➶ 𝗖𝗮𝗽𝗶𝘁𝘂𝗹𝗼 𝗩𝗜𝗜 ㅡ 𝗙𝗿𝗮𝗴𝗺𝗲𝗻𝘁𝗮𝗱𝗮𝘀
[Madrugada, Quinto Dia]
Pablo bateu os braços o máximo que podia, lutando para se manter acima da água. As ondas bruscas não paravam de sobrepuja-lo, puxando-o para baixo da água.
O pequeno barco estava em pedaços, madeira espalhada por todo mar, afundando de pouco em pouco. Ele tentava gritar, implorar por ajuda, mas temia que acabasse se afogando. Olhava em volta desesperado procurando pelos pais.
Os pés se moviam rápido, impedindo que afundasse. Algo que parecia ser o corpo de uma mulher estava boiando a alguns metros, apoiado a um dos bancos de madeira do barco, prestes a começar a afundar. Já o corpo do pai, não havia nem sinal.
A tempestade não parecia dar trégua, cada vez mais forte, mais estrondosa e mais temerosa. Os trovões retumbantes faziam tudo tremer enquanto relâmpagos eram disparados para todos os lados. E as ondas gigantescas, vindo diretamente em sua direção, quebravam com brutalidade, submergindo o que estivesse em volta.
Fragilizado pelo frio, e já não aguentando mais se manter acima das águas, Pablo sentiu o corpo perdendo as forças pouco a pouco. Seus membros cansados pararam de responder voluntariamente, permitindo que o garoto caísse para dentro da vastidão oceânica.
Os pesados se fecharam e as últimas reservas de oxigênio escaparam em suspiros fracos. Em seus ouvidos, um longo e ininterrupto zumbido lembrava que ainda estava vivo.
Então, arrancando Pablo de sua paralisia semi morto, alguém o puxou para fora da água. Um par de mãos agarrou um de seus braços e o içou para a superfície, jogando-o para dentro de um barco.
Ele tossiu, permitindo que toda a água dentro de seus pulmões fosse expelida. Respirou com certa dificuldade e rapidez. A cabeça doía como o início de uma enxaqueca à medida que sua visão entrava em foco e uma figura masculina, alta, de uns quarenta anos, o encarava.
ㅡ Eu sinto muito, garoto. ㅡ Disse o homem.
[Madrugada, Quinto Dia]
Maverick estava sentado escorado numa das paredes, os braços envolta dos joelhos. As costas doloridas não lhe permitia deitar, e a cabeça ainda latejava um pouco.
Seu olhar caído, e cansado, miravam Meredith, deitada ao lado da parede oposta, com as mãos em cima do corpo apertando firme o agulhão, enquanto olhava pra cima. Sua pele pálida estava empoeirada e um pouco amarela.
Sangue seco manchava a região ao redor da perfuração feita pela lança do invasor. Meredith havia pego a camiseta do tributo morto e a enrolou no ombro para estancar o sangramento.
O cadáver do garoto do Doze estava estirado bem na entrada do túnel escuro, Meredith o arrastou ali depois de uma crise de gritos. Um rastro vermelho se estendia do corpo até onde ocorreu a luta.
ㅡ Você o conhecia? ㅡ Indagou Maverick de repente, massageando a testa com a mão.
ㅡ Era um garoto rico do meu distrito. ㅡ Respondeu Meredith com indiferença.
ㅡ E existem pessoas ricas no doze? ㅡ Mave adotou um tom brincalhão, tentando mudar o clima da caverna. A garota virou o rosto pro seu lado e negou, indicando que não estavam afim de brincadeiras.
ㅡ Ele era um psicopata piromaníaco, filho do chefe dos pacificadores. Ele cometeu seu primeiro atentado bem na noite que invadi sua casa em busca de comidas caras e boas. ㅡ Meredith pigarreou. ㅡ Ateou fogo na casa inteira logo que me viu, queimando seus pais e irmãos vivos enquanto dormiam. Obviamente jogou a culpa em mim.
ㅡ Que desgraçado. ㅡ Mave respondeu vendo a garota concordar com a cabeça.
ㅡ Não tive o trabalho de me defender, depois daquela noite ele começou a atear fogo nas casas dos cidadãos praticamente uma vez na semana. Faz uns três meses isso. No dia que Snow anunciou como ocorreria a Colheita, ficou óbvio quem seria o garoto escolhido.
ㅡ Acho que foi uma boa escolha.
ㅡ Sim.
Os dois voltaram a se silenciar, escutando apenas o doce sim da água corrente acima deles. Então, depois de alguns minutos, Maverick disse.
ㅡ É difícil admitir, mas essa edição meio que fez bem pro país.
Meredith arqueou as sobrancelhas e esboçou um sorriso, parecendo confusa. Ela abriu a boca para falar, mas o garoto continuou sua linha de raciocínio.
ㅡ Mandar os maiores criminosos de cada distrito para se matar até que sobre um. Isso elimina vinte e três dos mais perigosos adolescentes de Panem.
ㅡ Mas aí é que está a jogada. O tema era que os distritos escolhessem seus representantes, não necessariamente os arruaceiros. Ter os perigosos como escolha foi um bônus. ㅡ Meredith soltou uma das mãos do agulhão e jogou o braço esticado pro lado. ㅡ Provavelmente mais uma jogada de Snow para fazer os cidadãos simpatizarem com os Jogos.
ㅡ É, faz bastante sentido.
ㅡ É óbvio que faz, fui eu quem falei. ㅡ Os dois se olharam e riram. ㅡ Qualquer coisa que eu diga é verdade.
ㅡ Ah, claro!
De repente, cortando o ar e interrompendo as risadas de ambos, algo ecoou. Um ruído rápido e característico, quase como uma onomatopeia, chegando até os ouvidos dos jovens.
ㅡ Você escutou o tic? ㅡ Indagou Meredith se levantando rapidamente, ainda segurando o agulhão.
ㅡ Mas é óbvio! ㅡ Maverick ficou de pé e correu até a garota quando esta pareceu se desequilibrar. ㅡ Não se levante tão rápido, doida. Tá querendo desmaiar, é?
ㅡ Cala a boca! Vamos sair daqui!
Os dois caminharam até o buraco no instante em que a água começou a despejar, banhando-os. Maverick abriu a boca, tomando o máximo que conseguia e matando sua sede, a garganta agradecendo por finalmente receber o desejado líquido.
Com um tremor, terra e pedras despencando do teto, o buraco começou a abrir, permitindo que ar fresco e a luz lunar entrassem. A parede desceu, formando a rampa de saída.
Os dois tributos se entreolharam e concordaram com a cabeça, sorrindo. Eles precisavam agir rápido, não demoraria muito pros bestantes saírem.
No instante em que Meredith começou a correr, Maverick, apesar das dores nas costas e no abdômen, segurou a mão da garota e correu pela rampa acima.
Os segundos pareceram se tornar horas, quanto mais corriam, mais parecia que não saiam do lugar. O mundo girava em câmera lenta à medida que os jovens, de mãos dadas, subiam em busca de sua liberdade.
Por fim, depois de três longos dias dentro daquela caverna, eles finalmente alcançaram o lado de fora. A brisa fresca fazia as flores farfalhar, banhadas pela lua alta no céu.
Meredith apertou a mão de Maverick, virando seu rosto para ele e sorrindo. Os dentes brilhantes reluzindo. Surpreendendo o garoto, ela tocou em seu rosto e selou seus lábios no dele, um beijo rápido.
ㅡ Seu presente por ter me feito companhia e não me deixado enlouquecer. ㅡ Disse a garota se afastando enquanto ria. Maverick permaneceu quieto, totalmente atônito e surpreso com aquilo. ㅡ A gente precisar sair daqui, agora!
Ainda em silêncio, tomado pelo choque da ação de Meredith, Maverick concordou no segundo que os latidos dos bestantes chegaram até seus ouvidos. A dupla apertou o passo e começou a correr para o mais longe da caverna ㅡ e das dezenas de bestantes que saiam dela.
[Madrugada, Quinta Dia]
Luke desviava dos galhos das árvores enquanto se distanciava de Saher. Depois de caminhar na chuva durante o dia anterior, conseguiram retornar ao local onde haviam montado acampamento, protegidos pelos buracos em volta.
