𝐎𝐍𝐋𝐘 𝐂𝐇𝐀𝐏𝐓𝐄𝐑.
this is the last time I say:
It's been you all along
O PAI DELA costumava dizer que não se deve alimentar cães vadios, pois eles sempre voltam para mais. Angela não costumava entender o que ele queria dizer até conhecer Jason Todd.
Ela se lembrava claramente daquela noite de Agosto, do vento cortante que soprava pelas ruas desertas de Gotham, fazendo as folhas secas dançarem no asfalto, e o som sutil de algo revirando o lixo do lado de fora de sua casa. Angie pensou ser um guaxinim, uma criatura que frequentemente procurava restos pela vizinhança. Mas, quando abriu a porta, o que encontrou foi um garoto de olhos grandes e assustados.
Jason Todd, um menino magricela, com os cabelos ruivos despenteados, a encarava como se estivesse pronto para fugir a qualquer momento, com seu instinto gritando para se afastar antes que fosse tarde demais. Ele vestia roupas largas demais, velhas e manchadas, que pareciam ter pertencido a alguém muito maior e mais velho. Naquele instante, algo em Angie se compadeceu dele. Talvez fosse por conta do brilho vulnerável em seus olhos, ou pelo fato de que ele parecia tão perdido quanto ela se sentia. Eles tinham a mesma idade, mas as realidades que habitavam não podiam ser mais opostas.
Enquanto Angie crescia em uma casa confortável, cercada de tudo o que uma criança poderia desejar, Jason vivia nas sombras, em um mundo onde a sobrevivência era uma luta diária. E, por isso, ao invés de gritar com ele e mandá-lo embora, como a maioria teria feito, Angie simplesmente voltou para dentro, pegou uma caixa de biscoitos e estendeu na direção dele. Jason a pegou com as mãos trêmulas, sem dizer uma palavra, e correu para a escuridão, desaparecendo na noite sem olhar para trás.
Angie Cartier pensou que nunca mais o veria, que ele seria apenas uma lembrança passageira, um pequeno ato de bondade em uma cidade cheia de violência. Mas estava enganada. Aquela não foi a última vez.
Jason voltou para mais. Ele se tornou uma presença constante em sua vida, e de estranhos, eles se tornaram amigos. Ela o conheceu melhor, percebeu que ele estava sempre disposto a se meter em encrenca ── como por exemplo tentar roubar os pneus do batmóvel ──, mas também tinha um bom coração.
Desde então, Angie não conseguia se lembrar de uma época em sua vida em que Jason Todd não estivesse presente. Mesmo depois que Jason morreu nas mãos do Coringa naquela noite fatídica, a presença dele ainda pairava sobre sua vida. Jason estava lá nos livros que ela lia, que a faziam lembrar dele, toda vez que ia para o quarto em sua casa de infância e esperava escutar as pedrinhas batendo contra sua janela, ou quando segurava o globo de neve com a cidade de Gotham dentro, o presente que Jason lhe dera na última vez que se viram.
Ou, assim como anos atrás, Angie pensou que aquela seria a última vez, mas não foi.
★ ★ ★
A primeira vez que Angie Cartier viu Jason Todd depois que ele voltou à vida, ela não sabia que era ele. Angie estava voltando para seu apartamento sozinha, depois de jantar com sua família e amigos em seu restaurante italiano favorito.
Aquele seria seu último jantar com eles, pois em breve ela estaria deixando Gotham para sempre, como sempre havia desejado. Angie havia conseguido um emprego no StarLabs de Central City como assistente de pesquisa e passou toda a semana empacotando suas coisas com a ajuda de sua irmã mais velha, Leah, e de seu cunhado, Jonathan. Ela finalmente tinha tudo pronto para partir quando as dúvidas e as inseguranças começaram a se infiltrar em sua mente.
Ver seus entes queridos reunidos naquele restaurante a fez pensar em tudo que estaria deixando para trás, criando um ciclo de ansiedade sem fim que a fez questionar se estava mesmo pronta para recomeçar sozinha em outra cidade.
Seu apartamento não era longe do restaurante e ela sentia que precisava de um tempo para pensar com clareza, por isso escolheu caminhar para casa, o que foi seu primeiro erro. Sua cabeça estava tão cheia, pensando em tudo que estava acontecendo nos últimos dias, que ela não percebeu quando um homem se aproximou. A realidade a atingiu com força quando sentiu os braços grossos rodeando seu corpo e a lâmina fria pressionada contra seu pescoço. O pânico se alastrou por seu corpo, mas Angie não conseguiu gritar.
Ela se viu sendo arrastada para um beco escuro, a cada passo aumentando o terror que se alojava em seu peito. O agressor a mantinha firme em seus braços, o cheiro forte de bebida e o hálito ácido que emanava dele a deixavam nauseada. Ele murmurava palavras sujas e carregadas de malícia, enquanto a proximidade invasiva fazia o nojo e a repulsa se intensificarem dentro dela.
