Capítulo 32

  Em dezanove, quase vinte, anos de existência devo ter visto neve umas duas ou três vezes. Esta zona do país não é fria o suficiente para tal, no entanto, isso não impede que a erva e as folhas da clareira estejam preenchidas por uma tonalidade esbranquiçada, resultante do tempo fresco que se fez sentir esta noite. 

  Sei que estamos no sítio mencionado pelo senhor Smith devido às fitas da polícia que se encontram espalhadas pela zona, indicando que realmente foram encontrados caçadores mortos por aqui. A forma aparentemente mágica com que a luz incide nas árvores e chega até ao chão, coberto por uma fina camada de manto branco, faz com que a clareira pareça um cenário de filme da Disney com fadas, sendo, porém, esta fantasia cortada pela ideia de terem sido cometidos vários crimes aqui. E mais uns quantos estarem prestes a acontecer.

  Percorremos o caminho de terra, escorregadia devido às folhas molhadas, até encontrar um bom esconderijo. Agachamo-nos junto a arbustos e troncos de árvores caídos, da forma mais silenciosa e discreta possível. É aqui que vamos ficar enquanto esperamos pelo Victor e o seu grupo de guardiões. Eles esperam que atacar de dia surpreenda a Francesca, no entanto não podiam estar mais enganados.

  Tenho consciência de que atrair ambos os grupos para esta armadilha vai culminar num massacre, que muitos guardiões podem morrer quando estão apenas a fazer o seu trabalho. Tenho consciência de que os estou a trair, mas, neste momento, acabar com o plano do Victor é mais importante. Irei dar o meu melhor para proteger o maior número de inocentes possível, claro, mas tenho esperança que assim que eles percebam o verdadeiro lado do Victor, que se voltem para o nosso lado, deixando assim de ser uma luta de volks contra guardiões, mas sim uma luta de guardiões contra volks e Victor. 

  Discretamente, procuro o Cameron e o Thomas com o olhar. Não os encontro, mas sei que eles estão algures por aí, a vigiar tudo. Ou, pelo menos, espero que sim.

  Abraço o meu próprio corpo, na tentativa de me aquecer e fazer com que os meus dentes parem de bater. Nuvens geladas saem da minha boca, enquanto respiro ansiosa com o que está prestes a acontecer. 

— Faz menos barulho! Assim eles vão perceber que estamos aqui. — a Francesca reclama, num sussurro. Obviamente ela e os seus volks estão a lidar bem melhor do que eu com este frio. 

  Encolho-me ainda mais, pressionando a boca contra o tecido quente do braço do meu casaco. A ação não só ajuda a aquecer um pouco a zona, como ajuda a disfarçar o ritmo acelerado com que os meus dentes batem.

  A espera não é tão longa quanto o meu desconforto faz parecer. Quando dou por isso, leves múrmuros começam a soar pela floresta, camuflados pelo som do vento a correr ferozmente por entre as copas das árvores. São os guardiões, que tentam ser o mais silenciosos possível, mas não tão cuidadosos como seriam caso soubessem que os volks não se encontram por aí escondidos a tentar dormitar, mas sim atentos à sua espera. 

  A minha postura muda radicalmente. Enquanto que há segundos tremia de frio, agora tremo com adrenalina e nervosismo. Chegou a hora.

  Olho para a Francesca, que ouve atentamente tudo que nos rodeia em busca de cada detalhe. Tudo é importante, desde a distância que os separa de nós, até ao número de guardiões que possam estar no grupo, que ela calcula pelo número de passos que ouve.

— Onde acha que eles podem estar? — ouço uma voz masculina. A voz já não soa num múrmuro tão baixo, o que me indica que eles estão bem mais perto do que eu pensava. 

— Em qualquer lado onde o sol não alcance. Procurem! — a ordem é dada pela voz inconfundível do Victor. O meu coração acelera. 

  O som dos seus passos fazem-se ouvir, dispersando pela clareira. Os guardiões dividem-se por várias zonas, o que significa que não temos muito tempo antes de sermos descobertos. Ou atacamos em breve, ou o fator surpresa vai por água a baixo. 

