eu nunca te julgo

Eu sabia que iria beijar Lucas pra caramba, só não sabia que iríamos transar no banco de trás do seu carro — que descobri tratar-se de uma propriedade sua trinta minutos antes de ter minha calça abaixada lá dentro mesmo. Eu não tinha certeza se isso iria mesmo acontecer, mas estávamos lá, olhando as luzes da cidade, ao final do crepúsculo, encarando a vista. E eu até fui inocente, sim. Fui de verdade, até tentei fazer o sonso quando as coisas esquentaram. Mas não deu, eu já estava no banco de trás do carona e suas mãos já estavam em mim. Então pensei: por que não?

Eu nunca antes tinha feito isso com ele, então eu me senti estranho, de início. Mas Lucas cresceu, não é mais aquele estrangeiro fofinho que beijava bem e mal sabia pronunciar manteiga em francês. Além do mais, ele foi carinhoso e me levou para casa assim que nos vestimos. Ainda deu-me um beijo de despedida e iludiu-se com um pedido de que eu sonhasse com ele quando fosse dormir. Eu não sonhei com ele, então isso me deixa aliviado.

Como estou cansado, decido tirar o domingo para mim mesmo e somente. Olho-me no espelho e constato a desgraça formada em meu pescoço — porque além de ter mãos grandes para apertar, ele também ama deixar marcas e eu nem sei o porquê. E eu também não estava racional o suficiente para dizer-lhe que não o fizesse, pois estava ocupado com outras coisas. Nossa. Uau. No banco de trás de um Hyundai.

Preparo meu café, ainda de pijama, então levo o prato e um calção de banho até a cobertura. Trago meu óculos de sol favorito e um copo de suco de laranja com açúcar até demais. Só quero relaxar e sentir-me bem, para depois lidar com as pressões e movimentações da semana. Domingos deveriam ser eternos.

Domingos deveriam ser eternos, mas não porque o sol está forte e eu quero que afunde-se em mim e marque minha pele — assim como Yukhei fez noite passada —, mas porque a sensação de paz e calmaria deve ser minuciosamente degustada e 24 horas apenas não é nada para isso. Exatamente nada.

Sendo assim, respondo a mensagem de bom dia de Lucas, perguntando se estou bem e dizendo que está se sentindo maravilhado. Ele não usa palavras difíceis, então isso me surpreende. Mas hoje é meu dia, então bloqueio o celular, livro-me do pijama, enfio as pernas dentro do calção de banho e derrubo o corpo na piscina da cobertura.

Minha piscina, meu sol, meu bronzeado, meu café da manhã fritando neste calor matinal. Meu, meu e meu. Sou somente meu. Não tem ninguém para me usar, não mais. Não tem ninguém para me trair, não mais. Não tem ninguém para virar-me as costas, não mais. Não mais. Apenas eu, eu e eu. Eu, minha piscina e meu nado borboleta que aprendi aos doze anos de idade, com o japonês assanhado que sorria torto e aparecia semanalmente, bêbado, para dar-me aula. Perguntava-me se ele ia mesmo para as aulas ou para agarrar a empregada do térreo na dispensa da cozinha. Eu tinha doze anos, mas já sabia como ela gemia. Ninguém nunca acreditou em mim.

Eu sei que hoje é um dia maravilhoso para estar pensando nessas coisas, mas de repente me sinto grato por tudo ter mudado. Por eu ter mudado, me mudado, me moldado. Por ter saído de casa antes das coisas pegarem fogo, se destruírem, desmoronarem. Não só previ, fiz de tudo para me proteger daquilo. E então veio a França, que começou com leituras noturnas de Le Petit Prince e o caderno de receitas do meu avô, e de repente terminou com meu indicador cortado e uma beca de formatura ridícula. Tão ridícula era a beca que nem eu fiz o favor de tirar, pois lembro-me que havia alguém comigo para fazer por mim. Tive tantos namorados europeus que esqueci sobre os asiáticos por uma porção de anos. Quase, na verdade.