Cada tentativa de se soltar era recebida com um aperto mais firme, a lâmina pressionava ainda mais sua pele e fazendo com que um filete de sangue escorresse. Angie implorou para que ele a soltasse, porém o homem não o fez e seu aperto de ferro a machucava ao ponto de fazê-la gemer de dor.
Quando Angie pensou que não havia mais saída, que o pior iria acontecer, ele surgiu.
O homem soltou um grito de dor, suas mãos se afastando de Angie quando fora arrastado para longe dele, fazendo-a cambalear para frente. Escorando-se na parede, tudo o que Angie podia escutar era o som de ossos sendo quebrados, os murmúrios incoerentes do agressor começando a cessar conforme alguém o agrediu várias vezes.
Angie ousou olhar para trás, seu corpo ainda petrificado, tremendo descontroladamente, enquanto seus batimentos cardíacos reverberavam em seus ouvidos como um tambor incessante. No beco escuro, Angie se sentia paralisada, incapaz de reagir, enquanto um desconhecido que ela não reconhecia espancava o homem que a atacara até a morte. Cada golpe ecoava pelo beco, o som surdo dos ossos se quebrando misturado com o som da chuva começando a cair. O sangue se espalhou pelo chão úmido, manchando o concreto de um vermelho profundo que contrastava com a escuridão ao redor, e o cheiro metálico do sangue misturava-se com o aroma da terra molhada, criando uma atmosfera sufocante e pesada.
No chão, o agressor jazia imóvel, seu corpo sem vida entregue à brutalidade do ato. Não havia mais o movimento de seu peito, nenhum sinal de respiração, apenas uma quietude mortal. O outro homem, satisfeito com o que havia feito, finalmente parou e se ergueu, revelando sua estatura imponente. A pouca luz que havia no beco não permitia que Angie visse seu rosto com clareza, mas ela percebeu que ele usava uma máscara, uma jaqueta de couro marrom e luvas acinzentadas que complementavam sua roupa escura.
De costas para ela, o homem virou a cabeça ligeiramente, olhando por cima do ombro. Angie sentiu o peso daquele olhar invisível, a percepção de que aqueles olhos estavam fixados unicamente nela, enviando um calafrio pelo seu corpo. O pânico a dominou, e, instintivamente, sua mão foi até a bolsa, vasculhando freneticamente em busca de algo com o qual pudesse se defender. A cada segundo que passava, ela esperava ser a próxima vítima, seu destino selado pelo mesmo fim brutal que o homem no chão.
Mas, para sua surpresa, o estranho apenas se virou em direção à saída do beco, ignorando sua presença por completo e caminhou. Angie parou seus movimentos, confusa.
── Q-quem é você? ── As palavras saíram de sua boca em um gaguejo, quase inaudíveis, carregadas de medo e incerteza. Ela esperava, talvez, por alguma resposta que a ajudasse a compreender o que acabara de acontecer, mas o silêncio foi sua única resposta. O homem não disse uma palavra, apenas desapareceu na escuridão da noite, deixando Angie sozinha com os restos de seu pavor e uma cena que ela jamais esqueceria.
Na manhã seguinte, encontrou a resposta que procurava nas manchetes da Gazeta de Gotham. O artigo descrevia o surgimento de um novo e perigoso vigilante, intitulado que entrou em confronto com o Batman na noite passada.
Eles o chamavam de Capuz Vermelho.
Na segunda vez que Angie encontrou Jason Todd, haviam se passado apenas dois dias desde o incidente no beco. Ela não contou a ninguém o que aconteceu, nem mesmo para Leah. Angie preferiu manter o ocorrido em segredo, sabendo que sua irmã ficaria excessivamente preocupada, algo que ela definitivamente não queria naquele momento. Então, o máximo que Angie fez foi manter um olho atento nas manchetes dos jornais.
O Capuz Vermelho continuava a ser um problema crescente para o Batman, colocando vidas em risco com sua abordagem implacável e mortal. O Cavaleiro das Trevas tentava desesperadamente contê-lo, mas o Capuz se mostrava quase impossível de deter. Angie, por sua vez, sentia-se compelida a comprar cada jornal, a devorar cada notícia sobre o vigilante mascarado, tentando entender a familiaridade inquietante que aquele encontro havia trazido. Ignorar o que aconteceu tornou-se uma tarefa impossível.
Naquele dia específico, Angie estava voltando para casa ao entardecer. Era uma segunda-feira, e ela havia passado parte do dia entregando uma caixa de doações ao Gotham Mercy, desfazendo-se de roupas e objetos que não queria mais, itens que agora poderiam ser úteis para outras pessoas.
