PRÓLOGO
A grama fresca envolve meus pés enquanto corro pelo campo ao redor da grande construção erguida em pedras brancas e mármore. Sinto o vento envolver meus cabelos e desfazer o coque que eu havia feito, deixo a falsa sensação de liberdade me envolver enquanto termino a minha décima volta da manhã ao redor do campo.
Me fortalecer para as batalhas é o meu grande objetivo, eu posso ter sangue de nobreza e posso não ser a praticante de magia mais forte da região, eu posso ser a filha mulher que meus pais não queriam e posso não ser forte o suficiente para derrotar a Floresta, mas sou obstinada ao ponto de lutar até me tornar a pessoa que vai queimar cada centímetro daquelas malditas árvores até elas se transformarem em cinzas.
Deito na grama ao sentir que minhas pernas não aguentariam outra volta, sinto minhas costas exauridas se envolverem na grama úmida. Observo o céu acima de mim, azul como as águas do mar que cercam o nosso reino.
Alesthéia é o nome do lugar em que vivo desde o meu nascimento. É administrado pelo nosso rei, Ethan Urrea, o qual é um forte dominante das águas, capaz de criar fortes tempestades que inundam as propriedades dos mais pobres, mas que também molham as lavouras e permitem o crescimento das frutas, das verduras e de todo o alimento que mantém a da vida do povo.
Nas fronteiras do Sul do reino encontra-se o Grande Rio que abençoa a nossa cidade e abastece as vilas mais distantes, nosso povo cultua as água, mesmo que apenas a dinastia do rei e seus herdeiros tenham o poder de controlá-las. Nas fronteiras do Norte é onde está localizado o nosso maior inimigo, a Floresta, que se ergue em grandes árvores e ocupam longos quilômetros de terras.
É de lá que vêm todos os seres assustadores que rodam as vilas mais pobres e com menos proteção, em busca de almas para serem consumidas. Seres do mal que consomem todo sinal de vitalidade, esperança e bondade que encontram pela frente.
— Any, finalmente te encontrei — ergui a cabeça para olhar a moça de cabelos negros que corria até mim.
Sabina é minha melhor amiga desde que eu me entendo por gente, a menina encanta as pessoas por onde quer que passe, ela possui uma fila de pretendentes a sua porta e por mais que pareça uma garotinha fútil a primeira vista, não se engane, Sabina é muito mais que apenas joias e vestidos de seda. Ela é como eu. Uma mulher obstinada que possui sede de vingança e vontade de queimar cada criatura horripilante que a Floresta abriga.
Sei que ela faria isso com as próprias mãos se pudesse.
— Por que a pressa? Aconteceu algo? — levantei no mesmo instante, sem me importar com as flores que ficaram presas na minha calça.
— Tenho novidades para te contar — ela responde assim que para na minha frente, segurando a barra do seu vestido turquesa com uma das mãos e na outra, trazia consigo uma pequena cesta feita de palha — porém vamos para um lugar mais privado.
Percebi de imediato que uma das empregadas da casa nos observava da janela da cozinha, muitas vezes elas se espreitavam entre as janelas e os corredores para ouvir as conversas alheias, podiam ser pessoas amáveis e de bom coração, mas eram extremamente fofoqueiras.
Desviei o olhar rapidamente e apontei com a cabeça em direção as plantações de jabuticaba que se estendia pelo longo quintal da minha casa, indicando a Sabina para irmos naquela direção.
— Conte logo, estou ansiosa — mal podia conter a ansiedade. Sabina era a pessoa certa para entregar notícias, ela sempre sabia de tudo em primeira mão pois era filha do general do reino e sua família detinha de muito poder e influência na região.
Adentramos a plantação de jabuticaba que se estendia por uma longa faixa de terra. Minha família também não ficava muito atrás quando o assunto era poder e influência, meu pai era o grande comandante de guerra. Talvez por essa razão eu sinto que nasci destinada a livrar o povo do mal que os ataca e os consome sem consentimento.
— Nós fomos aprovadas para a Eblenia — ela me abraçou com empolgação e não contive um sorriso.
Eblenia era diferente de todas as outras escolas do reino, apenas os alunos detentores de poderes mágicos ou de habilidades especiais podiam frequentá-la. Os filhos de nobres e de famílias ricas estudavam na melhor escola da região, a Gossia, até os 17 anos, depois disso, os qualificados eram encaminhados para a Eblenia, onde aprenderiam a verdadeira magia e práticas de guerra.
Geralmente, detentores de poderes especiais são raros na nossa geração, pois há cerca de 20 anos a Floresta massacrou centenas de bebês cujos ambos os pais detinham de poderes. Desse modo, os bebês não nasceriam e assim, não seriam uma ameaça para ela.
Se eles tivessem nascido nós teríamos um exército capaz de derrotá-la.
— Eu sei, recebi a carta assim que acordei — explico quando ela me solta do abraço, começo a colher algumas frutas da árvore enquanto minha amiga se senta na grama, ainda com um sorriso no rosto.
— Não vejo a hora de colocar minhas mãos naqueles arcos de treinamento - Sabina não tinha nenhum poder especial, mas era capaz de fazer um grande estrago com qualquer arma que segurasse na mão. E apesar de seu irmão mais velho ser um homem, era a Hidalgo quem detinha de toda a destreza quando o assunto era lutar.
— Fico imaginando se o meu poder vai ser útil — me sento ao lado de Sabina e deposito a mão cheia de jabuticabas na cesta. Apesar de ser quase tão boa quanto a Hidalgo nas lutas, eu herdei o poder de cura da minha mãe e geralmente os bebês herdavam o poder do pai.