  Dirijo o meu olhar para a Francesca, numa urgência silenciosa. Ela não retribui o olhar, mas reparo que, tal como eu, também os outros volks a encaram em expectativa. Vejo-a soltar um sorriso rasgado e diabólico. 

— Ataquem! — ela já se encontra de pé quando grita.

  Nesse mesmo instante, vultos fantasmagóricos atravessam o ar. Vejo-os através do canto do olho, estando eles, milésimos de segundo depois, à minha frente, prestes a atacar qualquer pessoa que encontrem à frente. 

  Os guardiões são apanhados de surpresa, como o planeado, no entanto a sua experiência e treino faz com que rapidamente se recomponham e se defendam das investidas dos volks. 

  Também me levanto, mas permaneço parada atrás dos arbustos por algum tempo, enquanto procuro com o olhar o senhor Smith e a Elena. Ao contrário do que estava à espera, eles não estão juntos, cada um encontra-se numa parte oposta da clareira, a lutar sem repararem em mim. No entanto isso não importa, o importante é que estão cá.

  O Cameron e o Thomas também aparecem, fazendo-me soltar um suspiro aliviado. Corro até eles, desviando-me da multidão de corpos que lutam entre si, tão ocupados que ignoram a minha presença. Eles encontram-se junto a um zona com mais arvoredo. Só quem realmente olhar com atenção é que repara na sua presença, o que é ótimo. Ainda não é o momento ideal para eu aparecer e mostrar que estou viva. Não antes de resolver um último problema no plano.

— Há um problema. — profiro, trocando o meu olhar entre os rapazes e a multidão que me rodeia.  

  Ambos fazem o mesmo que eu, olhando em volta. O Thomas é o primeiro a falar.

— A mim parece-me estar a correr tudo bem...

   Nego com a cabeça.

— Não estão aqui todos os volks. Não faço ideia de quantas pessoas foram transformadas mas duvido que tenham sido só estes... O Bradley, por exemplo, durante estes dias não o vi uma única vez.

— Pode ter morrido. — o Cameron profere. — Ou então, ainda não apareceram todos. A ligação que têm com a Francesca pode funcionar apenas quando ela quiser que eles apareçam.

— Mas precisamos que eles apareçam agora. — a urgência e desespero está bem patente na minha voz. Também observo essa mesma urgência na postura irrequieta deles.

  O facto dos volks não estarem todos aqui não seria um inconveniente caso pudéssemos usar a ligação da Francesca com os volks para acabar com eles. Matávamos dois, ou sabe-se lá quantos, coelhos numa cajadada só... literalmente. No entanto, um dos coelhos é o Jack. Está fora de questão matá-lo, logo também está fora de questão matar a Francesca. 

  Assim sendo, a única forma que temos de acabar com os volks deste mundo, é matar um por um. Para isso temos de os atrair para aqui, é impossível descobrir o paradeiro de cada um deles e ir até lá. Estava a contar que o facto de termos montado esta armadilha fosse fazer com que viessem todos em auxílio da Francesca, no entanto, aqui não se encontra nem uma terça parte do número de volks que imagino existirem. 

— Temos de abrir um portal! — falo, mal a ideia me passa pela cabeça. Sorrio, remexendo-me de forma entusiasmada. Quanto mais penso na ideia, melhor me parece. Isso não acontece muitas vezes. — Os volks sentem-se atraídos pelos portais. Se abrirmos um, eles irão aparecer mais depressa do que formigas atrás de açúcar.

  Analiso as suas caras. O Thomas parece tão entusiasmado quanto eu, por outro lado o Cameron parece mais reticente. Ele pondera sempre mais os planos, ao contrário de mim e do Tom que saltamos de cabeça de forma impulsiva.

— É um pouco arriscado... Foi exatamente por termos aberto o portal da primeira vez que eles conseguiram vir para cá.

— Então não abrimos um portal completo. — contraponho. — Eu abro o portal-televisão. 

— Também funciona?

  Assinto, freneticamente. É perfeito! O portal-televisão tem exatamente o mesmo efeito nos volks e, simultaneamente, protege-nos, uma vez que não tem a capacidade de os deixar passar.

