(𝟬𝟬) ♡⃕ prologue

𝟏𝟗𝟗𝟓


O céu de Lawrence, Kansas, tingia-se de um âmbar vibrante enquanto o sol mergulhava lentamente no horizonte, lançando sombras sinuosas pelas calçadas desgastadas. Sam Winchester, com seus 12 anos, encontrava-se no degrau mais baixo da varanda da casa de Bobby. A briga dentro da casa era uma cacofonia de vozes exaltadas — John, Dean e Bobby engajados em uma disputa verbal que parecia rasgar o ar com sua intensidade. Era raro John estar presente, e, quando estava, a atmosfera costumava carregar um peso opressivo.

No entanto, Sam não dava atenção àquilo. Seus olhos, como sempre, estavam fixos na figura graciosa da menina ruiva que habitava na mesma rua.

Ela tinha cabelos naturalmente alaranjados presos em um coque despretensioso, e seu vestido florido dançava levemente com a brisa. No asfalto irregular, ela traçava formas caprichosas com um pedaço de giz branco, saltitando em um pé só. Havia uma despreocupação tão natural em seus movimentos que parecia pertencer a outro mundo, distante do caos que permeava a vida de Sam.

Blake Moreau. Ele não sabia exatamente sua idade, mas calculava que ela tivesse 8 ou 9 anos. Havia algo nela que o atraía de maneira inexplicável. Talvez fosse o brilho inocente em seus olhos ou o sorriso sincero que fazia suas sardas cintilarem sob a luz do entardecer.

Sam apertou os joelhos contra o peito, tentando ignorar os gritos abafados que vinham de dentro da casa.

— Por que você sempre fica aí, sozinho? — A voz cristalina da menina cortou o silêncio, puxando-o de volta à realidade.

Ele piscou, surpreso. Blake estava parada na calçada, segurando o giz. Ela o encarava com uma curiosidade desarmante.

— Só... gosto de ficar aqui. — Ele deu de ombros, tentando soar casual.

Ela franziu as sobrancelhas, desafiando sua resposta com um simples olhar. Depois de um instante, subiu os degraus da varanda, como se fosse dona do lugar, e sentou-se ao lado dele.

— Você parece triste. — Seus olhos o analisavam como se tentassem decifrar um mistério. — Por que não vem brincar?

Sam desviou o olhar, envergonhado. Era raro alguém falar com ele de forma tão direta, ainda mais alguém como Blake.

— Não sei... acho que não sou muito bom nisso.

Ela sorriu, e seu rosto iluminou-se como o próprio crepúsculo.

— É só parar de pensar tanto. — Ela estendeu o pedaço de giz para ele. — Vamos desenhar.

Por um momento, ele hesitou. O mundo dela parecia tão simples, tão distante do peso que ele carregava. Mas, ao segurar o giz, seus dedos roçaram os dela, e ele sentiu algo singular, quase reconfortante. Ela olhou para ele com um sorriso suave, como se soubesse que ele precisava daquele pequeno gesto de conexão. Sam, então, começou a desenhar, traçando linhas retas, sem direção, tentando se entregar ao momento, mas sem conseguir afastar a preocupação da casa.

— Eu sou Blake. — Ela disse, interrompendo o silêncio enquanto olhava para o pedaço de giz em suas mãos, como se estivesse conferindo sua própria escrita.

Sam levantou o olhar, surpresa pela forma casual com que ela se apresentou. Ele, que sempre soubera seu nome — ouvira o pai dela chamando-a várias vezes —, agora sentia que o momento pedia algo mais formal, talvez para estabelecer uma conexão que fosse além dos simples olhares trocados.

— Sam. — Ele respondeu, a voz um pouco hesitante, mas com um sorriso tímido no rosto.

Blake acenou com a cabeça e se concentrou no desenho, deixando o silêncio voltar entre eles por um tempo. Os dois traçaram figuras simples na calçada, rabiscos que, de alguma forma, pareciam dizer mais sobre eles do que qualquer palavra poderia expressar. O som do giz raspando na calçada era uma música suave e repetitiva, um alívio momentâneo para as tensões que Sam deixava para trás.

Mas, ao notar a expressão distante de Sam, Blake ergueu os olhos e olhou para a casa dele. A janela estava aberta, e as vozes abafadas continuavam a ressoar dentro da casa.

— É o seu pai que está bravo? — Perguntou ela com um tom curioso, quase inocente, apontando com o olhar para a casa.

Sam sentiu o peso da pergunta e olhou rapidamente para dentro, seu estômago apertando-se ao ouvir a discussão abafada. Ele balançou a cabeça e tentou disfarçar a preocupação que se formava em seu peito.