O dia tinha sido tranquilo até então. Enquanto subia os degraus da escada para seu apartamento, Angie estava distraída, mexendo no celular, procurando algum restaurante local para pedir algo que combinasse com sua noite solitária de segunda-feira. Ela planejava assistir reprises de Criminal Minds na TV, uma tentativa de não pensar no fato de que sua mudança para Central City se aproximava cada vez mais.
Ao chegar no corredor, ela avistou seu vizinho, Thomas, um senhor de idade que estava parado no meio da passagem, segurando uma vassoura. Ele olhava fixamente em direção ao apartamento de Angie, e quando a viu, pareceu surpreso, mas logo sorriu.
── Boa noite, Angie ── cumprimentou ele, com a voz cordial de sempre. Angie retribuiu o sorriso, ainda que um pouco desconcertada. ── Pensei que você já estivesse em casa. Escutei um barulho alto vindo do seu apartamento. Fiquei preocupado, achei que você tivesse se machucado com a mudança.
Angie franziu o cenho, surpresa.
── Barulho alto? ── perguntou ela, enquanto puxava as chaves da bolsa. Thomas assentiu, ainda com a expressão pensativa.
── Sim, uns três minutos atrás, eu acho ── respondeu ele, tentando lembrar.
Agradecendo pela informação, Angie se dirigiu à porta do apartamento, o receio crescendo dentro dela. Ela retirou o celular da bolsa e, com dedos trêmulos, discou o número da polícia, deixando a chamada pronta para ser feita. Poderia ser apenas um engano, talvez alguma caixa mal empilhada por Leah tivesse caído, mas Angie não queria arriscar.
Com cautela, ela destrancou a porta e empurrou-a lentamente, o apartamento mergulhado na escuridão. A primeira coisa que notou foi o cheiro - ferroso, penetrante, o inconfundível odor de sangue. O ar estava carregado, como se cada partícula estivesse impregnada daquele aroma metálico. Angie parou por um instante, o celular ainda na mão, hesitando entre avançar ou recuar.
Ela deu um passo à frente, os olhos varrendo o pequeno espaço do hall de entrada. Nada parecia fora do lugar à primeira vista, mas o silêncio que enchia o apartamento era quase desconcertante. Angie respirou fundo, notando as caixas na sala, apenas ainda com sua TV, seu sofá e sua mesa de centro. Olhando para a cozinha em seguida, o lugar estava vazio, sem nenhum utensílio na bancada ou na pia. Nada fora do lugar.
Então, um som fraco chamou sua atenção - um gemido baixo, quase inaudível, vindo do banheiro. O coração de Angie acelerou, batendo freneticamente contra as costelas. Ela hesitou por um momento, a lógica dizendo para sair correndo, mas algo mais profundo a empurrava adiante, uma sensação que ela não conseguia ignorar.
Com passos lentos e calculados, Angie se aproximou da porta entreaberta do banheiro. A mão que segurava o celular tremia visivelmente enquanto ela empurrava a porta com a ponta dos dedos, esperando encontrar o pior.
E a cena que encontrou a paralisou.
O Capuz Vermelho estava sentado no chão do banheiro, encostado na banheira, seu corpo ensanguentado e coberto de ferimentos. Sua jaqueta estava encharcada de sangue, o tecido marrom agora quase negro nas áreas mais atingidas. A respiração dele era irregular, cada inspiração um esforço doloroso. As luvas acinzentadas estavam manchadas, e ao seu lado havia uma faca, ainda suja de sangue que era mantida cravada em seu corpo para impedir o fluxo constante.
Por um instante, Angie não conseguiu se mover, não conseguiu pensar. A imagem à sua frente era ao mesmo tempo surreal e aterrorizante. Ela não conhecia aquele homem, ele era um estranho. Mas ele estava ali, no chão do seu banheiro, morrendo aos poucos.
Angie se aproximou cautelosamente, tentando não fazer muito barulho. Ela se agachou ao lado dele, colocou o celular sobre a tampa do vaso enquanto seus olhos passavam sobre o corpo do estranho, ainda sem saber o que fazer. Sua atenção se voltou para a máscara vermelha que ele usava. Ilustrada o suficiente para que Angie pudesse ver seu reflexo borrado, porém cheia de arranhões e rachaduras.
Vagarosamente, ela ergueu a mão, aproximando-se da máscara. Quando Angie estava na metade do caminho, a mão dele se ergueu e segurou o pulso dela, assustando-a.
Dessa vez, quando encarou a máscara, tinha certeza que ele estava encarando-a de volta, travando seu olhar com o dela. Angie mal conseguia respirar naquele momento, apenas pensando no que fazer caso ele decidisse atacá-la. Entretanto, ela não precisou agir. O aperto em seu pulso começou a afrouxar e a mão dele escorregou, soltando-a. A respiração dele estava mais lenta, Angie pensou que ele havia desmaiado, porém o Capuz Vermelho demonstrou ainda estar acordado quando ergueu as duas mãos até o rosto e retirou a máscara sozinho.