— Vão ajudar. — afirmo. — Não podemos perder mais tempo. Eu vou criar o portal.

  O Cameron dá de imediato um passo em frente, aproximando-se de mim. Noto a sua expressão preocupada antes mesmo dele começar a falar.

— E se os volks te atacarem? É melhor eu ficar aqui. 

— Concordo com ele. — o Tom continua, com os braços cruzados, enquanto me encara com a testa franzida. — Não me parece uma boa ideia.

— Sou perfeitamente capaz de lidar com eles. 

  A minha resposta sai num tom mais ríspido do que pretendia. Já não consigo conter o meu nervosismo. Estamos no meio de um campo de batalha, os rugidos de fúria e gritos de dor ecoam pelos meus ouvidos e aceleram o meu coração. Não é o melhor momento para manter conversas, temos de agir. 

— Só estamos a tentar proteger-te, Becky... 

  Respiro fundo, de modo a acalmar-me, e encaro o meu namorado, com um sorriso no rosto.

— Sinceramente, eu não te vejo como um protetor, mas sim como uma distração.

  Os seus lábios curvam-se num sorriso, surpreso com a minha mudança de postura.

— Devo levar isso como um elogio?

— Talvez. — desvio a minha atenção do Cam, ao ouvir o Thomas bufar para o ar. Não estamos mesmo a ajudar em nada para que ele esteja confortável ao nosso lado. — Vão. Juro que fico bem. Eles precisam mais de ajuda do que eu.

  O olhos negros do Cameron focam-se em mim por vários segundos, enquanto parece analisar-me à procura de um sinal de hesitação. Quando não o vê, troca olhares com o Thomas, que logo a seguir a soltar um encolher de ombros, começa a assentir com a cabeça. 

— Tudo bem. Se precisares de ajuda, grita. — o meu amigo afirma, começando logo de seguida a correr em direção ao amontoado de volks e guardiões. 

  Olho para o Cameron, que coloca gentilmente a sua mão na minha bochecha.

— Este não é aquele momento em que é suposto me dares um beijo para o caso de um de nós morrer? — brinco.

  Ouço-o gargalhar enquanto se aproxima de mim. Os seus lábios tocam na minha testa, onde ele deposita um beijo. 

  Antes mesmo de se afastar, ele continua, com os lábios a rasparem junto à minha sobrancelha enquanto ele fala. 

— Não morras e eu dou-te todos os beijos que quiseres. 

  Sorrio, com a sua respiração quente a bater na minha pele gelada e um friozinho de adrenalina na minha barriga. Inalo o seu perfume, fazendo com que o meu corpo relaxe. Vai correr tudo bem.

— Se precisares de ajuda, grita. — quando se afasta, o Cameron repete as palavras do Tom, com um tom sarcástico que me faz novamente rir. — Mas a sério, tem cuidado. 

  Assinto, da forma mais tranquilizadora que consigo. 

— Tenta proteger o Jack... Ele não pode morrer...

  O Cam assente e logo de seguida solta um longo suspiro, como se odiasse o facto de ter de me deixar aqui, e força um sorriso na minha direção, antes de se virar e correr para a mesma zona que o Thomas. 

  Sozinha, dou alguns passos para longe da clareira. Paro atrás de um conjunto de árvores, que se encontram mais próximas umas das outras, permitindo-me permanecer escondida por algum tempo. Olho em volta, para verificar se estou realmente sozinha, e após constatar que ninguém veio atrás de mim, respiro fundo e fecho os olhos, tentando ao máximo limpar a minha mente e ignorar os barulhos da batalha. Gostava de poder estar lá e ajudar mas neste momento atrair o maior número de volks possíveis para aqui é a prioridade.

  Estico o braço e deixo que a minha mente faça o resto do trabalho. O meu frio diminui de imediato, sendo tomado por um fogo bem vindo que aquece os meus músculos e me descontrai. Sinto os meus dedos formigarem e todo o meu corpo ser possuído por uma energia eletrizante que me faz sentir três vezes mais viva e poderosa. Se os volks sentirem o mesmo que eu quando estão perto do portal, então entendo o porquê de aparecerem sempre que um é aberto. É das coisas mais prazerosas que já senti, quase viciante.