Eu deveria ser uma dominante da terra assim como o meu pai é.
Meus olhos e meus cabelos eram escuros com a terra, minha pele também tinha um tom escuro muito bonito que reluzia a luz do sol. Quando nasci, os olhos do meu pai se encheram de orgulho ao pensar que eu seria uma dominadora da terra, assim como ele, porém apesar de meus olhos serem escuros como a terra, eu não a dominava.
— Deixe de ser boba, Soares — me deu um tapinha no ombro — seu poder é essencial para salvar a vida das pessoas, com o treinamento adequado você será uma curandeira muito forte, se não a mais forte.
— Eu não quero ser uma curandeira, quero ser uma guerreira — respirei fundo, levando algumas frutas até a boca e sentindo o gosto adocicado se espalhar pela minha língua. Mesmo os curandeiros serem raros no reino, eles geralmente surgem entre os camponeses e a nobreza não olharia para mim com o mesmo respeito que olhariam se eu fosse uma grande guerreira — quero que eles vejam que nós mulheres não precisamos de proteção e servimos para muito mais coisas além de procriar, quero que vejam que podemos lutar nossas próprias guerras e nos proteger sozinhas.
Como curandeira eu não poderia lutar, precisaria ficar aguardando para cuidar dos feridos que chegariam.
— Nós podemos — ela olhou para mim antes de abrir um sorriso — além do mais, quem garante que você não herdou os poderes do seu pai também?
— Isso é tecnicamente impossível - suspirei.
— Soares, pensa comigo — ela se levantou animada — quantos são as crianças dos quais ambos os pais são detentores de poderes?
— Poucas — respondi sem muita importância.
— Então, por qual motivo a Floresta teria mandado aqueles lobos matarem os bebês cujos ambos os pais eram? Porque ela sabia que eles seriam poderosos o suficiente para destruí-la — minha amiga falava com um olhar conspiratório, como se criasse uma teoria muito elaborada — porque ela sabia que alguma daquelas crianças poderiam ter mais que uma aptidão, Any.
— Sabi, isso é folclore — quase ri da minha amiga, ela falava tão animadamente, porém nós duas sabíamos que as histórias sobre os híbridos eram apenas folclore e crescemos rodeadas delas — você conhece a lenda de Rahlia tão bem quanto eu.
— Você é tão cética — minha amiga estendeu a mão para pegar uma jabuticaba que estava no galho ao seu lado.
— Os fatos são mais consistentes que o folclore — levei outra fruta até a boca. Filhos de ambos os pais detentores carregavam apenas o poder de um dos pais ou então os dois poderes, só que o segundo é tão fraco que seria praticamente inexistente, não se manifesta com força, portanto é inútil. E mesmo assim, muito raro alguém ter mais de um poder.
— Falando nisso, eu esqueci de te contar o principal — ela retomou a animação de antes, parecendo se lembrar de algo — o príncipe vai estudar com a gente esse ano.
— O quê? — quase engasguei com a frutinha roxa.
A realeza não estudava junto com nós, eles eram treinados separadamente por professores particulares. Não tínhamos contato com eles, talvez se achassem bons demais para se misturarem com a gente.
— Sim, ouvi isso da boca do meu pai — disse - você acha que os boatos são verdadeiros? — ela falou a última parte tão baixo como um sussurro, tanto que eu quase não ouvi, mesmo havendo apenas nós duas ali.
Logo entendi o porquê dela querer me afastar dos olhos e dos ouvidos da empregada.
— Eu não acho que existam híbridos, Sabi — respondi com sinceridade — não acho que ele seja igual ao pai.
Mesmo que o rei tenha dito que o príncipe Noah Urrea dominava a água, assim como devia ser, eu já havia o visto antes nas festas e nas celebrações, ele era idêntico a rainha e não ao rei. Seus olhos eram verdes como as matas e seus cabelos eram escuros. E todos nós sabíamos que as pessoas detentoras tinham as cores dos olhos condizentes com o seu poder, olhos castanhos escuro: dominadores da terra, olhos castanhos claro: dominadores do fogo, olhos verdes: dominadores das plantas e por último, olhos azuis: dominadores da água.
Noah havia herdado apenas o poder da mãe.
— Não esse boato, é claro que todos sabem que o herdeiro não domina a água - ela riu — o outro boato, sobre o filho bastardo do rei, dizem que ele controla a água — sussurrou novamente.
Balancei a cabeça desacreditada, eu já tinha ouvido esse boato antes, rondando pelas ruas da cidade.
Algumas pessoas diziam que o rei engravidou uma camponesa, poucos meses antes do casamento com a rainha, na época tida como princesa do reino vizinho. A aliança entre dominadores da água e da flora seria de extrema importância, além disso, o resultado dessa união poderia ser um filho híbrido ou pelo menos, um dominador da água e herdeiro do trono, que futuramente reinaria e continuaria a trazer chuvas para as plantações e também impediria que o povo morresse de fome. Noah era o herdeiro legítimo, mas definitivamente não era um híbrido e nem um dominador da água, as histórias diziam que o filho bastardo que era.
E também diziam que ele tinha os olhos azuis como os oceanos.
— Boatos são apenas boatos, Sabi — respondi mantendo a minha postura resignada e ela revirou os olhos antes de voltar a sua atenção para a colheita das jabuticabas.
Mas e se esse filho realmente existisse?
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