Os dedos apertavam o cabo de metal do arco, a pele em contato com o material gélido lhe causando arrepios. A aljava estava presa nas costas, com todas as flechas. Após o canhão durante a noite anterior, restavam apenas seis tributos.
Muito provavelmente Lothaire estava a solta, enfurecido, cego pelo desejo de vingança, caçando qualquer um que entrasse na sua frente. Luke precisava dar um fim naquele arco ou Saher estaria em sério perigo.
A lua já começava a se esconder a medida que os raios solares tingiam o céu negro de rosa e laranja. Como na maioria das manhãs, a brisa fresca se iniciou, percorrendo toda a arena e derrubando algumas flores de suas árvores.
Após caminhar durante alguns minutos, cerca de vinte metros longe do acampamento, Luke parou procurando por alguma árvore que fosse mais grossa que as outras. Achando seu alvo, o garoto começou a escalar.
Com o corpo dolorido, um pequeno bônus da luta contra Lothaire na madrugada anterior, ele subia com certa dificuldade. Os membros todos estavam cansados e pesados, como se tivesse tijolos amarrados ao corpo. Por fim, alcançando os galhos mais finos e altos da árvore, ele enroscou a corda do arco e a aljava ali, fazendo o máximo para camuflá-los.
O sol nascente batendo em suas costas, Luke se virou e passou a admirar aquela bela arte feita pela natureza. A enorme bola de fogo subia devagar, em todo seu esplendor e glória, emanando calor e luz para todos aqueles que ainda estavam encolhidos na escuridão da noite.
O céu, cada vez mais colorido, refletia a luz nas centenas de flores, fazendo-as brilhar vivamente. O loiro sorriu sereno, um certo brilho de esperança no olhar. Talvez nem tudo no mundo fosse ruim.
Não teve pressa em descer, sabia que Saher estava segura enquanto repousava depois de um dia exaustivo. Sentando em um dos galhos, apenas observou aquele lindo fenômeno.
Com a infância e adolescência praticamente inteiras vivendo no centro urbano do Nove ㅡ assim como a grande maioria dos cidadãos do distrito ㅡ, o garoto nunca teve muito tempo ou oportunidades para ver como a natureza era magnífica em toda sua plenitude.
Estranhamente, as memórias do Nove trouxeram os rostos de seus pais. Ele não costumava pensar muito nos dois, sabia como se sentiam em relação a tudo que havia acontecido e preferia não causar dor para nenhum dos lados.
A cena do pai gritando com ele enquanto a mãe chorava de desgosto e tristeza já era um castigo suficiente que ele tinha que lembrar quase todos os dias.
Longos dez minutos se passaram e Luke permaneceu ali, sentado, sentindo o vento balançar seus cabelos enquanto permitia que o calor do sol banhasse todo seu ser.
Mas no primeiro ruído estranho ele se apressou em descer em alta velocidade.
Gritos ecoaram pelas árvores, enchendo a floresta com desespero e medo. Luke praticamente pulava de galho em galho até finalmente pousar no chão. Começou a correr na direção do acampamento temendo o que estava acontecendo.
Além dos gritos de Saher, nada mais era audível. Sua voz, aguda e fina, geralmente calma e tranquila, agora transmitia o mais puro horror.
Correndo o mais rápido que podia, e ignorando todos os sinais de exaustão de seu corpo, Luke instintivamente levou as mãos aos bolsos, pretendendo sacar suas foices. Só então lembrou que havia deixado as lâminas na mochila ao lado de Saher.
Mordeu o lábio inferior, cerrando os punhos e torcendo para que, o que quer que estava atacando a garota, não fosse tão habilidoso ou nem tivesse uma arma. Infelizmente, àquela altura do campeonato, era quase impossível.
No instante em que bateu os olhos em Saher, arqueou as sobrancelhas e diminuiu o ritmo de sua corrida. A garota estava sentada no chão, se arrastando para trás com medo e tremendo muito.
ㅡ Saher! O que ouve? ㅡ Luke se aproximou com cautela atraindo a atenção da garota.
Saher virou o rosto em sua direção com velocidade, os olhos vermelhos e trêmulos, brilhando com as lágrimas, cheios de temor e desespero. Ela tentou se levantar, cambaleando até os braços de Luke.
ㅡ Ela tá aqui! Ela tá aqui! ㅡ Berrou a garota com a voz embargada. Seu corpo inteiro tremia e, se não fosse pelo apoio do loiro, já teria caído. ㅡ Estão todos aqui! Eles querem me matar, Luke!
ㅡ Quem tá aqui, Saher? ㅡ Luke olhou em volta, franzindo a testa e analisando todo o redor com atenção. Além dele e da parceira, a floresta estava quieta e vazia.
ㅡ Todos eles! Eles querem me levar junto, Luke! Querem me matar!
Levantando o braço com dificuldade, Saher apontou na direção de uma árvore. Ela fungou, tentando conter as lágrimas.
ㅡ Magdalene está bem ali! Ela quer me matar, Luke!
ㅡ Saher, não tem ninguém ali. ㅡ Luke tentou acalmar a garota argumentando o óbvio, mas ela estava incontrolável, tomada pelo medo.
ㅡ É claro que ela tá! ㅡ Berrou se soltando dos braços de Luke e caindo no chão. ㅡ Claire e o garoto tatuado também! Por que não acredita em mim?
As palavras da garota atingiram o mais íntimo e profundo da alma de Luke. Ele suspirou calmamente enquanto Saher rastejava desengonçada no chão, para longe da árvore que julgava ser Magdalene e os outros dois tributos.
Caminhando com certa urgência, o loiro se aproximou da mochila e pode sacar suas foices. Agindo rápido, cravou cada uma das lâminas na árvore, torcendo para que tivesse acertado Magdalene ou qualquer um dos outros dois que aterrorizavam a mente da parceira.
ㅡ Me solta! Me solta! ㅡ Saher deitou no chão, movendo os braços e pernas com agressividade para cima, chutando e socando o ar. O desespero tomou conta de seu ser enquanto ela tentava escapar da armadilha de sua própria cabeça.
Correndo, Luke arrancou quem é que fosse de cima da garota e jogou o ser imaginário no chão, fincando as foices e matando.
Finalmente, Saber se acalmou. As lágrimas ainda escorriam de seus olhos vermelhos e o rosto estava todo molhado. Os cabelos bagunçados e cobertos de terra, as roupas amassadas e sujas. Ela fungou fundo e se sentou.
Com delicadeza, Luke ajoelhou na frente da garota, tentando sorrir com ternura para ela. Levou uma das mãos até às bochechas macias e levemente rosadas, limpando as lágrimas remanescentes.
ㅡ Ei! ㅡ Chamou, a voz baixa e tranquila. ㅡ Vai ficar tudo bem!
ㅡ Eles vieram me buscar, queriam me levar e me matar. ㅡ Murmurou a garota, a voz cortada e quase inaudível.
ㅡ Ninguém mais vai te machucar, Saher. Eu prometo! ㅡ Luke controlou a própria respiração e permitiu que a garota abraçasse seu peito desnudo, confortando-a.
A arena era o mais cruel método de tortura. Todos ali dentro estavam sentindo a dor na própria pele. Luke desejou poder proteger Saher de todo o mal do mundo. Proteger seu ser gentil e dócil. Proteger sua mente, já muito abalada e fragmentada.
Os gritos de Saher silenciaram, e seu choro foi ficando fraco até parar. Ambos ficaram quietos, se fundindo ao silêncio absoluto da floresta.
[Manhã, Quinto Dia]
Pablo fora deixado sozinho no muquifo que chamava de casa com pouca comida na dispensa, o velho Aparição ㅡ o homem que o salvou do naufrágio do barco dos pais ㅡ estava fora a quase dois dias. O garoto de doze anos sabia onde o velho guardava os trocados que desejava que fossem encontrados para emergências, mas não havia o suficiente para mais do que dois pães do mercado, então ele decidiu que não compraria nada. Talvez fosse melhor caçar alguma ave na praia, mesmo odiando ter que ir até lá.