 Abro os olhos. Os meus lábios curvam-se de imediato num sorriso ao ver o portal que, neste momento, me mostra a clareira que se encontra atrás de mim. Não importa quantas vezes o abra, irei sempre ficar maravilhada com ele.

  Pouco a pouco a imagem vai ficando cada vez mais nítida, mostrando-me aquilo que os meus ouvidos já tinham percebido há muito tempo; um autêntico cenário de guerra, com várias lutas, corpos espalhados pelo chão, sangue e cinzas a serem levadas pelo vento enquanto que outros volks ainda ardem. Levo a mão à boca, em choque, ao reconhecer os corpos de dois guardiões que vieram connosco como reforços. Sabia que haveriam mortes, mas tinha esperança que os guardiões fossem aguentar mais tempo sem sofrer baixas.

  Perscruto o espaço visível no portal com atenção. Não encontro mais nenhum corpo, o que me faz suspirar de alívio. 

  Vejo o Cameron e o Thomas lutarem juntos contra um volk, enquanto o Jack se encontra relativamente perto deles, com um ar entediado. Pelo menos não está a lutar...

  A minha atenção é desviada do portal-televisão quando ouço um rugido atrás de mim. Levo de imediato a minha mão ao bolso interior do casaco, onde guardei a minha estaca há uns dias atrás. Tal como o meu telemóvel, também ela tinha ficado esquecida, mas parece que chegou a hora de a utilizar novamente.

Viro-me, encontrando não um, mas dois volks a encarar o portal de olhos vidrados. Eles aproximam-se num ritmo lento, quase como se aquilo que tanto os atrai pudesse ter a capacidade de acabar com a vida deles. Se depender de mim, vai mesmo!

  Avanço. Os seus olhos reagem ao meu movimento, como se tivessem acabado de perceber que eu estou aqui. Os dentes de ambos rangem enquanto a sua atenção deixa de estar no portal, mas sim em mim. 

  Antes que me aproxime deles, já eles estão ao meu lado, cercando-me. Os seus peitos sobem e descem numa raiva desmedida. Eles precipitam-se na minha direção, com os braços esticados para me agarrarem. Esquivo-me por entre ambos, agachando-me. Aproveitando que me encontro bastante mais baixa do que eles, apoio o meu corpo no chão e dou um forte pontapé na canela do volk à minha direita. Este cai. Apresso-me a chegar até ele, antes que tenha tempo de se recuperar da queda e reagir contra mim, porém o outro volk alcança-me pelas costas, levantando-me. 

  As suas mãos prendem os meus braços com força atrás das minhas costas. A minha estaca cai ao chão e tento soltar-me mas é inútil. Decido recuar, forçando-o a andar também. O meu corpo embate contra o seu assim que alcançamos aquilo que, lançando um rápido olhar para trás, percebo que é uma árvore. Aproveitando que ele está preso entre mim e o tronco da árvore, sem opção de fuga, finco o meu cotovelo no seu abdómen, fazendo com que ele se encolha sobre mim. Continuo a golpeá-lo com os meus cotovelos enquanto simultaneamente me vou abaixando cada vez mais para escapar pela lateral de um dos seus braços. 

  O outro volk alcança-nos. Levo a planta do meu pé até ao seu corpo. Ele cai no chão mesmo a tempo de me virar para trás, colocar as minhas mãos na cabeça no volk que prensei contra a árvore, e torcer o seu pescoço. Ele cai inanimado no chão, dando-me algum tempo para tratar do outro, que já se encontra de joelhos, prestes a levantar-se. 

  Apanho a estaca num movimento rápido. O volk lança o seu punho contra mim, mas recuo. Já totalmente de pé, ele avança na minha direção e prende na palma da sua mão o punho que me preparava para lhe acertar, torcendo-me o braço. Volto a golpeá-lo com o cotovelo, como fiz com o outro, vendo-me livre do seu aperto. Apanhado de surpresa, ele deixa-se cair quando desfiro dois murros no seu rosto e logo de seguida um pontapé. 

