ele parece tão normal quanto uma aberração pode ser, mas também, creio eu que "A espada Vorpal" não traga mudanças físicas em uma pessoa. E comigo? Será que terei asas? Chifres, ou soprarei fogo? Hu...

Estou fantasiando como um tolo ao invés de me preocupar com o que é importante, mas isso é confortável, ficar aqui, perto da lareira sob o piano, ontem, essa hora, estava valsando aqui, ouvindo Scorpio tocar e Jared cantar. Hoje tudo está tão calmo que o sono logo vem tentar me buscar, mas não quero dormir! Sento-me e deixo umas notas desajeitadas escaparem do piano, não sou nenhum Jared... Mas vou afastar o sono.

- Tom era filho de um flautista... Ele aprendeu a tocar quando jovem... E toda a música que ele poderia tocar... Era "sobre as colinas e longe"...

- Tom tirou sua flauta e tocou lindamente... Que agradou a meninos e meninas... Que pararam para ouvi-lo tocar: "Sobre as colinas e ao longe".

Meu sangue gela, viro-me e encontro intensos olhos azuis, os cabelos puxados em dois rabos e o vestido negro familiar, permito-me deixar um sorriso rasgar minha face.

- Ora Lilith, não é bonito interromper os outros.

Viro-me fechando a tampa do piano. Ela caminha e se senta ao meu lado abrindo a tampa e tocando as mesmas notas que toquei, só que de uma maneira mais "refinada", não sabia que ela tocava tão bem...

- Christopher era filho de um violinista... – O que? – Ele aprendeu a tocar quando jovem... E toda música que ele poderia tocar... Era... Cain, você vem pro além comigo?

Ela se vira agarrando meu pescoço, seus olhos azuis agora estão cinzentos e turbulentos. Cinzentos como...

- Christopher...? – Sussurro. E suas mãos apertam meu pescoço.

- Você vem pro além comigo?

XXX

Berro me debatendo, não quero morrer! Não posso morrer agora, não...

- Cain pare!!!

Escuto sons agudos e graves enquanto rolo para o chão, alguém me puxa, mas tudo que faço é bater a cabeça contra o piano, a dor me cega momentaneamente e quando consigo sair daquele mar de confusão, abro os olhos e encaro Jared assustado, seu lábio inferior está rasgado, f–fui eu que fiz isso...? Olho para o piano e vejo gotículas de sangue sobre as teclas brancas, eu dormi...? Como? Eu nem ao menos... Eu nem... Encaro Jared novamente e ele sorri. O quê?

- Você estava dormindo, acho que teve um pesadelo.

- Seu lábio... – Sussurro.

- Estamos quites. – Ele se senta. – Bati sua cabeça no piano, mas foi sem querer também.

- Mande o Scorpio costurar isso.

- Depois, uau! Eu nunca toquei em um piano.

Estava dormindo? Foi um sonho... Sonhei com Christopher, mas nem ao menos lembro-me de como dormi, estava divagando e... E Christopher estava me atacando, meu Deus. Isso não é normal, não mesmo. E ainda mais, Lilith apareceu nesse sonho maluco, agora entendo quando ela diz que tem pesadelos bizarros. Os sons desajeitados do piano me chamam a atenção por um segundo, encaro Jared enquanto ele desliza seus dedos pelas teclas e logo uma melodia se forma, bem, ou eu penso ouvi-la, e ela me causa arrepios. Jared passa a tocar mais rápido, vejo seus dedos respingarem o sangue que escorre de seu lábio enquanto ele sorri... E... E...

- PARE! – Bato nas teclas e ele recua assustado. – Está me assustando!

- O que...? Mas Cain eu só...

- Olhe isso!!! – Aponto as teclas manchadas e noto meus dedos sujos. – Você vai limpá-las, agora!

- Tudo bem... – Ele me olha ressentido, viro-me e saio.

O que foi isso? Esse dia está piorando cada vez mais. Caminho até chegar ao toalete. E me tranco nele, vou até a pia e encaro meu reflexo. Olheiras, a pele excessivamente branca, minhas íris roxas... Tenho a aparência de um cadáver. Afasto uma mecha de minha testa e um rastro de sangue se forma. Jared...

O que ele estava fazendo? Tocando daquele jeito, sorrindo e o sangue escorrendo... Sangue...

Deslizo meus dedos por minha língua sentindo o gosto ferroso, esse é o gosto do sangue que circula por seu corpo, que o deixa vivo...? Abro a torneira e mergulho afastando esses pensamentos, mas deixo o gosto pairando em minha língua.

Saio e ele está na porta. O lábio inchado e levemente roxo.

- Desculpe.

- Tudo bem. Mas não suje mais o piano.

- Desculpe por tê-lo assustado, mestre.

Ele olha o chão corando, por que isso? Eu só... Só me desesperei e gritei com ele, descontando a raiva e o medo do passado em um inocente, acho que nem havia melodia alguma, devo estar ficando mais louco...

- Jared... Sou eu que me desculpo.

- O que? Lorde Cain se desculpando? Repete?

- Calado, ou lhe rasgo a face. E falando nisso, vá se tratar!

Ele consente e sai correndo, me apoio na parede e deslizo até tocar o chão. Não quero mais me lembrar do Christopher, não quero...

Desde que saí de lá tinha me esquecido completamente dele, e agora, o sonho, Barbie, tudo parece uma coincidência macabra. Mas acima de tudo, Jared...

Jared canta como um anjo. Christopher tocava como um anjo. Ele aprendeu a tocar quando jovem.

A cantiga, eu me lembrei dela também, maldito, maldito pesadelo. Maudit... Rêve... Merveilles... Maurêveilles. Maldito sonho maravilhoso, hu, isso é uma maldição. Algo irreversível que me perseguirá até minha morte prematura e brutal... Por quê? Alguém me diz por quê?

Abraço meus joelhos e suspiro. Ontem foi tão divertido. Fechos os olhos e sinto vertigem. Acordo sobressaltado. Como dormi? Definitivamente estou piorando. Escuto passos apressados pela escada, e nem tenho tempo de me levantar, ou mesmo me arrumar e logo a pessoa passa apressada tropeça em minhas pernas e se estatela no chão, pelas vestes negras só pode ser ela...

- Lilith o que houve...? – Indago puxando minhas pernas que estão sendo pressionadas por seu corpo.

Ela se senta e noto os olhos azuis marejados, bem ao menos são azuis...

- Rebecka... – Ela sussurra.

- O que tem ela?

- Ela... Cain... – Seus olhos encontram os meus e ela começa a chorar. – A Rebecka foi assassinada pela Wonderland...

- O quê...?

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Olá pessoas mais um capítulo postado, como já devem ter percebido, os personagens de TR gostam de cantar, rs, dessa vez resolvi inserir a cantiga que  Cain e "Lilith" cantam, é uma bela cantiga. Bem é isso, obrigada, viu? beijos >3<


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