Uma tempestade ao longe agitava o mar, fazendo as ondas romperem mais violentas na areia e nas pedras. O vento vindo do além das nuvens era frio e cortante, eriçando os pelos de sua nuca a cada passo descalço. Não tinha sido a melhor das suas ideias, não haviam pássaros por perto de casa, fazendo com que Pablo caminhasse mais longe, brincando com uma pequena faca entre os dedos da mão direita.
ㅡ Achar uma ave, mirar, matar, voltar para casa. ㅡ Repetia baixinho, tentando manter a calma. ㅡ Mantendo distância da água, nada vai...
ㅡ Socorro! ㅡ Alguém gritou sobre o barulho das ondas.
Lentamente, Pablo virou o pescoço para o mar e só viu um raio cortar a imensidão enegrecida sobre as cristas das ondas cada vez mais violentas. O estrondo do raio não demorou muito para ecoar, assustando o garoto.
ㅡ Socorro! ㅡ Escutou novamente, uma voz tão desesperada e tão adentro do mar.
Quando olhou ao redor, o menino não viu nada. Não havia ninguém na praia que pudesse ajudar quem quer que estivesse gritando, só ele estava escutando.
ㅡ Mas que desgraça. ㅡ Resmungou caminhando receoso para próximo da areia molhada pelo mar. ㅡ Quem quer que seja, provavelmente vai morrer.
Prestes a se virar e sair logo dali, Pablo avistou ao longe um vulto dourado emergindo da água. Não parecia tão longe da praia, mas provavelmente não estava mais na parte mais rasa. Mesmo de longe, distinguiu uma garota já sem forças para gritar, suplicando apenas com o movimento dos lábios por ajuda.
O que o moveu a dar mais um passo, que não o deixou recuar quando a água quase derrubou-o pela força, não havia como ser explicado. Talvez fosse o sentimento de que ali estava alguém precisando de ajuda, que morreria afogado assim como seus pais se ninguém o salvasse. E se havia uma coisa em que Pablo sempre pensava era em como seus pais poderiam ter sido salvos se alguém estivesse por perto para isso.
Então ele mergulhou na água gelada, sentindo o corpo todo arrepiar. A areia escapava por seus pés e dificultava sua jornada até a menina. Tomado por uma súbita onda de coragem, e sem a mínima noção de como nadar, Pablo mergulhou batendo os braços e pernas. As ondas quebravam forte e estrondosas, fazendo com que água entrasse em seus pulmões.
A força da maré recuante o puxou para próximo da loira, já desacordada. Agarrando as mãos dela, Pablo usou o máximo de força que conseguia para colocar sua cabeça para fora da água. Como tudo que vai, volta, a água que antes havia recuado se voltou contra ele numa onda imensa, quebrando próximo a dupla e o lançando na praia.
Seus olhos se fecharam enquanto sentia o ar escapar dos pulmões. Antes de perder totalmente a consciência, agarrou uma das mãos da menina o mais forte possível.
Acordou alguns minutos depois, o corpo estirado no chão, coberto de areia.
Ao seu lado, uma garota que aparentava ter aproximadamente a mesma idade que ele, encontrava-se desmaiada. A tempestade acabou afastando-se mar adentro e com os últimos raios de sol daquela tarde, Pablo conseguia ver nitidamente os cabelos loiros da menina, a areia brilhando entre os fios como pequenas pepitas de ouro, as maçãs de seu rosto eram rechonchudas e saltadas de um jeito angelical, mas sua pele estava pálida demais.
ㅡ Acorda! ㅡ Gritou ao cutucá-la, sentindo o corpo da menina gelada. ㅡ Ei! Você tá viva?
Desesperado, começou a chacoalhar a garota, chamando por ela, implorando que não tivesse morrido porque ele não havia sido rápido o suficiente para salvá-la.
Então seus olhos se abriram de repente, tão azuis quanto o céu e ela começou a tossir toda a água do mar que havia engolido.
ㅡ Quem é você?! ㅡ Ela gritou, arrastando-se para longe de Pablo.
O garoto bufou indignado.
ㅡ Eu salvo você e é assim que me agradece?
ㅡ Ah, por favor não espere que eu te dê um beijo como forma de demonstrar minha eterna gratidão. ㅡ Ela se levantou, tentando se livrar da areia grudada nas roupas molhadas.
ㅡ Quem disse que eu quero beijar uma garota feia como você? Se lasca ai, sua sem graça. ㅡ Exclamou antes de ficar de pé e sair andando na direção que esperava ser a de casa.
ㅡ Ei, pra onde você vai? ㅡ Questionou a garota, seguindo-o apressada.
ㅡ Pra minha casa. ㅡ Pablo respondeu ríspido.
ㅡ Posso ir junto?
ㅡ Não.
Ela bufou, mas continuou seguindo o menino que a salvara em silêncio. Até que Pablo estressou-se.
ㅡ Por que cê ainda tá me seguindo?! Nem sabe meu nome.
ㅡ Esperava que me dissesse, assim como esperava que me dissesse que distrito é esse.
ㅡ Não é óbvio? ㅡ Ele grunhiu, parando de andar bruscamente e virou-se para ela com os braços abertos. ㅡ Mar, praia, cheiro de peixe e maresia pra todo lado... Esse é o Quatro.
ㅡ Ah, legal...
ㅡ Legal? É, pode ser. Mas você não me parece ser daqui.
A garota olhou em volta, visivelmente confusa. Suspirou, tirando os fios rebeldes que insistiam em cair sobre seu rosto.
ㅡ O meu nome é Alina Luthor.
ㅡ Pablo. ㅡ Pablo coçou a cabeça, analisando Alina. ㅡ Você parece bem perdidinha.
ㅡ Minha memória tá confusa, não consigo me lembrar de muita coisa além do meu nome...
ㅡ Entendi.
Os dois continuaram caminhando em silêncio e sem rumo até Pablo localizar onde estavam e pegar uma trilha por entre os mangues para chegar em casa. Surpreendentemente, encontrando Aparição bebendo na varanda sem teto do barraco.
O velho ficou assustado quando viu Alina e pareceu transtornado ou compadecido com a história da menina. Permitiu que a garota ficasse com eles por um tempo, até que ela se lembrasse de onde veio. Os dias viraram semanas, as semanas viraram meses e os meses viraram anos.
Alina tinha manias requintadas demais para o gosto de Pablo, os dois viviam brigando, até finalmente se tornarem amigos e a fase de estranhamento passar. Eles se tornaram irmãos, um cuidando e apoiando o outro, até seus sentimentos irem mais além. Ano após ano torcendo para que Pablo não fosse pego pela colheita, enquanto Alina era um fantasma vagando pelo quarto distrito.
Ninguém sabia da existência dela, com exceção de Aparição, que desde a noite em que Alina chegou mal encostava a boca em álcool, Pablo e Hanna, a melhor amiga do garoto, que não gostava nenhum pouco de Alina.
E então chegou o dia em que os sentimentos de Pablo pela garota que encontrara na praia foram intensos demais para continuarem sendo reprimidos. Era o aniversário de quinze anos dela e Alina havia costurado com muito custo um vestido simples para a ocasião. Aparição juntou dinheiro para comprar um bolo a ela e Pablo lhe fez um colar de conchas azuis, para combinar com os belos olhos da garota.
ㅡ Isso é... É pra você ㅡ Ele disse sem jeito, entregando o colar para ela.
Alina encarou a peça e depois olhou fundo nos olhos de Pablo, percebendo então que os sentimentos de ambos eram recíprocos. E mesmo não sendo muito fã de conchas, muito menos de colares, a jovem reconheceu que aquele simples gesto é que era seu verdadeiro tesouro.
E não houve um só dia desde então que um não amou o outro intensamente.
[Manhã, Quinto Dia]
Lothaire acordou com os primeiros raios solares matinais, abrindo os olhos de supetão. Permaneceu alguns segundos deitado, apenas encarando o vasto céu azul, limpo e acolhedor.
A mente bagunçada não parava de recordar todas as manhãs em que estivera com a irmã, os sorrisos doce e a irritação matinal, enquanto uma parte mais sombria e escondida de seu cérebro implorava para que ele saísse à caça. Nenhum dos outros tributos poderiam ficar vivos, se sua serena e esplêndida Magdalene não ganhou, ninguém mais ganharia.