  Agacho-me ao seu lado. O volk remexe-se para me atacar. Prendo os seus braços e pressiono o meu joelho no seu abdómen, impedindo-o de me afastar. Embora não seja forte o suficiente para o imobilizar, consigo prendê-lo tempo o suficiente para atacar.

  Afasto o meu braço para trás, e quando o volto a trazer para a frente, com força, cravo a estaca bem fundo no seu peito. As minhas mãos ficam de imediato manchadas com o seu sangue negro, que escorre pela minha pele morena. Afasto-me do seu corpo, antes dele se incinerar e cair em cinzas aos meus pés.

  Antes que tenha tempo de recuperar o fôlego, volto para junto do outro, que deixei temporariamente morto junto à árvore e faço o mesmo. 

  O meu peito sobe e desce num ritmo desenfreado. Isto ainda agora começou e já me sinto cansada. 

  Atrás de mim, o portal continua luminoso e intocado pelos monstros. O facto dele estar aqui vai fazer com que todos os volks nas redondezas sejam atraídos para cá. Vai ser difícil lidar com todos. Talvez tivesse sido boa ideia o Thomas e o Cameron terem ficado por perto para ajudar... 

  Quando volto a olhar para a frente vejo mais alguns volks a aproximarem-se, e, atrás deles, mais uns quantos. 

  De olhos arregalados, dou um passo atrás. 

  Não há como escapar, são demasiados.

  O volk mais à frente ataca-me. Defendo-me dos seus golpes da melhor forma que consigo, até também os outros decidirem juntar-se à festa. 

  A onda de volks começa a aumentar. Posicionados lado a lado, como soldados, eles avançam na minha direção vindos de todos os lados. Sinto como se lentamente estivesse a ser cercada por quatro paredes, sem ter por onde me esquivar.

— De onde estão a aparecer tantos volks? — ouço alguém gritar, embora a voz chegue abafada até mim. 

  Olho em volta, à procura de uma fuga. Sem perder tempo, corro até ao portal, passando por uma brecha na muralha de volks. 

  A soltar rosnados furiosos, eles vêm atrás de mim.

  Em desespero, forço-me a pensar depressa num plano. Movo o meu olhar até ao portal, que mostra ainda mais volks no meio dos guardiões do que aqui comigo. Todos caminham nesta direção, é uma questão de tempo até se amontoarem aqui mais de quarenta volks. 

  Abrir um portal completo para sair daqui é demasiado arriscado... Preciso de uma arma grande... Algo que consiga atingir vários ao mesmo tempo...

  Uma memória de há dois anos atrás vem-me à mente. Uma memória de quando ainda estava a descobrir o meu poder. Na altura eu e o Cameron sabíamos como criar, cada um, uma parte do portal mas não sabíamos como as juntar. Numa das nossas desastrosas tentativas, o meu portal-televisão explodiu em mil e um pedaços de vidro. Se o conseguir repetir, pode resultar...

  Troco olhares rápidos entre o portal e os volks, calculando mentalmente quanto tempo tenho para os atingir antes que eles me alcancem. Pouco, demasiado pouco.

  Coloco a minha mão no portal, e, como há dois anos, tento puxá-lo. Assim que as suas cores passam a ficar mais fracas e com linhas disformes, agacho-me, com as mãos a proteger a cabeça. 

  Como se pressentisse quando é que já estou segura, o portal explode. O som estridente de vidros a partirem-se soa nos meus ouvidos e milhões de vidros voam para a frente, cravando-se no peito, cabeça, braços... tudo o que apanha à frente, dos volks. Os monstros caem para trás, lutando de forma trapalhona para retirar os vidros dos seus corpos.

  Aproveito o facto de estarem momentaneamente indefesos para os matar. Alguns volks, que estão demasiado perto uns dos outros, enquanto ardem após eu lhes cravar a estaca, acabam por incendiar também os corpos dos que estão ao lado, poupando-me o trabalho de os matar.

— Os volks estão todos a ir para ali. Vamos ver o que se passa.

  O seu corpo enrijece ao ouvir a voz do Victor. Ele vem para aqui. Ele vai descobrir que estou viva...