— Sim... Ele... ele está sempre assim quando está em casa. — Sua voz era baixa, um pouco amarga. Ele sabia que Blake não tinha a menor ideia sobre o que realmente acontecia lá dentro. — Mas... meu pai não fica muito em casa. Às vezes, ele some por dias.

Blake olhou para ele com uma expressão compreensiva, mas não disse nada. Ela tinha seus próprios fantasmas, seus próprios silêncios em casa.

— O meu pai também não fica. — Ela disse, voltando a olhar para a calçada enquanto seu dedo desenhava um círculo no chão. — Mas eu não me importo tanto. Eu prefiro ficar sozinha mesmo.

Sam observou a menina com um olhar mais atento. Havia algo nela que o fazia sentir que, talvez, ela compreendesse mais do que ele imaginava. Mas ele não queria pensar muito nisso, porque pensar significava perceber as sombras que se escondiam nas palavras não ditas.

Blake olhou para ele, curiosa, sem perceber as nuvens que começavam a se formar na mente dele.

— O que seu pai faz? — Perguntou ela, com um tom tão inocente que Sam quase se sentiu culpado por não poder ser completamente honesto. 

Ele sabia que não podia dizer a verdade. Não podia falar sobre caçadores, monstros ou criaturas das sombras. Então, ele inventou uma história, uma mentira simples que parecia convincente o suficiente para ela.

— Ele é... segurança. — Sam falou, a palavra soando estranha nos seus próprios ouvidos, mas ele não tinha escolha. — Ele deixa as coisas... seguras.

Blake franziu a testa, aparentemente satisfeita com a explicação, Sam não demorou a fazer outra pergunta.

— E o seu pai? — Sam não sabia o que esperar, mas não imaginava que ela falaria com tanta dificuldade.

Blake hesitou por um momento, o olhar perdido em suas próprias palavras enquanto tentava organizar o que sabia, ou o que achava que sabia. Ela remexeu as mãos, os dedos roçando o giz que ainda segurava, e então olhou para ele com um olhar que parecia carregado de uma complexidade que Sam não conseguia compreender.

— O meu pai... — Ela começou, a voz vacilante, como se estivesse tentando juntar pedaços de um quebra-cabeça que não fazia sentido. — O meu pai faz parte de uma coisa... como uma... um grupo. Ele é diferente, eu acho. Não é bem uma igreja, mas... tem outras meninas. Eu acho que ele cuida delas. — Ela parou por um momento, os olhos desconfortáveis, como se a ideia de seu pai ter outras meninas fosse mais confusa do que ela poderia explicar.

Sam sentiu um frio na espinha. Algo não parecia certo, e as palavras de Blake começaram a formar uma imagem perturbadora em sua mente. Ele conhecia grupos assim, não muitos, mas sabia que existiam seitas que manipulariam jovens, especialmente meninas. Ele já ouvira histórias de cultos e líderes que usavam suas palavras para controlar.

Blake continuou, sua voz ainda hesitante, mas agora mais determinada, como se estivesse tentando dar um sentido ao que não compreendia completamente.

— Ele fala sobre... proteções, sabe? Mas ninguém pode sair, e ele diz que é para... para... — Ela parou, claramente confusa com o que tentava dizer, mas Sam já havia captado o suficiente. O pressentimento se solidificou em sua mente.

Ele manteve o olhar fixo nela, tentando não demonstrar seu desconforto. Ele precisava manter a calma. Não podia deixar Blake perceber que ele estava alarmado.

— Proteções? — Sam repetiu, sua voz mais baixa, tentando parecer interessado, sem transparecer preocupação.

Blake olhou para ele, os olhos ainda confusos, mas ela não conseguia entender o que havia de errado nas palavras que dissera.

— Sim... tipo... um tipo de... ritual? Mas não é como um jogo. Ele fala que é para manter as meninas seguras, mas eu não... eu não entendo muito bem, é tudo meio estranho.

Sam sentiu o estômago apertar. O que Blake estava descrevendo parecia mais e mais uma prisão disfarçada de proteção, e ele não sabia o que isso significava para ela, mas tinha certeza de que não era algo bom. Ele tentou esconder a inquietação em seu olhar, forçando-se a relaxar.

— Isso... isso parece complicado, Blake. — Ele disse, tentando suavizar o impacto da conversa. — Talvez você devesse conversar com sua mãe sobre isso.

Blake hesitou por um momento, os olhos caindo para as mãos que apertavam o giz com força. Sua expressão estava mais séria agora, e, por um breve momento, Sam viu uma fragilidade que não esperava.