Ele ficou de pé, indo até a Cornucópia e adentrando a estrutura de metal. O dourado refletia com a luz do sol, iluminando todo o descampado.
Observando as diversas prateleiras de suprimentos, a maioria ainda cheias, o loiro pegou uma garrafa de água e algumas maçãs. Na ala de armas, cada uma das lâminas usadas pelos tributos caídos fora posicionada num dos suportes, com o nome de cada um deles escrito em sangue em pedaços de papel higiênico.
As facas de Magdalene estavam no suporte mais alto, gloriosas. Logo embaixo vinham o tridente de Hanna, os sais de Sophie, o canivete de Valerian e a alabarda de Juniper, tanto a ponta de lança quanto a lâmina de machado estavam manchadas de sangue.
O martelo de guerra usado para derrubar June, posto ao lado de um facão, estava identificado com os nomes de Kayla e Franky, seguidos de um ponto de interrogação entre parênteses. Ao lado, as quatro facas de Noah reluziam. As machadinhas usadas pelos tributos do Sete eram as últimas armas na parede.
Alguns espaços vazios possuíam pedaços de papel, identificando e reservando-as. Ao lado das dos Carreiristas, o arpão de Pablo já tinha seu lugar reservado, assim como as foices de Luke ao lado do martelo de Kayla. Os restante dos tributos Lothaire não tinha conhecimento do que usavam, significando que o detentor das flechas que mataram sua irmã ainda permanecia um mistério.
Saindo da Cornucópia, já tendo tomado seu café da manhã, caminhou calmamente até as árvores de cerejeiras. Esticou os braços, sem fazer muito esforço, e recolheu algumas flores.
Voltou para perto da Cornucópia, contornando o grande chifre e se deparando com o corpo de Magdalene, deitado graciosamente no chão. Lothaire colocou alguma das flores sobre seu cabelo, ignorando o odor que começava a exalar do cadáver.
Próximo a irmã, todos os cadáveres dos outros tributos mortos estavam ali, salvo algumas exceções do qual o garoto não conseguiu encontrar. Posicionados de acordo com os distritos, as meninas na frente dos meninos quando era o caso. Dos dezessete mortos, já excluindo Lene, Lothaire só não encontrou o garoto do Doze e a dupla do Dez.
Sempre parando na frente de cada um dos corpos, o loiro jogou uma flor para cada tributo, rezando para que suas almas encontrassem o descanso eterno. A maioria dos mortos exalavam odores fortes, que ardiam o nariz como pimenta, as peles mutiladas e manchadas de sangue, enquanto outros pareciam perfeitos, com exceção do pescoço quebrado.
O sol, em sua calma subida, começava a despejar seu brilho nos tributos, iluminando aqueles cadáveres e todo o resto em volta de Lothaire. O loiro levantou o olhar para a floresta, que gradualmente recebia a luz.
As flores rosas passaram a refletir o brilho, e vários buracos de luz surgiram entre as árvores, iluminando os bestantes que corriam e latiam alto, vindo diretamente na direção de Lothaire.
Arregalando os olhos, tendo sua apreciada calmaria interrompida, o garoto cerrou os punhos correndo para dentro da Cornucópia e agarrando uma das várias armas jogadas ao chão, embaixo da parede das armas dos tributos caídos.
Os uivos e latidos se aproximavam cada vez mais, semelhantes a uma enxurrada de abelhas atrás do responsável por atacar sua colmeia. Os bestantes pisavam forte, fazendo a terra tremer.
Lothaire correu para fora, empunhando um machado de dois gumes. Ele girou a arma nas mãos e acertou o primeiro cachorro no instante em que a fera saltou sobre o corpo dos tributos mortos.
Latindo alto enquanto o sangue jorrava, o cachorro foi arremessado para longe, caindo morto no chão, seu pescoço quase arrancado do corpo. Voltando sua atenção para os outros bestantes, Lothaire constatou que eram cerca de cinco.
Os três primeiros saltaram sobre o garoto, as presas a mostra, salivando muito e com as garras apontadas. Lothaire desviou do primeiro, chutando-o para trás, e acertou o machado no segundo, deixando a arma escapar por seus dedos.
O terceiro bestante pegou seu oponente desprevenido, cravando as presas na pele grossa do loiro. Gritando de dor, sangue escorrendo por todo o braço à medida que o cachorro mordia mais, Lothaire pegou o animal pelo pescoço e o arrancou à força.
A pele de seus bíceps ficou em carne viva, jorrando sangue e pulsando em vermelho ardente. Tomado por sua súbita fúria, o garoto lançou o bestante em seus braços no outro que havia chutado antes. Arrancou o machado do chão e partiu ao meio ambas as feras.
Voltando o corpo para trás, arregalou os olhos ao ver que os dois bestantes que não o atacaram partiram diretamente para os cadáveres enfileirados. Um deles mordia ferozmente o rosto de Hanna enquanto o último corria para cima de Magdalene.
ㅡ Não! ㅡ Berrou Lothaire, a voz saindo como um trovão estrondoso em plena insanidade.
Ele correu atrás do animal que ousou violar o magnífico templo que era o corpo de sua irmã. Ignorando completamente a dor no braço, possesso de raiva e ódio, pulou em cima do bestante e o comprimiu contra o chão antes que a fera sequer chegasse em Magdalene.
Agindo rápido, os braços na acostumados, pegou no pescoço do bicho e o girou em cento e oitenta graus, quebrando-o. Por fim, deu cabo do que atacava Hanna.
Com o embate tendo enfim acabado, o loiro se jogou no chão, sentando na grama com as pernas esticadas, logo ao lado do corpo da irmã. Ele passou a mão pelo rosto dela, acariciando-a.
ㅡ Não se preocupe, maninha. Ninguém nunca mais vai te machucar. ㅡ Disse de forma calma enquanto um sorriso se abria no rosto de Lene.
A visão ficando turva, muito provavelmente pela hemorragia em seu braço junto a dor da mordida. Lothaire se levantou capengando, cambaleando para dentro da Cornucópia em busca de medicamentos.
[Tarde, Quinto Dia]
Saher encarava o mais absoluto nada, seus olhos perdidos semelhantes aos de um peixe morto, confusa na imensidão de sua mente. Memórias iam e viam aos montes, confundindo-a sobre coisas que tinham acontecido ou não.
Por diversas vezes chegou a pensar que os pais estavam ali, com ela. Mas tudo não passava de apenas mais uma ilusão de sua própria cabeça. Luke, que não saiu do lado dela desde a manhã, estava limpando um esquilo para eles comerem.
O corpo do garoto estava repleto de manchas roxas e até mesmo alguns cortes esporádicos, resultado da luta contra Lothaire. Saher pegou sua mochila e a abriu, pegando o pote de pomada recebido por Pablo. Ela destampou, sentindo o cheiro de hortelã emanar do creme.
— Vem aqui. — Chamou Saher atraindo a atenção do garoto.
Ele levantou o rosto, limpando a testa molhada de suor e jogando a franja empapada para trás. As mãos, sujas de sangue e pelo de esquilo. Luke levou seu olhar pro pote na mão da garota e suspirou.
— Não preciso disso, Saher. — Disse ele voltando a limpar o esquilo. Já estava terminando e planejava assá-lo para o almoço. — Guarde-o para ocasiões piores. Podemos acabar nos machucando e...
— Vem logo aqui. — Saher o interrompeu, puxando-o pelo braço forte. — Temos que usar enquanto estamos vivos. Podemos acabar morrendo no próximo combate, Luke.
Saher não esperou obter resposta. Ela pegou um pouco do creme viscoso de dentro do pote, sentindo a textura gelada, e começou a esfregar os dedos na pele de Luke. O garoto grunhiu cada vez que o toque macio de Saher apertava com delicadeza os cortes e as manchas roxas em seu corpo.
— O que fez com o arco? — Indagou Saher espalhando a pomada nas costas do loiro.
— Escondi numa árvore, alto o suficiente para que ninguém o ache. — Respondeu Luke terminando de limpar o esquilo.