Festejos do ano novo tailandês eram os piores, para ser honesto. Eu perdia aula, viajava a esmo para ver um monte de abutre numa ceia, mentindo sobre conceito de família e união. Eu não entendia o porquê das reuniões, mas eu era tão insuportável, que respondia em francês tudo que me questionavam, só para tirar todo mundo do sério. Eu não gostava do modo como meus pais se tratavam, não gostava do silêncio da minha irmã, não gostava da simpatia da minha tia, não gostava dos olhares do meu tio, mas eu gostava de quando o primo Earth não usava camisa e passava pela sala. Todo mundo ali tinha dinheiro, mas eu dei no pé para buscar a felicidade. O sufocamento daquelas paredes brancas iria me matar.

Mas aprendi, aprendi de verdade, talvez da pior forma. Aprendi que passar o dia trancado no quarto, escutando música para abafar o som da briga, isso não era aprender a viver. Virei-me sozinho inúmeras vezes em Paris, então passei a cuidar mais um pouco de mim. Minha irmã foi para a Inglaterra, então às vezes fazíamos nosso próprio feriado visitando um ao outro de trem. Eu tive amigos, a maioria perdi. Perdi, porque todos são passageiros, todos vão uma hora. Não gasto saudades com eles, não gasto saudades com nada. Por isso levei anos da minha vida pensando: ninguém merece meu amor mais do que eu mesmo, porque eu sei o que passei e sei o quanto lutei para ser isso que sou. Mas não sei se foi por isso que machuquei as pessoas.

Meu telefone toca, vibra, grita, fica a grunhir. Nado até a beirada da piscina, enxugo a mão direita e pego. Ah, ótimo, uma chamada de vídeo do Jaehyun. Posiciono o celular de pé, apoiado na perna da espreguiçadeira, e atendo.

— Bom dia para você, Jung — sorrio, pondo o óculos de sol no rosto. Aposto que estou lindo com o cabelo loiro molhado, sorriso no rosto e óculos escuros.

— Ih, você de bom humor me assusta — responde. — E aí? Usou camisinha ontem?

— Como? — inclino o rosto para olhar direito a sua imagem arrumadinha, na cozinha de casa.

— Oh, pensa que não sei? Eu vi seus stories com Lucas e adivinhei na hora que alguma coisa ia rolar dessa vez — ele sorri ironicamente. Eu odeio essas expressões de sabichão dele. — E também porque tem umas coisas estranhas no seu pescoço. Estou vendo daqui, querido.

— Ai, eu te odeio! — eu exclamo, fazendo cara feia. Gostaria de poder enganar e mentir para Jaehyun, mas nunca consigo ter a chance para isso. — A que devo a honra da sua chamada?

Puxo o prato com meu café da manhã e começo a comer, esperando que Jaehyun diga alguma coisa. Como ele não diz nada, dou um gole no meu suco antes de encarar a tela.

— Você está tomando café da manhã na piscina? — quer saber. Eu apenas dou de ombros.

— Eu queria. Ah, aliás — pego o celular, esticando-me para não ter de sair da água, e viro para o lado esquerdo. — Essa área está um pouco vazia. Que acha de eu pôr uma jacuzzi ali para relaxarmos ao ficarmos bêbados?

— Você que sabe — vejo seu dar de ombros assim que viro a tela para a minha direção outra vez.

— Vou fazer um orçamento — digo com animação.

— Ahn... Ten? Eu posso te fazer uma pergunta? — seu tom meio sério e hesitante me preocupa, por isso apenas concordo num gesto. — Quando você fica com alguém, te falta algo?

Me engasgo com alguma coisa, então passo a tossir antes de beber alguns goles do suco. Jaehyun é paciente, fica à espera. Eu não sei bem o que responder, ele quase nunca me pede conselhos ou pergunta coisas do tipo. Que domingo, hein, irmãos?!

— C-como assim? — ainda faço o favor de gaguejar.

— Você transou com Lucas ontem, certo?

— Sim.

— Você sentiu que estava faltando algo?

Penso um pouco. Se for o que estou pensando, eu não sei o que responder. Eu nunca fiz essa pergunta a mim mesmo, não me me lembro de tirar conclusões sobre esse tipo de coisa. Será que essa é uma sósia do Jaehyun?

— Que quer dizer com isso? — peço detalhamento. Espero que ele esteja falando no sentido sexual da coisa.

— Não é no sentido sexual — é o que ele diz. Ai, já quero me afogar nessa piscina. — É que... Bem, você gostou do Taeyong, né?

— Por que esse assunto seria pertinente? — questiono. Eu não vou ficar bravo com ele, porém ele sabe mais que todos que não gosto muito de tocar nesse assunto. Logo esse.