Lentamente, o rosto dele se revelou para ela. O metal escorregou de seus dedos manchados de sangue e caiu no chão com um som surdo, ecoando pelo pequeno banheiro e ele olhou diretamente para ela.
Jason olhou diretamente para ela.
Por um momento, Angie ficou imóvel, paralisada pela visão diante dela. O homem que agora a encarava tinha os olhos opacos de dor e cansaço, cabelo preto escuro e seu rosto estava coberto de cortes e hematomas. Uma cicatriz em formato de J em sua bochecha direita. O cabelo, emaranhado e sujo, caía sobre a testa. Ele parecia um fantasma do passado, uma sombra do menino que ela conhecera anos atrás.
Mas então, reconheceu. O choque atingiu-a como um golpe. Angie piscou, tentando processar a realidade que se desenrolava diante de seus olhos que se enchiam de lágrimas não derramadas. Aqueles olhos - tão familiares, apesar de tudo - pertenciam a Jason Todd, o garoto que ela pensou estar morto.
── Jason...? ── A palavra saiu quase como um sussurro doloroso, enquanto ela sentia sua garganta apertar. Angie não sabia o que estava sentindo e também não sabia como reagir.
Então, por longos minutos, ela apenas o encarou.
Sua mão se ergueu devagar, ainda um pouco receosa. Angie tocou a bochecha dele com sua mão trêmula e Jason não fugiu de seu toque, muito menos tentou impedi-la. Ele fechou os olhos e respirou fundo, sentindo o polegar de Angie acariciando a cicatriz em seu rosto.
Sentia a aspereza do rosto dele contra sua palma, trouxe Angie para a realidade: Jason estava vivo, ele realmente estava ali. Ele não era mais o garoto que ela conheceu anos atrás, aquele que primeiro morou nas ruas e depois foi adotado por Bruce Wayne. Aquele que confidenciou a ela que havia se tornado o Robin e estava tão empolgado com isso que não parava de sorrir quando foi a casa dela para contar a novidade.
Não, Jason Todd que desmaiou em seu banheiro era um homem agora, e em nada se assemelhava a criança que Angie um dia conheceu.
-
Para Angie, ver Jason novamente foi como olhar para um estranho que usava o rosto de alguém que ela conhecia. A doçura nos olhos dele, que um dia havia conquistado sua confiança, foi substituída por algo sombrio, uma raiva contida que queimava como brasas, um desejo por vingança que floresceu. Ele estava mais forte, mais ágil, mas também mais frio, com uma dureza que antes não existia. As noites em que Jason aparecia na sua janela para conversar, para dividir biscoitos e confidências, pareciam um sonho distante, algo que acontecerá em outra vida.
Durante aquela noite, depois de fazer o que estava ao seu alcance para impedir que Jason morresse no seu banheiro, Angie se sentou na janela com uma caneca cheia de chá na mão. Ela assoprava com cuidado, enquanto olhava para o homem deitado em sua cama, dormindo profundamente.
Ele estava sem camisa, com seu torso enfaixado, mas ainda usava as calças. Angie deixou as botas pesadas dele ao lado da cama, depois de arrastá-lo com muito esforço até o seu quarto. Angie costurou os ferimentos dele em silêncio, tentando ignorar as cicatrizes antigas em sua pele. Havia tantas perguntas, tantos sentimentos conflitantes, mas naquele momento, tudo o que importava era mantê-lo vivo e foi isso que ela fez, ou tentou fazer.
Jason estava de volta. Mais uma vez, ele surgia em sua vida como se nunca tivesse saído dela. No entanto, nada era como antes. Ele não era mais o mesmo, e, depois de tanto tempo, Angie também sentia que havia mudado.
Angie encarou seu reflexo no espelho do banheiro enquanto a água fria escorria por suas mãos. Havia acabado de limpar o chão, apagando as marcas de sangue que pareciam impregnadas na memória tanto quanto no piso. Seus cabelos escuros estavam presos em um coque desalinhado, alguns fios soltos caindo sobre o rosto cansado. A exaustão estampada em sua pele escura parecia mais profunda agora, refletindo o peso de tudo o que tinha passado. Ela suspirou, desligando a torneira com um gesto lento, quase hesitante.
Depois de secar as mãos, ela foi até a cozinha, onde encheu uma caneca de chá. O vapor subia, misturando-se com o silêncio ao seu redor enquanto voltava para o quarto. Sentou-se na poltrona, levando a caneca aos lábios com movimentos deliberadamente lentos, como se beber o chá pudesse desacelerar o tempo. O ambiente ao seu redor estava esvaziado, ecoando a transição que ela vivia. As prateleiras que antes exibiam livros e pequenas lembranças estavam agora vazias, como se o espaço refletisse a ausência crescente em seu coração.