— Lothaire não é burro, Luke. — Saher suspirou com pesar. — Logo ele vai juntar as peças do quebra cabeça e perceber que eu atirei em Magdalene.
— Você não fez isso.
— Não precisa me convencer do contrário, Luke. — A garota terminou de passar a pomada e fechou o pote. Luke se virou para ela e seus olhares se cruzaram. — Minha mente insiste em pregar peças em mim, mas não estou sem memória.
— A culpa não foi sua! — Argumentou Luke pegando nas mãos dela enquanto o olhar de Saher estava carregado de culpa e certeza. — Você apenas se assustou, não foi por vontade própria.
— Luke... — Saher parou de falar de repente, a boca aberta enquanto parecia pensar. Por fim, ela abaixou o olhar.
As memórias começaram a passar como um filme por sua mente. Todas as boas lembranças com seus pais, os dias divertidos e cheios de trabalho e ensinamentos com sua avó na enorme fazenda da família. Tudo era tão mais fácil.
Então, atraindo sua atenção, ela levantou a cabeça olhando fixamente para um ponto atrás de Luke. Seus olhos se arregalaram e perderam o costumeiro brilho de esperança, sendo substituído por medo e temor.
— Ei, tá tudo bem? — Luke perguntou se virando para trás e constatando que não havia nada. Ele apertou mais as mãos da garota, tentando lhe passar conforto e segurança.
— Tá sim. — Saher engoliu em seco enquanto algumas lágrimas involuntárias brotaram em seus olhos. Ela respirou fundo, tentando dizer à própria mente que a figura de Magdalene era apenas uma ilusão e que não deveria se deixar levar pelo medo.
Entretanto, quanto mais tempo passava, mais Magdalene se aproximava, caminhando tranquilamente com facas em mãos. O corpo da loira estava todo ensanguentado e perfurado, uma flecha ainda atravessada em sua perna. Atrás dela, o Tatuado, juntamente com Claire, vinham sorrindo maquealévicos.
— São eles de novo, Luke. — Disse Saher num sussurro tentando conter as lágrimas.
— Ei! Olhe pra mim! Apenas para mim! — Luke soltou uma das mãos da garota, tocando seu rosto macio e delicado, atraindo o olhar dela para si. — Eles não podem te machucar, tá entendendo? Não podem!
— Eles não podem... — Ela murmurou começando a ofegar.
Tentava desesperadamente pensar em coisas boas, lembranças felizes para afastar a armadilha em que estava caindo. Os três tributos não eram reais, eram apenas figuras feitas inteiramente para assustá-la e amedrontá-la. Saher sentiu algumas lágrimas escorrerem por sua bochecha enquanto olhava no fundo dos olhos de Luke, a visão periférica ainda observando a aproximação das ilusões.
— O que você fez? — Indagou ela de repente, percebendo que nunca soube o motivo pelo qual Luke fora escolhido. Agarrou-se inteiramente na pergunta, desejando ao máximo que a resposta pudesse distrair sua mente. — Por que te escolheram como tributo?
— Você realmente não sabe? — Luke indagou, os olhos caindo e tomados por um certo constrangimento.
— Eu morava nas fazendas, Luke. Não sabia quase nada do que ocorria no centro urbano do distrito.
Cada vez mais Magdalene se aproximava, um sorriso mórbido estampando seu belo rosto, um fio de sangue escorrendo pelo canto dos lábios. Atrás dela, os outros dois gargalhavam com escárnio.
— O que você fez, Luke? — A voz saiu embargada e carregada de medo. Seus olhos começaram a tremer e seus batimentos aceleraram.
— Isso não vai te ajudar agora. — O garoto respondeu com tristeza acariciando os cabelos dela com a mão livre.
Os três tributos começaram a correr, seus olhos pintados de preto e as íris em vermelho vivo, os dentes transformados em presas afiadas manchadas de sangue. O Tatuado ainda tinha a faca cravada em sua testa.
— O que você fez, Luke? — Saher indagou quase gritando, começando a se levantar enquanto Luke a impedia. O corpo todo tremia.
— Sua avó, me conte mais sobre ela. Fale sobre...
Aquele foi o estopim. Saher gritou alto no instante em que os jovens mortos alcançaram Luke. Ela ficou de pé, se soltando da mão do loiro, e passou a correr desesperada para o mais longe possível. Lágrimas escorriam como uma cachoeira, descendo por suas bochechas vermelhas e deixando um leve rastro molhado na relva.
Tudo pareceu ocorrer em câmera lenta. As árvores, que deviam ser apenas um borrão rosa e marrom, passavam a uma velocidade nula. Saher sentiu como se não conseguisse sair do lugar, pisando firme. Escutou a voz de Luke em algum lugar, mas seus ouvidos já não conseguiam distinguir mais nada além do ininterrupto zumbido.
Atrás dela, Magdalene corria arremessando suas facas tingidas de sangue. As lâminas infinitas cortavam o ar mais rápido que a luz e passavam rente ao rosto da garota, sempre acertando uma das cerejeiras.
As pernas já não obedeciam mais os comandos de Saher, sem parar de correr. Seu corpo todo, tomado pelo mais puro medo, não parecia mais uma perfeita máquina trabalhando em sintonia e conjunto, mas peças de diferentes quebra-cabeças operando por si só.
Já não sabia onde estava, nem quanto havia ocorrido, mas não parecia dar sinais de que iria parar. Corria em silêncio, mal conseguindo respirar, tremendo e temendo que alguém a escutasse. Seus olhos logos perceberam que a paisagem à frente mudou de uma infinidade de árvores rosas para uma terra seca e árida, recheada de areia e pedras.
Por mais que algo em seu cérebro lhe dissesse para parar, a intuição gritando que havia algo de errado com aquela súbita mudança de terreno, Saher ainda corria sempre em frente, as facas de Magdalene voando por todo lado. Quanto mais se aproximava daquela nova paisagem, mais sabia que algo de errado estava acontecendo.
Então, como se alguém tivesse puxado o freio de mão, tudo parou. Saher bateu com tudo em alguém, um corpo masculino, quando estava prestes a atravessar a fronteira dos biomas. Caiu no chão, sentada, vendo o garoto ser arremessado para dentro da terra árida.
A visão enegrecida, um bônus por ter batido a cabeça diretamente no queixo do tributo, não permitia que ela enxergasse quem era. Não soube de onde ele tinha vindo e nem quando havia aparecido em sua frente, mas sabia que algo muito ruim estava prestes a acontecer.
[Tarde, Quinto Dia]
Meredith e Maverick devoravam o esquilo mais delicioso de suas vidas inteiras. Depois de dias apenas comendo as pétalas das flores de cerejeiras, a carne do animal era o maior banquete que já tinham provado, melhor que qualquer doce ou comida da Capital.
Saindo correndo da caverna, escalando as árvores mais próximas assim que os primeiros bestantes surgiram, permaneceram lá enquanto todos os seis cachorros correram na direção do que julgaram ser a Cornucópia. A dupla esperou a rampa ser fechada para descerem, bebendo toda a água que conseguiram tomando cuidado para não cair dentro do lago.
Passaram praticamente o dia todo em silêncio, caçando qualquer animal que pudessem comer. Meredith não havia dito mais nada depois do beijo, não tinha o que dizer, e Maverick passou todo aquele tempo com uma expressão de angústia na cara, por vezes trocando para decepção ou mágoa. A única vez que seus olhos brilharam de alegria naquele dia foi quando começaram a comer o esquilo.
— É sério isso? — Indagou o garoto de repente, terminando de engolir um pedaço da coxa do esquilo. A fogueira à frente deles lançava sua fumaça ao céu. — Você me beija e depois passa a manhã inteira sem falar mais nada?!
— Eu tenho que dizer alguma coisa? Achei que fosse o que você queria. — Respondeu indiferente, levanto os olhos pro rapaz. O corpo, antes manchado de sangue, agora estava limpo e exibia os diversos cortes feitos pelo bestante.
— E era! — Disse Maverick. — Mas não daquele jeito, do nada. E outra, você não disse mais nada, parece que não sentiu nada!