  Limpo o suor da minha testa, sentindo o meu batimento cardíaco acelerar, e seguro a estaca com mais força na minha mão, como se estivesse prestes a usá-la no Victor. 

  Os sons da batalha continuam. Na clareira, alguns guardiões continuam a lutar contra os volks, o que significa que apenas alguns seguem o Victor até aqui. Até mim. 

— Tu... — o Victor murmura, entre dentes, assim que me vê. Os meus olhos focam-se instintivamente nele. No seu rosto vejo um misto de raiva e incredibilidade. Ele morde o seu lábio inferior com fúria, enquanto bufa como um touro enraivecido. 

  Ao lado dele, encontram-se duas pessoas; a Andreza, a minha antiga colega de quarto na academia, e outro guardião que me lembro de ver nas reuniões do conselho. 

— Ela não tinha morrido? — ouço o guardião perguntar, ao mesmo tempo que mata os últimos dois volks que restavam aqui comigo. Ele parece tão surpreso quanto o Victor, embora por razões diferentes.

— Ela é claramente um volk agora. Acabem com ela! — vocifera.

— É mentira! Ele tentou matar-me! 

  Ao ouvir isso, o guardião ao seu lado não segue a sua ordem. Em vez disso, permanece parado, a trocar olhares entre mim e o Victor, com os olhos semicerrados e uma expressão de dúvida no rosto. Ele encara-me, claramente em dúvida sobre a veracidade de ambas as informações que recebeu. 

  Já a Andreza, vendo que o outro guardião nada faz, corre na minha direção, com fúria. 

  A sua estaca desce na direção do meu peito, mas sou rápida o suficiente para segurar o seu braço com a minha mão. Ela não se deixa abalar e lança o seu punho na minha direção, acertando-me na cara. Fecho os olhos e recuo, cheia de dores. 

— Andreza... — murmuro, levando uma das mãos ao meu nariz. —  Não faças isso. Olha para mim, sou humana! Ele tem estado a manipular-vos a todos!

  Ela aproxima-se de mim, com calma. Analiso o seu rosto, à procura de qualquer sinal de que acredita em mim, no entanto tudo o que vejo é o surgir de um sorriso de orelha a orelha, seguido de uma gargalhada. 

— E achas que eu não sei disso?

  Arregalo os olhos, surpresa. 

— O quê?

  Pelo canto do olho vejo o Victor e o guardião que estava com ele lutarem com alguns volks, alheios a nós. Ou, pelo menos, o outro guardião está. Já o Victor, lança vários olhares nervosos na nossa direção.

— Despacha-te, Andreza! — reclama, com um volk debaixo dos braços. 

  A Andreza aproxima-se ainda mais de mim. Recuo, mas ela pega-me pelo braço e puxa-me para si. 

— Quem achas que o tem ajudado, Becky? — o seu hálito embate no meu rosto e os seus dentes rangem enquanto fala, de forma ameaçadora. Nunca a tinha visto assim. 

  Foi nela que o Victor usou o meu ADN e o do Cameron...?

  Sacudo os meus braços, soltando-me dela, e agarro as suas mãos, atirando-a ao chão, onde ela cai após dar uma cambalhota no ar. 

— Pensava que éramos amigas. — retribuo o mesmo tom ameaçador com que ela falou comigo.  

  Ainda no chão, ela acerta com o seu pé na minha perna, fazendo-me perder o equilíbrio e ajoelhar-me à sua frente. A estaca volta a escapar-me das mãos. Ela levanta-se, puxando-me novamente para si. A sua mão agarra o meu braço, que prende atrás das minhas costas, fazendo-me grunhir com dores. 

— Nunca ouviste aquele ditado "a pensar morreu um burro"? — a sua boca aproxima-se do meu ouvido e ela sussurra. — É assim que vais morrer. Já que os outros foram incompetentes em acabar contigo, terei de ser eu a tratar do assunto.

  O seu joelho embate no meu estômago. Sou tomada por uma nova onda de dor, que aumenta ainda mais assim que o seu punho volta a acertar-me. 