As caixas empilhadas no canto do quarto eram um lembrete visível de sua partida iminente. O armário que deu para Leah já havia desaparecido, e até o pôster da Canário Negro tinha sido cuidadosamente retirado da parede, enrolado e guardado, pronto para a viagem que logo viria. Mas naquele momento, o peso da mudança, do que ela estava deixando para trás, pequeno comparado ao o que estava acontecendo em sua vida agora.
Ela ficou ali, com a caneca nas mãos, observando o vazio ao seu redor e o silêncio que preenchia cada canto e depois permitiu que seu olhar se voltasse para o homem deitado em sua cama. Jason estava dormindo profundamente, mas não de forma pacífica. As vezes ele murmurava coisas que ela não compreendia durante o sono, assustando-a, fazendo Angie pensar que ele estava acordado, mas não estava.
Naquele momento, Jason estava completamente imóvel. Apenas seu peito, agora enfaixado por ela, subia e descia e, enquanto isso acontecia, Angie suspirava e tomava mais um gole do chá, o sabor morno contrastando com a frieza do silêncio.
Porém o silêncio foi interrompido por um pequeno movimento de Jason. Inicialmente, ela pensou que fosse mais um pesadelo vindo atormentá-lo. Chegou a levar a mão ao balde com água que estava ao seu lado, onde havia um pano dentro e ela o usava para secar o suor que escorria da testa dele quando a febre aumentava. Mas, de uma forma inesperada, ele grunhiu baixinho. Ainda confuso entre o sono e a vigília, e se remexeu com esforço, erguendo o corpo da cama com uma dor visível em cada movimento e um pouco desesperado.
Jason leva a mão ao peito e olha ao redor. Ele encontra Angie com a mão parada no meio do caminho, sem dar continuidade ao que fazia, pois ela estava encarando-o de volta. Apenas alguns segundos depois, Angie afunda na poltrona corretamente e fala.
── Bem-vindo de volta ao mundo dos vivos ── Angie disse, sua voz carregada com uma mistura de ironia e melancolia. Ela levou a caneca aos lábios novamente e murmurou ── eu acho.
Jason grunhe e senta-se corretamente com muito esforço, colocando as pernas para fora da cama e massageando o pescoço. Angie não faz nada para tentar impedi-lo.
── Por quanto tempo eu apaguei? ── Ele perguntou, a voz rouca, como se o peso do mundo estivesse sobre suas cordas vocais. Angie ponderou por alguns segundos, permitindo que o silêncio se estendesse entre eles.
── Três horas, mais ou menos ── respondeu ela, o tom levemente seco. ── Eu diria que foi o maior sono que você tirou na vida, mas... você morreu, então...
── Angie. ── A desaprovação na voz dele era evidente, mas também havia algo mais ali, uma cadência familiar que fazia o coração dela doer. Era um som que ela não ouvia há anos, e que agora a fazia querer se levantar, se mover, fazer qualquer coisa para não ceder àquela nostalgia.
Ela se levantou de repente, o corpo tenso. Não podia mais ignorar o turbilhão de emoções dentro de si.
── O que aconteceu com você, Jay? ── A pergunta saiu antes que ela pudesse contê-la. ── Você fingiu esse tempo todo ou o quê? E por que voltar só agora? Por que bater na minha porta depois de todo esse tempo?
Jason ergueu os olhos para ela, o humor fugaz que tentara manter desmoronando diante da intensidade de suas palavras.
── Para ser mais exato, eu não bati na porta, entrei pela janela ── tentou brincar, mas o sorriso que esboçou não alcançou os olhos.
── Jason! ── A repreensão de Angie foi quase imediata, mas também carregava uma preocupação que ela não conseguia mais esconder.
A máscara de humor que ele tenta vestir se desfaz e o rosto de Jason escurece. Angie percebe pelo olhar dele que há uma tristeza, uma dor como se ele se sentisse magoado por ela querer tocar naquele assunto. Angie quase se arrependia de insistir, mas não havia uma realidade onde ela apenas ignorasse tudo e seguisse em frente.
Ele estava vivo. Jason estava vivo e estava na cama dela, olhando para ela. Ele estava bem ali e Angie sentia que deveria estar feliz por isso, mas não estava. Naquele momento, ela pensava que não sabia o porquê, mas a resposta estava clara.
── Apenas... fala comigo... ── Angie murmurou, a voz quase implorando. Ela precisava ouvir a verdade, por mais devastadora que fosse.
Por um momento, Jason apenas olhou para o chão em silêncio. Um silêncio que durou segundos, mas para Angie parecia ter durado horas. Horas que se arrastaram.