— Mas é justamente isso, Maverick! — Meredith começou a se exaltar, deixando seu pedaço de carne cair no chão. — Todas as várias e várias vezes em que te recusei naquela caverna era porque eu não sentia nada, e ainda não sinto!
As palavras da garota, gritadas, atingiram o peito de Maverick como a ponta fria de uma lança. Ele fungou, cerrando os punhos.
— Então por que me beijou, Meredith? — Indagou ele com a voz fria, carregada de mágoa.
— Sinceramente, nem eu mesma sei. — A garota respondeu num tom mais ameno, percebendo que fora muito grossa e havia magoado o mais íntimo e profundo de Maverick.
Por mais que odiasse admitir, se importava demais com o garoto para o ver triste, os dias naquela caverna transformaram seu sentimento de ódio em uma espécie de irmandade. Mas, acima de tudo, sabia que a culpa de suas palavras era inteiramente da criação chula e porca que recebera do maldito ser humano que haia lhe dado a luz.
— Olha, desculpas. Eu não queria dizer isso. Eu gosto muito de você, mas não da forma que...
— Deveríamos ter nos separado quando saímos da caverna. — Mave a interrompeu, ficando de pé.
— O que? — Mere perguntou com a voz carregada de indignação.
— Foi um erro termos continuado juntos. — Maverick não disse mais nada, apenas pegou seu facão que jazia no chão e o guardou no bolso, dando as costas para Meredith e começando a caminhar.
— Onde você vai? — Mere se levantou com um pulo, agarrando o agulhão e pronta pra seguir o garoto.
— Vou até o lago beber água, e quem sabe eu não sumo de vez da sua vida! — Esbravejou ele.
— O lago nem fica nessa direção, idiota!
— Só cala a boca, Meredith!
Maverick ignorou os berros e avisos da garota e continuou sua caminhada, passando a correr logo que percebeu que ela o seguia.
Com passos rápidos, Meredith tentava a todo custo alcançar o garoto. Eles não poderiam se separar agora, depois de terem chegado tão longe juntos. Ela ainda tinha que o usar para se livrar do resto dos tributos até que alcançasse o topo.
Por mais que tentasse enganar seu cérebro, e o coração, com palavras egoístas e planos mal elaborados, ela sabia que o verdadeiro motivo de estar correndo atrás de Maverick era porque se importava demais com ele para apenas o deixar ir.
Nunca amou ninguém tão intensamente, desde a morte do irmão, quanto amava aquele garoto. Mesmo que seus sentimentos não correspondessem aos dele, ainda o desejava por perto, para que sua voz a irritasse e a lembrasse de que valia a pena viver, para que não ficasse sozinha naquela vastidão da arena e enlouquecesse.
Sem perceber, os dois começaram a correr em uma grande velocidade, as árvores se tornando borrões rosados, o vento batendo em seus rostos e arrancando algumas lágrimas de Meredith, talvez de Maverick também. Ela tentava gritar, pedir para ele parar, mas a angústia travada em sua garganta impedia que som algum saísse de sua boca.
A paisagem foi gradativamente descendo, perdendo o amontoado de árvores à medida que as cerejeiras se tornavam esporádicas. Mais a frente, Meredith pode avistar um terreno árido e seco, sem qualquer tipo de vegetação, bem na direção de onde Mave estava correndo. Além disso, algo se aproximava rapidamente sem que o garoto visse.
— Era melhor ter me matado dentro daquela caverna! — Berrou Maverick no segundo em que parou de correr, virando o corpo para Meredith rente a fronteira dos terrenos.
Ela tentou gritar, falar para ele tomar cuidado e desviar, mas seu aviso fora interrompido no instante em que Maverick berrou, sendo atingido em cheio pela garota que vinha correndo em sua direção. Ele foi lançado para dentro da terra árida, cambaleando uns quatro metros para dentro e caindo no chão em cima do próprio pé.
Maverick berrou de dor enquanto tentava se levantar, o pé direito parecia torcido, ou até quebrado. Seu corpo estava coberto de poeira e sangue.
De repente, segundos antes de Meredith atravessar a fronteira para ajudá-lo, os olhares arregalados de ambos se cruzaram uma última vez.
Flechas foram disparadas do chão, parecendo sair magicamente do terreno rochoso, indo diretamente ao céu e acertando Maverick no caminho. Ele berrou de dor enquanto o corpo era perfurado e atravessado dezenas de vezes, uma poça de sangue se formando em volta dele.
Por fim, as flechas cessaram juntamente aos seus lamúrios, levando consigo o último vestígio de vida dentro do garoto.
Canhão.
Meredith sentiu a superfície metálica e gélida do agulhão ao pressionar seus dedos contra a lâmina, permitindo que algumas lágrimas escorressem por seu rosto. Ela observou o corpo de Maverick por alguns segundos antes de piscar e virar para a garota que o empurrou.
— Não faça isso! — Escutou alguém gritar. Levantando o rosto, avistou um garoto loiro correndo na direção das duas, foices em suas mãos.
Mas ela já não se importava com mais nada. Novamente, havia perdido uma pessoa que amava. Haviam tirado dela as duas mais pessoas mais importantes e que mais amou em toda sua vida, despedaçando por completo seu coração.
Entretanto, dessa vez haveria vingança. Dessa vez o assassino estava bem em sua frente. Dessa vez haveria retaliação.
A garota, ainda sentada no chão, com o olhar trêmulo e soluçando, chorava enquanto seus olhos iam de Meredith para Maverick e de Maverick para Meredith. Ela abriu a boca para falar, mas Mere agiu mais rápido.
Se aproximando e esticando os braços, Meredith usou o agulhão para perfurar a pele da garota, a vendo se engasgar com o próprio sangue enquanto atravessava seu coração com a lâmina fria.
— Saher, não! — O loiro berrou, sua voz ecoando por toda a arena e fazendo os pássaros nas árvores mais próximas voarem. Lágrimas caiam aos montes de seus olhos vermelhos e tomados por fúria.
Meredith piscou novamente, cessando as lágrimas em seu olhar e soltando o agulhão. Saher caiu para trás, o brilho em seu olhar sumindo permanentemente.
Canhão.
Novamente, tudo aconteceu muito rápido. Em questão de segundos, Meredith viu algo sendo lançado em sua direção, mas não se importou em desviar. Sentiu o impacto dolorido da foice gelada acertando sua barriga, caindo de joelhos no chão.
Arrancou a arma de seu corpo, colocando as mãos sobre o ferimento e as banhando em sangue. Sua visão começou a enegrecer cada vez mais que o loiro se aproximava. Tudo ficou quieto, um zumbido parecido com o de um mosquito tomou conta de seus ouvidos. Ela suspirou, cansada de toda sua vida.
Fechou os olhos no instante em que a foice do garoto perfurou sua cabeça, desejando poder se reencontrar com Maverick e com seu irmão. Então, tudo ficou escuro, seu coração foi parando e sua respiração cessou.
Sentiu o corpo cair de bruços no chão, o sangue escorrendo para fora da cabeça. Por fim, permitindo que sua vida se esvaísse por completo, o zumbido não chegou mais a seus ouvidos.
Canhão.
[Tarde, Quinto Dia]
Pablo acordou de repente, os três canhões seguidos arrancando-o de seus pesadelos — ou lembranças — e o fazendo ficar de guarda. Ele agarrou o arpão, sentindo o sol na pele desnuda, e olhou em volta com os olhos ainda embaçados. A floresta parecia calma, tranquila demais para um terreno de chacina.
Se sua mente não estivesse pregando peças em si, três pessoas tinham acabado de morrer. Três tributos a menos, apenas três vivos. Pablo não sabia quem eram os outros dois, e não estava com a mínima vontade de saber.
Na verdade, não tinha nem mesmo vontade de viver. Desde a morte de Alina, viveu apenas para vingá-la. Com a entrada nos Jogos, matar Hanna passou a ser seu objetivo. Agora, sozinho naquela arena, tomado pelo tédio, continuar vivo não parecia mais valer a pena. E seus sonhos apenas o fazia crer mais nessa ideia.
Depois de praticamente passar o quarto dia inteiro dormindo, cansado demais de toda sua pobre vida, Pablo foi tomado pela enorme depressão que o acometeu quando sua amada partiu. A vida não tinha mais sentido, não tinha mais um objetivo pelo qual viver e tentar encontrar uma falsa felicidade. Nunca mais seria feliz de verdade, não sem Alina.
