Sob o cinza

O branco é que o se via por toda parte, atrás de cada pico ou montanha, sobre e sob as árvores, menos no céu, cujo cinza era a cor predominante.

De longe, se você tivesse uma visão aguçada como a minha, apesar da idade que tenho, poderia vislumbrar um pequeno ponto realizando movimentos rápidos, um após o outro.

Ao nos aproximarmos mais, veria que esse pequeno ponto de trata de um ser sendo atacada por vários inimigos, mas isso ocorre no agora e o que nos interessa é ir um pouco mais no passado, dias, não, meses antes desta data.

Sob um mesmo céu cinza ela despertou na mata e imediatamente se levantou atenta. A barriga clamava por alimento e o senso de sobrevivência falou mais alto. Agarrou a velha espada deixada ao seu lado, examinou seu corte e ficou satisfeita, iniciando a procura por algo que saciasse a sua fome.

Horas depois, já numa caverna aquecida por uma fogueira, assava um pequeno roedor que conseguira encontrar e com o sangue da sua presa, deixou uma mensagem na parede gelada.

— Elfca esteve aqui.

Ela não se recordava de como fora parar naquele ambiente coberto de neve, pensou enquanto comia mais um naco da carne tostada, mas tinha certeza de que não era tão imune ao frio como agora se sentia, vestindo apenas roupas leves.

Sua última lembrança a levava até o castelo do monte Frenno, na linha meridional que dividia o continente de Hascob, onde ela fazia parte da corte. Mas algo impedia que Elfca conseguisse ver os detalhes desta lembrança com clareza, como se os visse através de um vidro embaçado.

Colocou o capuz da blusa, pegou a espada e saiu para o mundo branco que a cercava. Conhecia o lugar de longa data, das épocas das caçadas que realizava com a família, da qual somente ela restara.

Se a memória não a estivesse traindo, se encontrava muito ao norte do continente e algo lhe dizia que não podia perder tempo, se quisesse evitar uma grande desgraça que atingiria a todos que ela conhecia.

Sem olhar para trás, pôs-se a caminhar enquanto uma fraca luz ainda iluminava o dia e imaginou se encontraria novamente o último homem que ela recordava ter visto e que por algum motivo, assim como suas lembranças embaçadas, não conseguia visualizar seu rosto, por mais que tentasse.

Só tinha certeza de algo atrelado a esse homem sem rosto, que era o imenso amor que sentia por ele, algo único e verdadeiro e que Elfca pretendia recuperar, caso isso ainda fosse possível.

☸☸☸☸☸

Os dias foram passando e se tornando semanas, depois meses, enquanto ela foi sobrevivendo, da caça de pequenos animais e se refugiando como podia durante as longas noites.

A memória continuava da mesma forma e não dava sinais de recuperação e para mantê-la ativa enquanto seguia sua jornada, ficava imaginando problemas e suas várias soluções, oriundos da aritmética que Elfca aprendera na juventude. Lhe parecia que este aprendizado teria acontecido há séculos, apesar dela ainda ser muito jovem, longe de completar 30 anos.

Algumas vezes assolada pela pressão da imensa solidão que sentia, conversava consigo mesma. Nunca fora uma tagarela, mas passou cada vez mais a gostar do som da sua própria voz e só não enchia o mundo branco que a envolvia de gritos, pois não queria atrair para si perigos desnecessários, como alguma fera oculta nas florestas.

Tão tola, mal sabia Elfca que de nada adiantaria tentar evitar os perigos da sua jornada, pois eles agora mesmo seguiam velozes em sua direção, com somente um objetivo em mente: a destruir de uma vez por todas!

Isso nos leva ao início desta narrativa, justamente quando ela estava sendo atacada por um grupo de soldados vestidos de preto, com emblemas em seus uniformes que Elfca desconhecia.

Num momento de completo devaneio, pensou que poderia deixar um deles com vida para poder interrogá-lo e assim ter uma ideia dos perigos que ainda teria pela frente.

Logo depois sorriu da bobagem que imaginou. É claro que em pouco tempo ela estaria morta, pois os soldados eram muitos, contou ao menos dez deles, todos bem armados, com escudos, lanças, espadas e até um grandalhão que vinha mais lento atrás do grupo, portando um grande machado.

Mas contrariando a todas as suas expectativas, eis que começou a vencê-los facilmente. Sua espada parecia cortar seus escudos ao meio como se fossem feitos de papel e em pouco tempo, só restava ela e o soldado maior, que a encarava um pouco amedrontado.

Na verdade, ele olhava para o solo tingido de um vermelho vivo, contrastando com a neve, mas em pouco tempo recuperou a coragem e a atacou soltando um urro feroz.

Elfca simplesmente deu um pequeno passo para o lado, deixando que o grandalhão passasse como um urso feroz e o atacou pelas costas, o derrubando ao solo, de onde ele não mais se levantou.

Ela verificou se algum deles ainda permanecia vivo, mas foi inútil. Vasculhou então nas suas vestes qualquer sinal que lhe trouxesse alguma resposta para suas dúvidas, mas nada encontrou. Decidiu que o melhor a fazer era encontrar o acampamento deles e tirar proveito da força que agora corria em suas veias, mas tentaria a todo custo fazer um prisioneiro que lhe trouxesse alguma luz.

No acampamento do grupo, venceu facilmente mais dois soldados, os quais acabou matando. Ficou alguns dias naquele local, aproveitando para saborear o mantimento do grupo, repleto de comidas e frutas que desde que despertou na mata não tivera mais este prazer de degustar.

O que Elfca demorou para perceber, mas quando o fez ficou atônita, foi que era impossível que eles tivessem chegado tão longe com todo aquele material, sem passar por ela. Na parte de trás do acampamento existia uma montanha muito íngreme, do lado direito uma mata fechada permanecia intacta e do outro lado um precipício levaria qualquer um que por ali tentasse passar para uma morte rápida.

Meditou muito a esse respeito e a única resposta que encontrou seria a de que o grupo tivesse vindo através de um portal, mas tirou da mente esta ideia, pois para se criar tal passagem mágica, o ser que a conjurasse deveria ter um poder incalculável e ela desconhecia alguém assim em toda Hascob.

Mais uma vez Elfca estava enganada, mas pobre guerreira, existia tanta coisa ainda que ela desconhecia.

E um destes fatos era que ainda demoraria algum tempo para que ela realizasse esse seu desejo de encontrar alguém que lhe esclarecesse algumas de suas dúvidas.

Sei bem do que estou falando, sei muito bem.

Afinal, eu estava lá!

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