── Você quer a verdade? ── Ele ergueu o olhar, e Angie se deparou com um Jason que nunca havia conhecido. Havia uma dureza em seus olhos, uma amargura que não pertencia ao garoto que ela lembrava. ── Eu morri, Angie. De verdade. O Coringa... ele fez isso.
── Jason... ── Angie tentou intervir, mas não sabia o que dizer. Como ela poderia oferecer consolo a alguém que passou pelo inferno e voltou? ── M-mas como você voltou...?
Ele a olhou nos olhos por um momento.
── O Poço de Lázaro. Me ressuscitaram no poço. ── ele murmurou, e ela poderia encontrar os horrores que ele havia visto gravados nos olhos dele.
Jason fechou os olhos por um minuto longo, recompondo-se. Quando ele encara Angie novamente, seu semblante sombrio permanece.
── Aquele lunático me matou, e o Batman permitiu que isso acontecesse. Ele não fez nada para impedir. O Batman me deixou morrer. E tudo o que ele fez depois disso foi me substituir ── Jason levantou-se da cama, cambaleando levemente, e começou a andar pelo quarto, com as mãos fechadas em punhos enquanto tentava controlar a raiva que fervia dentro dele . ── Ele não fez nada contra o Coringa, nada para mudar isso.
── Então, é por isso que você retornou para Gotham, por vingança? ── Angie o questiona. ── É por isso que está tentando matar o Batman?
Jason não verbalizou, mas o olhar em seus olhos confirmava a verdade. A raiva contida ali, o remorso que ele carregava. Não era em relação a ela, nunca foi, era em relação ao Batman. Sempre foi.
── Jason, você não tem que fazer isso... ── Angie caminha até ele, porém Todd se afasta.
── Eu não tenho? Sério? ── indagou Jason, sentindo-se traído. ── Eu pensei que você entendesse, Angie. Pensei que ficaria do meu lado...
── Eu entendo você, Jason. Mas não posso apoiar o que está fazendo, não quando você está se destruindo por uma vingança ── ela se aproxima dele, segurando o rosto do homem suas mãos, forçando-o a encará-lo. ── Por favor, Jay. Pare com isso.
── Eu não posso...── Jason balança a cabeça de um lado ao outro com os olhos fechados.
── Jason...
── Eu não posso, Angie. ── ele a afasta. Os olhos dele se abrem e a encaram, Angie percebe a dor dele. ── Não posso.
Ele murmura a última frase em um quase sussurro. Eles sustentam o olhar um do outro por um longo momento, onde suas respirações preenchem aquele espaço.
No instante seguinte, a campainha toca, fazendo Angie se sobressaltar. Ela olha para a porta e depois para Jason, porém fica em silêncio quando dá as costas para ele e vai até a sala, limpando o rosto e as poucas lágrimas que caíram. Angie se recompõem o máximo que pode antes de abrir a porta, encarando o entregador do outro lado.
A conversa é rápida, ela recebe o pacote com a comida e agradece, fechando a porta assim que o paga. Angie deixa tudo sobre o balcão, respirando fundo no silêncio do seu apartamento. Ela fecha os olhos por um breve momento, criando coragem para retornar ao seu quarto. Quando Angie finalmente o faz, fazendo o caminho de volta para o outro cômodo, ela o encontra totalmente vazio.
Na terceira vez que Jason apareceu, Angie não estava esperando por ele, muito menos procurava. Ela havia se cansado. Depois do encontro com Jason, Angie decidiu adiar sua ida para Central City por mais 1 semana. Ela sentia que não podia deixar Gotham, não enquanto Jason estava desaparecido na cidade. Ele havia lutado contra o Batman uma última vez, mas não o matou. Ele não foi até o fim e Angie não sabia o motivo, entretanto Jason ainda estava por ai, estava a solta pela cidade e em qualquer lugar que ela não conseguia encontrá lo.
Pacientemente, como uma criança, ela esperou ansiosamente para que ele retornasse, que decidisse falar com ela. Entretanto, os dias passaram e nada disso aconteceu. Angie pensava que não podia ir embora enquanto não soubesse o desfecho daquela história, mas se Jason não queria mais ve-la, não havia nada que pudesse fazer. Então quando o domingo chegou e naquela noite Angie estaria partindo oficialmente, e aqueles dias passados pareciam ter sido o suficiente para fazê-la se decidir, fazendo-a aceitar a verdade.
No cemitério de Gotham, que já havia se tornado um local familiar para ela, as árvores antigas sussurravam com o vento, junto às lápides, sombrias e silenciosas, que eram testemunhas de suas visitas regulares. Ela estava diante do túmulo de Jason de novo, o túmulo que ela visitava mais do que o de seu próprio pai, o mesmo túmulo que visitava desde que acreditou ter perdido o amigo de infância para sempre e que nada parecia ter mudado. Aquela era sua hora de se despedir. Durante a noite, o céu estava encoberto, as estrelas escondidas por um manto de nuvens, e uma fina neblina começava a se formar em mais uma noite úmida que estava prestes a se formar.