— Minha mãe morreu... — Blake disse baixinho, sem encará-lo. A voz de Blake tremia um pouco, mas ela continuou, como se quisesse aliviar a tensão. — É só o meu pai, agora.

Sam sentiu uma dor no peito ao ouvir as palavras dela. Ele sabia o que era perder uma mãe, sentia isso todos os dias. Ele queria dizer algo, queria dar algum tipo de consolo, mas sabia que não havia nada que pudesse aliviar aquela dor. Ele engoliu em seco, tentando manter a voz firme.

— A minha também... — Ele respondeu, a lembrança de sua mãe trazendo uma onda de tristeza que tentou afastar.

Blake o olhou com uma expressão de compreensão silenciosa, mas, logo, seu olhar se desfez em um sorriso forçado. Ela balançou a cabeça, tentando dissipar qualquer vestígio de melancolia que estivesse se formando entre eles.

— Não precisa se preocupar com o que eu disse. — Blake disse, voltando a olhar para o chão e começando a desenhar novamente com o giz. — Deve ser só uma escola só para meninas, um lugar estranho onde eles ensinam... essas coisas. Eu acho que é tipo uma escola, só que com balé. Tem uma sala grande onde as meninas dançam, e elas se vestem de roupa de balé. — Ela continuou, falando de um modo quase descontraído, como se tentasse convencer a si mesma de que aquilo era algo normal, algo que não causava medo.

Sam a observava com um nó crescente na garganta. O que ela descrevia não soava nem um pouco como uma escola de balé comum. Ele sabia que aquilo não era algo simples. Mas ele não tinha como questionar mais, não ali, não com ela.

De repente, o som de uma voz masculina ecoou da casa da frente, interrompendo o silêncio entre os dois.

— Blake, você tem mais cinco minutos!

Ela se estremeceu um pouco ao ouvir a voz de seu pai, um tom de autoritarismo claro, e olhou para o céu, percebendo que a noite já estava se aproximando, as sombras se alongando pela rua.

— Eu... preciso ir. — Ela disse, o tom de voz mais suave, mas com um olhar um pouco perdido, como se não quisesse partir.

Sam sentiu um impulso, algo dentro de si querendo garantir que eles se veriam novamente, que aquele momento não seria a última vez. Ele queria acreditar que tudo ficaria bem, que ela poderia ter uma vida normal. Então, com uma leve hesitação, ele perguntou:

— Você vai estar aqui amanhã?

Blake olhou para ele, a expressão séria, como se estivesse fazendo uma promessa silenciosa.

— Sim, eu vou. — Ela respondeu, um sorriso tímido se formando em seus lábios.

Sam, com o coração apertado, olhou para ela com mais intensidade.

— Promete? — Ele perguntou, sua voz um pouco mais urgente, como se aquelas palavras fossem mais do que uma simples pergunta. Ela hesitou, mas seu olhar era sincero.

— Prometo. — Blake disse, e algo na sua voz fez Sam acreditar nela, embora a preocupação ainda pesasse em sua mente.

Blake então se abaixou, pegando um laço de cabelo que ela usava para prender os fios ruivos, e o entregou a Sam.

— Aqui. — Ela disse, oferecendo o pequeno laço de cabelo com um sorriso travesso. — É para você. Para garantir que a gente vai se ver amanhã.

Sam olhou o laço com surpresa, e por um momento, pensou em recusá-lo. Mas, ao ver o brilho nos olhos de Blake, ele percebeu que isso era mais do que um simples presente. Era uma promessa. Ele sorriu e guardou o laço no bolso.

— Eu prometo, Blake. E para garantir que você também vai aparecer amanhã... — Ele hesitou por um momento, sentindo o peso da situação. Não era grande coisa, mas queria algo que fosse simbólico, algo que ela pudesse lembrar dele. Então, ele retirou do bolso uma chave velha, que sempre carregava com ele. Não sabia bem por quê, mas ela tinha sido importante para ele, um pedaço do seu passado, algo que o fazia se sentir seguro.

— Aqui. — Ele disse, colocando a chave na palma da mão dela. — Isso é para você. Como garantia de que a gente vai se ver amanhã.

Blake olhou para a chave, seus olhos refletindo a luz da rua enquanto ela a segurava delicadamente entre os dedos.

— O que é isso? — Ela perguntou, curiosa.

— É só uma chave. — Sam respondeu, com um sorriso sutil, tentando disfarçar o quanto aquilo significava para ele.

Blake olhou para a chave por mais um momento, e então, com um sorriso leve, colocou-a no bolso da saia.