  Caio ao chão, desnorteada. Ela desfere vários pontapés nas minhas pernas e barriga. 

  Com os olhos semicerrados, quase incapazes de se manterem abertos, vejo várias pessoas se aproximarem. Distingo alguns volks, mas também vários guardiões. Parece que o campo de batalha foi transferido para aqui. Dentro de todos, pareço reconhecer o Bradley, no entanto não tenho tempo para me focar nos outros. 

  Vejo a Andreza pegar na estaca, prestes a cravá-la em mim. Nesse momento o meu peito enche-se de raiva. Fui enganada por alguém que considerava amiga outra vez. Pensava que tinha aprendido. 

  Solto um grunhido irritado, sentindo o meu corpo incendiar-se. As minhas veias parecem estar cheias de sangue a ferver, o que me traz força para levantar e golpear a rapariga, que, surpresa, não tem sequer tempo de se defender. 

  De repente, um vulto passa entre nós. Sou empurrada para trás com força e caio novamente, no entanto desta vez quem me empurra não é a Andreza, mas sim o... Jack.

  Vejo o meu amigo atacar a rapariga de forma trapalhona, mas eficaz. Embora ainda não tenha muito controlo sobre o seu corpo e velocidade, a força dele está claramente a ganhar contra a técnica e experiência da Andreza, que não esperava este ataque. 

  Levanto-me. 

— Jack, afasta-te dela!  — aproximo-me dos dois, mas o Jack volta a empurrar-me para longe.

— Não te metas! — ele grita, atacando a Andreza ainda com mais fúria. Com respirações ofegantes e longas pausas entre palavras, ele continua. — Nos últimos tempos... estar contigo foi... o mais perto que senti de... de ser humano. Não vou deixar que morras. 

  As suas palavras apanham-me de surpresa. Já tinha aceitado esta nova faceta sem sentimentos do Jack, mas afinal ele não está totalmente perdido. Mesmo que o seu lado volk me responsabilize pela sua transformação e o faça odiar-me, uma parte dele sentiu-se bem comigo, menos monstruoso e com vontade de me ajudar. Sorrio, feliz com o rumo dos acontecimentos. 

  Mas de repente a situação muda. 

  Já não é o Jack quem ataca a Andreza, mas sim o contrário. Ela ataca-o com maestria e prende-lhe o braço, torcendo-o até os ossos do rapaz estalarem. Ouço-o soltar um rugido doloroso e fechar os olhos em sofrimento.

— Lamento desiludir, mas ela vai morrer. Tal como tu. 

  Antes que o meu cérebro tenha tempo de processar as palavras da Andreza, a rapariga crava a estaca no peito do Jack. 

— Não!

  Ouve-se um último rugido por parte do meu melhor amigo, que se mistura com o som de gritos e outros sons da batalha.

  Precipito-me para a frente, arrancando a estaca do seu peito, no entanto sou obrigada a afastar-me quando sinto a minha mão queimar. 

  O corpo dele é eliminado pelas chamas, e com ele queima também a minha esperança.

  Os meus olhos inundam-se de lágrimas e o meu peito dói.

  Soluço, com dificuldade em respirar, ao mesmo tempo que as lágrimas descem pelas minhas bochechas. 

  O Jack morreu... Tudo o que tentei fazer para que ele sobrevivesse a isto foi por água a baixo...

— Agora nós... — a Andreza profere, com um sorriso satisfeito no rosto. 

****

Olá! Tudo bem? Suponho que a resposta seja um mais ou menos, ou um "vou-te matar, Marina" 😅

Hoje publiquei mais tarde porque, por razões óbvias, este capítulo foi mais complicado de escrever. 

Nem sei por onde começar ahah

A primeira parte correu super bem, mas depois não correu totalmente como era suposto... Pobre Jack... 🥺😢

O que acharam das descrições? Principalmente das lutas. Dei o meu melhor ahah

Comentem. Digam tudo e não escondam nada 😅

Agora vou fugir porque provavelmente têm pedras para me atirar. 

Em minha defesa, já deviam estar à espera... É o terceiro livro meu que lêem... 

Beijinhos e até ao próximo capítulo 🥰

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