O vento noturno soprou frio, mas não foi isso que fez Angie estremecer.
── Sabe que eu não estou aí, por que continua voltando? ── A voz de Jason cortou o silêncio, carregada de uma amargura que Angie não esperava. Aquela pergunta, pronunciada com uma calma perigosa, parecia mais uma acusação. E, no entanto, havia algo mais profundo, uma dor que ele tentava esconder atrás daquela fachada de indignação. Era como se ele exigisse, com toda a intensidade de sua alma, que ela abandonasse o luto que carregava.
Ele estava ali, em carne e osso, mas Angie ainda via um fantasma. Ele estava em suas roupas civis dessa vez. Usava um casaco com capuz que cobria parte de seu rosto, havia um hematoma em sua bochecha, um corte sobre o nariz. Não parecia que Jason havia dormido durante a noite.
Ela ergueu o rosto, e a tristeza que se refletia em seus olhos era inconfundível. Porém, havia algo mais, um cansaço que ia além da fadiga física. A resposta que ela deu a Jason foi baixa, quase sussurrada, mas carregada com o peso de uma verdade cruel.
── Porque o Jason que eu conhecia morreu ── disse ela, a voz calma, porém o olhar melancólico permanecia em seu rosto. ── Você não é ele. Não mais.
Aquelas palavras eram uma lâmina afiada, cortando através da armadura que Jason havia construído ao redor de seu coração. Ele poderia ter recebido golpes físicos sem vacilar, mas aquilo... Aquilo foi um golpe que ele não estava preparado para suportar. No instante em que Angie verbalizou o que ele já sabia, mas ainda se recusava a aceitar, a dor em seu peito se intensificou, transformando-se em um vazio avassalador que ameaçava consumi-lo.
Angie assistia a tudo em silêncio, o mesmo silêncio que sempre acompanhou suas despedidas. Ela havia visto Jason entrar e sair de sua vida tantas vezes que isso se tornará uma espécie de rotina, um ciclo familiar que, por mais doloroso que fosse, era compreensível. Quando ele voltava, era como se tudo se encaixasse novamente, como se o mundo voltasse a fazer sentido, mesmo que por breves momentos. Mas aquilo foi há muito tempo. E agora, quando ele voltou, nada parecia estar melhor.
Angie ainda estava tentando superar o luto, um processo lento e doloroso que parecia não ter fim. Quando pensou que o havia perdido para sempre, algo dentro dela se quebrou de forma irreparável. Agora, ele estava de volta, e ela sabia que deveria estar feliz, mas não conseguia. A presença de Jason não trazia a paz que esperava; em vez disso, era um lembrete constante do que havia sido destruído. Ela sabia que era injusto para ambos, pois Jason, por sua vez, estava desmoronando por dentro, tentando se agarrar a qualquer vestígio de quem ele costumava ser e pensava que estar perto dela poderia de alguma forma trazer isso de volta.
Ele apareceu naquela noite, ferido e exausto, sangrando no banheiro dela, procurando desesperadamente a única pessoa que acreditava que poderia lhe trazer algum conforto. Jason não sabia como chegou ao apartamento naquela noite, apenas que todas as estradas o levaram até ali, até Angie.
Ele sabia que queria desesperadamente que Angie o visse como antes, como o garoto que ela conhecera, sem o peso do passado, sem os horrores que o moldaram em algo que ele mal reconhecia. Mas, ao encontrar seus olhos, percebeu que estava enganado. Angie não via o Jason que ele desejava ser, e essa percepção o destruiu de uma forma que ele nunca imaginou ser possível, porque de todas as pessoas em seu mundo, ele queria que ela fosse a última que o visse de maneira diferente.
── Estou deixando Gotham hoje a noite, essa pode ser a última vez que vamos nos ver. ── disse ela, cortando o silêncio entre eles que havia se prolongado por tempo demais. ── Eu não quero que seja, mas... se continuar com o que está fazendo, não posso te manter na minha vida, Jay. Mas eu quero que você fique.
Angie dá um passo à frente e se aproxima dele. Eles estão face a face naquele momento, confrontando um ao outro ao que ela esperava ser definitivamente a última vez.
── Perdi o antigo Jason naquela noite, ele se foi. Eu aceitei. Mas você tem a oportunidade de ser um novo Jason, alguém que faria o antigo se orgulhar e não odiar. ── ela continua. ── Mas é sua escolha. O que sei é que não vou estar aqui para ver você destruir Gotham e a si mesmo, porque prefiro manter as boas lembranças vivas.