— Porque foi a primeira pessoa que você pareceu gostar. Digo, gostar de verdade. A primeira pessoa com quem você não forçou, apenas por querer se aproveitar dela. A primeira pessoa que você não fingiu gostar ou inventou amor de onde não tinha, só para fazê-la ficar por perto de você. Você sabe prender as pessoas a você, mas com ele foi por tempo demais, então eu pensei que talvez você tenha realmente gostado dele. Você não ficou reclamando dele para mim, sempre defendia quando eu falava mal. É por isso, por isso é pertinente — quando Jaehyun termina seu discurso de como fui cruel e manipulador com todo mundo, mas aparentemente com Taeyong não, eu com certeza não me sinto melhor do que como estava quando essa conversa começou.

— Eu gostei muito dele. Foi sufocante, mas... Gostei muito — sinto a água calma ao redor do meu corpo, meus braços esquentarem pelos raios solares. Eu esqueci o protetor solar, mas agora meu domingo de sol foi arruinado um pouco.

— E quando você foi para a Itália e ficou com outras pessoas, você sentiu que faltava algo? — ele quer saber, mas eu não quero que ele saiba. Eu não sei se devo fingir estar me afogando para tentar fugir disso tudo. Eu sempre fujo da realidade. — Pensou "há algo que eu senti com ele que simplesmente não consigo sentir com mais ninguém"?

— Provavelmente — dou de ombros, desvio o olhar. — Não me lembro.

— Você está mentindo — ele diz. — Eu conheço todos os seus sinais de mentira. Eu quero a verdade, Ten, é sério. Eu preciso saber disso, pode me ajudar em algo.

— Tá bom, então. É claro que sim, sempre falta algo. Mas não faço questão. Se eu quisesse amor, eu certamente conseguiria. Mas eu não estou à procura de amor, então não me importa se faltar algo. É como estar procurando água no deserto.

— Eu sei, mas... E como foi com seu namorado de lá?

— Jaehyun, por que você quer saber disso? — tiro os braços da borda e os mergulho na água. Estão queimando. Até me abaixo um pouco, deixo a água engolir mais partes do meu corpo.

— Só me responde — pede. — Você não gosta de relacionamentos, não suporta.

— Relacionamentos são prisões.

— Sim, eu sei disso. Mas por que namorou com alguém?

— Era aberto.

— E daí? Relacionamento aberto é relacionamento, é namoro do mesmo jeito — eu vejo Jaehyun inclinar o corpo para frente e apoiar o braço na mesa rústica dele.

— Eu namorei com ele porque ele gostava de mim e eu queria me sentir amado. Além disso, era bom ter uma companhia fixa, alguém com quem eu pudesse contar. Mas eu não cheguei a amá-lo. Tipo, não era a mesma coisa, obviamente. E claro que fiz com que ele ficasse, ainda mais porque tive que demonstrar sinais de que estava me apaixonando por ele, já que ele sabia que eu não gostava dele no início e disse que iria me conquistar se eu desse uma chance. Eu sabia que não iria funcionar, mas fui. E você sabe que sempre fui assim, então não me julgue.

— Eu nunca te julgo.

— Só queria ter alguém, porque Taeyong me deixou mal acostumado — confesso. E agora percebo que essa é a primeira vez que conto sobre isso a alguém. Me sinto mal, será que foi o café da manhã na piscina? — E se eu cagasse e andasse para meu namorado, ele iria me deixar. E eu não queria lidar com a ausência de Taeyong sozinho.

— Então você sentiu falta dele?

— Não acho que a que a questão seja essa — olho para o espaço vazio da cobertura, talvez eu realmente ponha uma jacuzzi ali. — Foi só para me acostumar mesmo. Eu não fantasio ninguém, não espero ter alguém comigo. Então apenas me contento e mantenho por perto. Mas por que esse assunto?

Ele fica alguns segundos calado. Eu não gosto disso.

— Porque... Bem, é que é complicado. Eu pensei que só acontecia comigo, mas agora não vejo mais razão para ficar com mais ninguém, se eu não for ter o que quero. O que falta, quero dizer — responde-me num tom distante, talvez pensando, ponderando. — Sei não, mas ultimamente tenho pensado nisso.

— Isso tem relação com aquela noite no restaurante? — me refiro aos nossos beijos. Ele concorda com a cabeça. — Bem, você já tentou resolver?