Por mais que quisesse ir de encontro com a morte, sabia que não deveria acabar assim. Sabia que o suicidio não seria uma forma digna de morrer, não por ele, mas por Alina. A garota jamais aprovaria uma escolha dessas e, por mais que ela não estivesse mais presente, ainda levava seus ideais consigo.
Ele não poderia apenas morrer. Sua triste e miserável vida não poderia chegar ao fim da maneira mais fácil, nada nunca fora fácil para Pablo. Se realmente quisesse morrer, precisava valer a pena.
Talvez deveria procurar Saher e Luke, se algum dos dois ainda estiver vivo, seria a forma perfeita de morrer, dando a vida para consagrar-os campeões. Mas não sabia onde estavam, nem mesmo se ainda viviam. A escolha mais óbvia parecia ser procurar Lothaire e entrar num combate até a morte com ele, matando os dois. Sabia que muito provavelmente o loiro era o tributo com mais chances de ainda estar vivo.
Então, atraindo Pablo de volta a realidade, ecoando por toda a arena, uma voz masculina falou alto. Era Lucky Flickerman. O apresentador parecia animado e um tanto quanto ansioso.
— Estou tão feliz! — O homem falava alto, sua voz ecoando cheia de ruídos mas entendivel. — Isso vai ser algo histórico! Como já devem saber, restam apenas três tributos na competição!
Lucky silenciou de repente, deixando a arena voltar a sua costumeira calmaria. Tudo permaneceu calado, monótono na vastidão da floresta. Pablo olhava para o céu com as sobrancelhas arqueadas, movido por curiosidade e ao mesmo tempo temor, temor de que ele acabasse sendo o último em pé.
— Como um prêmio por terem chegado tão longe, preparamos algo especial! Parabéns Lothaire, Pablo e Luke! — Lucky pigarreou. — Nesse momento, todos os três estão fora da Cornucópia. Ao lado do monumento dourado, uma mesa foi montada com três mochilas, cada uma identificada com o número de vossos distritos. Nelas foram postas lembranças de suas casas, famílias e amigos, além de suprimentos. Sejam bem vindos ao primeiro Banquete dos Jogos Vorazes!
Pablo pode jurar que Lucky Flickerman deu uma risadinha baixa ao final de seu aviso. Ele se calou, parecendo ter encerrado a transmissão. Ignorando a quietude eminente, Pablo se atentou aos nomes citados: Lothaire e Luke. Muito provavelmente o único que poderia ter interesse em lembranças da família poderia ser o garoto do Nove, não sabia nada sobre ele. Mesmo que o velho Aparição e a mãe dos Setsuna ainda estivessem vivos, nem Pablo e nem Lothaire se importam o bastante para irem até a Cornucópia.
Então, com latidos e uivos, tudo pareceu fazer sentido, como se uma chave tivesse girado e aberto uma fechadura. Pablo entendeu que aquele Banquete, como Lucky chamou, não era apenas um gesto gentil da Capital. Na verdade, era uma forma de atrair todos os três últimos tributos vivos para um mesmo lugar, para que se matassem mais rápido.
Ficando de pé com um salto, e apertando o arpão enquanto sentia o metal gelado entre os dedos, Pablo começou a correr na direção da Cornucópia logo que pode avistar o primeiro bestante. Mesmo que a morte fosse seu desejo, não permitiria que alguns cachorros tirassem sua vida.
— Acho que esqueci de avisar. — Lucky voltou a falar, ainda rindo. — Como uma forma de incentivo, bestantes estão correndo por toda a arena e só irão parar quando os três estiverem no descampado!
[Tarde, Quinto Dia]
Luke corria o mais rápido que podia, as foices nas mãos, suas pernas se mexendo sem parar, os pés batendo firmes no chão e levantando uma leve nuvem de poeira. Ele corria, tomado por raiva, por ódio, por tristeza e por mais nada além disso. A morte de Saher levou consigo um pedaço da alma dele, seu último resquício de humanidade e autocontrole.
As memórias da fatídica noite que acabou com sua vida, cerca de um ano atrás, invadiam sua cabeça e não o permitia pensar direito. As lembranças apareciam como flashes, adolescentes felizes e idiotas se entupindo de bebida enquanto pulavam e dançavam, naquele velho prédio abandonado no Nove. A música alta parecia estar dentro da arena, enquanto as risadas chamavam por um Luke bêbado e totalmente alterado.
Só voltou à realidade quando deu de cara com uma árvore. Gritou quando caiu no chão, sentindo o rosto todo arder, principalmente na região do nariz. Sangue escorreu por seu lábio, pingando no chão. Os latidos e uivos chegaram a seus ouvidos, fazendo-o ficar de pé novamente e voltar a correr.
Olhou para trás por um breve momento, apenas para ver cerca de sete bestantes correndo a todo vapor, uma enorme nuvem de poeira levantando a medida que a grama era pisoteada e amassada. Num momento de puro horror, Luke pode ver os olhos dos bestantes. Tropeçou nos próprios pés e quase caiu quando percebeu o quão humanos eram aqueles olhos.
Eram os olhos dos tributos mortos. Cada bestante carregava consigo os olhos de algum dos adolescentes que já tinham morrido. Luke pode ver claramente os olhos de Claire e do Tatuado, assim como os de Maverick e Meredith. E, principalmente, no bestante mais próximo a ele, reluziam as belas esmeraldas estampadas nas íris de Saher, sem o intenso brilho de esperança — e de vida.
O loiro suprimiu um grito preso em sua garganta, sentindo algumas lágrimas surgirem e escorrerem por seus olhos. Ele apertou os cabos das foices nas mãos, voltando a olhar pra frente e tentando esquecer a deplorável e assustadora cena que acabou de presenciar. Os latidos dos bestantes agora pareciam como pequenas agulhas perfurando seus tímpanos.
Seu corpo inteiro tremia a cada novo passo, ansiando para poder chegar ao descampado. Os olhos se arregalaram no instante em que avistou o esplendor dourado da Cornucópia. Inclinou seu corpo para frente e se permitiu cair no chão, dando um descanso às pernas, logo que saiu da floresta.
As feras latiram alto, dando de cara com uma espécie de parede invisível. Eles arranharam o vento, uivando e mostrando suas presas furiosas. O bestante com os olhos de Saher parecia ser o mais bravo, pulando e tentando a todo custo ultrapassar Luke e mordê-lo, rasgar sua pele e devorar sua carne. Um belo contraste com a personalidade gentil e dócil da garota.
O garoto sentiu seu coração apertar, tomado por uma súbita sensação de saudade. Apesar de tudo que passou na arena, o olhar calmo e tranquilizador de Saher sempre o mantiveram em pé, firme para protegê-la. E nem mesmo isso ele conseguiu fazer. Deixou ela cair na armadilha da própria mente e morta logo em seguida. Ainda por cima seu primeiro ato após sua morte, a vingança, fora algo que Saher nunca aproveitaria.
Então, os bestantes pararam. Seus latidos e uivos enfim cessaram à medida que eles paravam de pular e arranhar a parede invisível. Por fim, passaram a andar em círculos, todos os sete, rodando na grama sem quebrar a formação. Luke olhou pros lados e pode avistar Pablo e Lothaire, ambos afastados um do outro, observando os bestantes.
Os olhares de Lothaire e Luke se cruzaram e o carreirista ameaçou ficar de pé e atacar o outro loiro, mas algo o interrompeu. Luke tapou os ouvidos no instante em que a algazarra dos bestantes se iniciou.
Com as presas à mostra, espumando pela boca, os animais começaram a atacar uns aos outros, ladrando alto, os olhos possessos de raiva. Sangue espirrou por todos os lados, manchando a grama e as flores e respingando até a pele branca de Luke.
Sem que percebesse, dois dos cachorros já estavam mortos, caídos no chão, os corpos totalmente multilados e dilacerados. Apenas as cabeças restavam, com os olhos reluzindo sem vida. O loiro não conseguia reconhecer a quem pertenciam aqueles dois pares. Logo depois, o bestante de Claire fora morto, seguido pelo do Tatuado, novamente os corpos foram destruídos, deixando só as cabeças. Faltavam mais três cachorros e Luke já tinha entendido a forma como eles estavam morrendo.