── Eu não sei quem ser ── Jason murmurou, a voz mais fraca do que ele gostaria. Ele deu um passo para trás, como se precisasse de distância para suportar o peso das palavras dela. ── Eu quero você, mas não quero te machucar mais e, se eu permanecer na sua vida, talvez... só te decepcione mais. E se não houver mais nada para consertar?
Angie sempre foi seu ponto de equilíbrio, a única constante em um mundo cheio de caos. E agora, ali, ela estava oferecendo algo que ele nem sabia que precisava: a chance de se redimir, de se reconstruir. Mas como reconstruir algo que estava em pedaços? Como se tornar alguém melhor quando o passado o assombrava a cada instante, a cada respiração?
── Consertar... ── ela repetiu, balançando a cabeça levemente. ── Não se trata de consertar, Jay. Se trata de aceitar. Eu também tive que aceitar que você se foi. Que aquele Jason... o meu amigo... não ia voltar. Mas você está aqui agora. E eu percebi que ainda... amo você.
Jason permaneceu em silêncio, observando a mão estendida de Angie. A confissão dela o pegou de surpresa, embora, em seu íntimo, ele sempre soubesse que esse sentimento nunca havia desaparecido.
O rosto de Jason se contorceu em um breve espanto, mas logo se transformou em uma dolorosa realização. Ele havia cruzado tantas linhas, mergulhado em tanto ódio e vingança, que não acreditava mais ser capaz de voltar. Ainda assim, ali estava ela, oferecendo-lhe uma escolha. E a verdade era que Jason sempre a amou. Desde a infância, desde aquele momento em que seus mundos se encontraram em uma noite fria e solitária.
── Eu... também amo você. Sempre amei ── ele murmurou, a voz rouca, um pouco embargada ── Tudo o resto pode ter mudado, mas isso... isso nunca mudou. ── Aquelas palavras saíram com um peso tremendo, mas, ao mesmo tempo, libertador. Porém, logo após, ele abaixou os olhos, um semblante amargo dominando seu rosto. ── Mas não é tão fácil assim, Angie. Só esquecer de tudo e seguir em frente...
── Eu sei. Sei que não é fácil. Mas se destruir desse jeito... também não é o caminho. ── Ela limpou as lágrimas com a manga de seu casaco, mas sua determinação permaneceu intacta. ── Eu estou aqui pra você, Jay. Podemos encontrar um caminho juntos.
Angie estava cansada. Cansada de velar o túmulo de alguém que ainda estava vivo. Cansada de amar um homem que não sabia se podia se amar de volta. Mas, acima de tudo, estava cansada de esperar que ele decidisse quem queria ser. Era por isso que, naquele momento, com a mão estendida, ela tomava sua decisão final. Se Jason fosse partir de novo, seria para sempre. Não haveria mais segundas chances. Não haveria mais visitas inesperadas durante a madrugada, nem confrontos silenciosos em cemitérios. Aquela era a última vez que Angie ofereceria seu coração.
Jason olhou para a mão dela como se fosse a única âncora entre ele e o abismo. Sua mente o arrastava para a noite em que a conheceu, revirando lixo, tentando sobreviver. Naquela noite, Angie o resgatou de um destino sombrio, e, de certa forma, ela estava fazendo isso novamente. Só que, dessa vez, ele não era apenas um menino faminto; era um homem quebrado, despedaçado por sua própria violência e pelo caos que o seguia.
Seu olhar subiu lentamente, dos dedos de Angie até seus olhos, cheios de esperança e desespero, um reflexo do que ele também sentia. A hesitação foi palpável. Parte dele queria recuar, fugir da possibilidade de ser alguém melhor, alguém vulnerável. Mas, ao mesmo tempo, havia uma parte dele que queria tentar e foi ela quem falou mais alto.
Jason ergueu a mão, lentamente, quase como se estivesse com medo de que aquele gesto pudesse quebrar o frágil elo entre eles. Quando finalmente tocou a mão dela, foi como se o peso do mundo caísse de seus ombros, ainda que brevemente. A mão de Angie estava quente, firme, e ele sentiu a familiaridade daquele toque. Era o mesmo toque de todos aqueles anos atrás, quando ela o alimentou e deu-lhe esperança pela primeira vez.
Ele a puxou para mais perto, sentindo o calor do corpo dela, o conforto que só ela podia lhe dar. Nenhum dos dois sabia o que o futuro reservava. Ele não sabia se poderia ser o homem que ela acreditava que ele poderia ser. Mas, naquele momento, soube que não queria mais estar sozinho.
O beijo que veio em seguida foi suave, hesitante no início, como se ambos tivessem medo de quebrar o momento. Mas logo a insegurança deu lugar à paixão reprimida por tantos anos. Jason a beijou como se fosse sua última chance de encontrar um pedaço de si mesmo, e Angie respondeu com a mesma intensidade, como se também estivesse se despedindo de um fantasma que a assombrou durante muito tempo.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top