— Não é tão simples — ele diz. — Eu gostaria que fosse. Mas... Estou pensando nisso e estou a tirar algumas conclusões. Você não pensa nessas coisas, né?

— Meus pensamentos são perigosos. Uma vez pensado, nunca sai da minha cabeça. Se eu pensar muito, tomarei decisões apenas para tirar isso da mente, mas não porque é o modo correto de resolver.

— Mas não estão resolvidas. Digo, você e Taeyong, por exemplo.

— Mas eu vou — engulo em seco. — Só estou dando um tempo. Mas irei em breve. Se ele me permitir, claro. Mesmo assim, não saberia o que dizer. O que você diria?

— Eu diria que... Que é estranho estarmos nos estranhando e talvez fosse melhor conversarmos sobre as coisas que aconteceram e que com certeza nos arrependemos. Esclarecer as coisas, entendeu? — ele estala os dedos.

— Mas é complicado retomar essas coisas. Eu fiquei bastante mal, também não sei se ele quer falar.

— Ele quer, tenha certeza — com uma convicção vinda do guarda-roupa de Nárnia, ele tenta me certificar disso. — Vocês acumularam coisas. E eu não sei se você ainda sente a mesma coisa, mas eu me lembro claramente de quando você estava bêbado na China e Taeyong estava na casa dos pais... Você disse que estava apaixonado por ele e ele não percebia que você estava deixando claro. E sim, eu sei que você ficou mal com a briga de vocês e que você chorou pra caralho por ter machucado ele e vice-versa, então é por isso que eu acho pertinente trazer esse assunto e jogar as cartas na mesa. Porque eu não acho que aquela mensagem foi só conversa de bêbado.

— Espera — levo alguns segundos pensando. — Eu falei o quê, na China?

— Se você quiser, eu caço a mensagem do backup e esfrego na sua cara — arqueia o cenho. — Você disse para mim, escrito todo errado, que estava apaixonado por ele e que estava cansado de dizer isso e ele não perceber. Eu nunca escutei isso de você sóbrio, por isso perguntei se você gostou mesmo dele.

Ponho a mão no peito, enrugando a testa numa confusão notória. Eu realmente não me lembro de admitir isso para Jaehyun, eu nem tinha certeza disso, eu nem tinha muita ideia sobre. Respiro fundo, tentando me lembrar. Mas faz muito tempo, essas lembranças foram amassadas pelas novas que adquiri no exterior e não consigo organizar muito bem as coisas aqui dentro.

— Tem certeza disso?

— Ten, você sabe que tenho boa memória. Ainda mais quando o assunto é algo surpreendente para mim — Jung morde a parte interna da bochecha e depois sorri. — Mas, relaxa, não contei para ninguém pra não destruir sua reputação de "garoto que nunca se apaixona."

— Jaehyun, esquece isso — reviro os olhos. Agora vou ter que lidar com as merdas que falei no passado. Será que falei com Taeyong sobre isso? Ou com Doyoung? Ou postei em alguma rede social? Meu Deus, espero que não. — Eu vou tentar resolver as coisas. Resolva as suas também. Eu nem sei o que é, mas você é bom em resolver b.o.

— Nesse caso, não — abana a cabeça. — Talvez você pudesse lidar com minha situação, se fosse eu. Mas eu não conseguirei tanto.

— É só não pensar no que falta e tudo dará certo. E as pessoas são complicadas, Jaehyun. Talvez possamos ter alguém amanhã ou depois. Não precisa ser necessariamente hoje, então não fique martelando a cabeça com esse assunto. Vá beijar na boca.

Ele ri, mas não sei se concorda com o que digo.

— Tá bom. Valeu. Vou pensar no assunto. Bye — acena, eu aceno de volta.

Quando ele desliga, afasto-me da borda e decido mergulhar. Fico tanto tempo debaixo d'água que começo a pensar que talvez eu esteja apaixonado pela sensação da falta de ar. O desespero não me desespera mais e até tento lutar contra meus instintos, só para dizer que consigo ficar bastante tempo aqui, sem padecer nem nada. Mas é que não consigo acreditar: eu, logo eu, apaixonado por Taeyong? Acho que vou vomitar meu café da manhã. Péssima ideia comer na piscina, Ten, péssima ideia..

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