Uivando de pura dor e agonia, o bestante de Maverick caiu no chão no instante em que os outros dois cravaram suas presas nele, mordendo rápido e devorando sua carne. Os olhos do garoto piscaram uma última vez, grudados em Luke. O loiro cerrou os punhos e engoliu em seco no instante em que a fera de Meredith começou a destruir o de Saher. Os olhos verdes da garota foram tomados de dor e sofrimento, e Luke jurou que pode vê-los lacrimejando quando só a cabeça sobrou.
Por fim, apenas um bestante sobrou. Os olhos de Meredith brilharam forte e a fera iniciou sua automutilação, abocanhando as próprias patas e rabo. Ao final do trabalho, o bestante parou de comer, morrendo de hemorragia.
Luke suspirou aliviado, percebendo que o rosto estava manchado de lágrimas involuntárias. Não sabia quando elas começaram a escorrer e não pareciam dar o menor sinal de que iriam parar. O loiro ficou de pé, agarrando as foices e se afastando da carnificina, visivelmente aterrorizado.
De repente, a realidade voltou a si. Ele lembrou de onde estava e correu para longe no instante em que Lothaire ficou de pé e começou a persegui-lo. Tudo parecia acontecer em câmera lenta, e Luke não conseguia sair do lugar. Tentava gritar, mas sua voz não saia, apenas um vácuo de imenso silêncio.
— Se abaixa! — Pablo berrou aparecendo instantaneamente na frente de Luke, empunhando seu arpão, a corda enrolada no braço. Ele ainda estava apenas de cueca, a pele suja de terra e sangue.
Se jogando ao chão de bruços, Luke rolou pro lado saindo da linha de tiro de Pablo. O carreirista arremessou o arpão em Lothaire, errando por alguns poucos centímetros. Cortando a grama, a lâmina cravou na terra, esticando parte da corda enrolada no braço de seu dono.
Lothaire nem se deu o trabalho de segurar a corda ou tentar pegar o arpão. Ele continuou correndo de mãos vazias, parecendo um tanque de guerra, bem na direção de Luke. Pablo avançou, passando por cima do loiro caído no chão e puxando a corda com toda sua força.
Cortando o ar, as lâminas investidas do arpão voaram na direção de seu portador, acertando de raspão a pele dura já tão machucada do loiro. Lothaire gritou, sangue escorrendo de suas costelas, agarrando a ponta do arpão e puxando para si, apertando a corda amarrada no braço de Pablo.
Luke ficou de pé, atônito. Ele já não tinha mais motivos para viver, já não tinha pelo que continuar lutando. Perder Saher fora algo que dilacerou sua mente, e afundou ainda mais seu ser na profunda imensidão das trevas que o possuía. Só havia corrido dos bestantes para não morrer torturado por suas presas.
Os dois carreiristas combatiam um ao outro num show de pura habilidade. Pablo desenrolou a corda de seu braço e agora evitava os ataques brutos e físicos de Lothaire enquanto tentava recuperar a arma caída no chão. Luke não sabia o que fazer, não sabia qual dos dois merecia uma chance para ganhar.
Tomado pelo único motivo que o levou a fazer a maioria de suas decisões dentro da arena, escolheu o que Saher escolheria. Ela tentaria ajudar um amigo do que ficar parada. E mesmo que Luke não considerasse Pablo seu amigo, sabia que Saher sim.
Pulando, ele agarrou suas foices e partiu pra cima de Lothaire no instante em que o carreirista acertou um soco no abdômen de Pablo. O rapaz cambaleou para trás, parecendo atordoado e agarrou a corda de seu arpão.
Luke saltou para cima do loiro, desviando de seus socos e cravando uma das foices em seu ombro direito. O garoto berrou de dor, sangue escorrendo quando a foice foi retirada. Ele agarrou Luke pelo pescoço e só soltou quando o arpão de Pablo cortou o ar.
A lâmina fria da ponta do arpão zuniu ao ser arremessada e acertou em cheio seu alvo, a barriga de Lothaire.
O carreirista largou Luke, caindo de joelhos no chão e berrando de dor, a voz estrondosa como um trovão. O corpo perfurado expelia sangue para todo lado, formando uma poça no chão em volta de si. Luke saiu de perto, tossindo enquanto massageava a garganta.
Pablo puxou o arpão para fora de Lothaire, permitindo que mais sangue escorresse. Visando acabar com a agonia do garoto, colocou uma das mãos no queixo e a outra no topo da cabeça do loiro, girando seu pescoço cento e oitenta graus para a direita.
Canhão.
O corpo de Lothaire caiu de bruços no chão com um baque surdo, levantando um pouco de poeira na grama tingida de vermelho. Sangue respingou nos dois que ainda restavam vivos.
— Obrigado... — Luke agradeceu soltando as foices.
— Não tem que me agradecer. — Pablo piscou sorridente. — Ainda!
Pablo agarrou seu arpão, virando a ponta principal para o próprio peito, o metal gélido do cabo tocando a pele de seus dedos e eriçando os pelos de seu corpo. O garoto suspirou, parecendo certo de sua decisão. Luke arregalou os olhos e se pôs em pé, esticando os braços e tentando impedir Pablo. Luke não podia ficar vivo!
— Não faça isso!
Luke gritou no instante em que Pablo, sorrindo e encarando o sol poente, o céu tingido de rosa e laranja, enfiou o arpão em seu peito, usando toda sua força e pendendo o corpo para frente. Ele tossiu sangue, caindo no chão enquanto a lâmina atravessava não somente sua carne, como seu coração e todo seu corpo, ceifando sua vida.
No fim, Pablo acabou por escolher o próprio suicidio, uma forma de culpa e castigo por todas as vidas que tinha tirado, por todas as famílias que havia destruído, por todos os futuros que tinha interrompido. Talvez Hanna estivesse uns dez por cento certa. Só talvez.
Canhão.
O loiro assistiu a tudo atordoado, caindo de joelhos no chão, cerrando os punhos. Ele berrou a plenos pulmões, socando a grama com toda a força, fazendo a pele sangrar. Lágrimas escorriam por seu rosto enquanto ele se arrependia de não ter se entregado aos bestantes antes.
Luke não poderia ter ganhado, não mesmo! Qualquer um dos outros vinte e três tributos eram melhores que ele, qualquer um! Aquela arena, aqueles Jogos Vorazes, aquela vida era apenas o inferno pessoal de Luke, trazendo dor e sofrimento para ele, fragmentando sua alma, um castigo eterno por tudo que fizera
E mais uma vez, sua teoria se comprova. Ele continuou socando o chão, ignorando a voz de Lucky Flickerman que o parabenizou por sua vitória. Luke não estava feliz, estava com raiva, com ódio, com dor. Estava destinado a passar o resto da vida sofrendo e escapando da morte várias e várias vezes, até muito provavelmente chegar à velhice.
Talvez esse fosse um belo castigo, um ótimo inferno, para o garoto que, um ano atrás, numa festa de adolescentes em um prédio abandonado, estuprou e matou três jovens e indefesas garotas.
001 ㅡ ESTÁ ENTRE NÓS O ÚLTIMO CAPÍTULO DE THE FIRST QUARTER QUELL
002 ㅡ Aí gente, a dor, ela dói muito. Cada morte neste capítulo foi extremamente dolorosa
003 ㅡ Eu sei, eu sei que as três primeiras mortes muito provavelmente foram as mais dolorosas. Aconteceu tudo muito rápido né?! Eu sei, era pra acontecer mesmo akakakakka
004 ㅡ Eita eita, o que vocês acharam do plot twist? Ainda gostam deste personagem? Me contem aí!
005 ㅡ Só pra esclarecer, não passo pano para o que ele fez! Como disse, esse é o inferno pessoal dele
006 ㅡ É, não dá pra ameaçar mais ninguém... Mas teremos um epílogo, ebaaa
007 ㅡ Deixa o feedback aí por favor! <3
Contagem de palavras ㅡ 10198 palavras.
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