— Eu vou cuidar dela, Sam. Prometo. — Ela disse, e havia algo sincero em suas palavras que fez o coração dele apertar, como se ela estivesse dizendo mais do que apenas isso. — Te devolvo amanhã.

Com um último olhar, ela se afastou, indo para a casa dela, e Sam ficou ali, observando-a. Ele sabia que, naquele momento, tudo o que ele tinha eram promessas e gestos pequenos, mas ele queria acreditar que, com aquilo, ela estaria segura.

No dia seguinte, Sam acordou com o aroma de bacon e ovos pairando pela casa. Ele se espreguiçou preguiçosamente na cama, ainda meio sonolento, e se levantou, sentindo o piso frio sob os pés. Quando entrou na cozinha, encontrou Dean em pé diante do fogão, fritando ovos com movimentos habilidosos, embora um tanto descuidados.

— Bom dia, Bela Adormecida. — Dean resmungou, sem sequer olhar para o irmão, focado em virar os ovos na frigideira.

Sam bocejou, passando a mão pelos cabelos bagunçados.

— O que você está fazendo?

— Um banquete. — Dean respondeu com sarcasmo. 

Sam revirou os olhos, acostumado com o sarcasmo matinal do irmão. Ele puxou uma cadeira na mesa da cozinha, bocejando.

— O que tá acontecendo lá fora? — Ele perguntou, apontando na direção da janela.

Dean resmungou algo antes de largar a frigideira e pegar um prato para servir os ovos.

— Sei lá, mas teve um barulho infernal de madrugada. Ambulância, polícia... Acho que a casa da frente tá no centro da confusão. — Ele colocou o prato na frente de Sam e se apoiou no balcão, cruzando os braços. 

— A casa da frente? — Ele perguntou, a voz saindo mais apressada do que pretendia.

Dean arqueou uma sobrancelha, notando a mudança no tom do irmão.

— É, por quê? Conhece alguém de lá?

Sam desviou o olhar, tentando parecer indiferente, mas o nó em seu estômago só crescia.

— Não... só... só curioso.

Dean deu de ombros, voltando para a frigideira.

— Bom, não sei o que aconteceu, mas a coisa parece séria. Tem uma fita de isolamento na entrada da casa agora. E se foi o velho dela que aprontou alguma coisa... — Ele deixou a frase no ar, mas o tom sugeria claramente o que ele pensava.

Sam se levantou de repente, sem tocar nos ovos, caminhando até a janela da sala. Ele afastou a cortina e viu o que Dean mencionara. A casa de Blake estava cercada por policiais, e uma ambulância ainda estava estacionada na calçada, com as portas traseiras abertas. Pessoas iam e vinham, falando rapidamente, mas a visão das fitas amarelas de isolamento era o que mais chamava sua atenção.

Um arrepio percorreu sua espinha. Algo estava errado. Muito errado.

— Dean, o que você acha que aconteceu? — Sam perguntou, tentando parecer casual, mas a urgência em sua voz era impossível de esconder.

Dean lançou um olhar rápido para ele, franzindo a testa.

— Sei lá, Sammy. Talvez o velho dela tenha surtado ou algo assim. Mas, olha, não é da nossa conta. — Ele colocou os ovos em um prato e se virou para encarar Sam. — Não começa com esse seu instinto de herói.

Sam ignorou a provocação, agarrando sua jaqueta pendurada na cadeira.

— Vou dar uma olhada.

— Sam! — Dean chamou, mas o mais novo já estava na porta, atravessando o quintal em direção à casa da frente.

Quando ele chegou mais perto, percebeu que os policiais estavam ocupados demais para notar sua presença. Ele se esgueirou pela lateral da casa, ouvindo partes de conversas enquanto tentava processar o que estava acontecendo.

— Suicídio confirmado... — Ele ouviu uma voz masculina dizer. — A garota foi levada pelos representantes legais, mas precisamos confirmar a identidade do grupo que a recolheu.

O coração de Sam parou por um instante. Ele respirou fundo, tentando ouvir mais.

— O pai se enforcou no quarto. Cena limpa, sem sinais de luta. A menina foi encontrada em estado de choque, mas já foi retirada por aqueles homens... Você viu os papéis que eles apresentaram?

— Vi. Tudo parecia legítimo, mas não deram informações de para onde estavam levando a garota.

Sam sentiu o sangue gelar. Ele queria avançar, perguntar o que estava acontecendo, mas sabia que não podia se expor. Em vez disso, deu um passo para trás, tentando processar tudo. O pai de Blake estava morto, e ela havia sido levada por homens que apresentaram documentos suspeitos. Algo dentro dele gritava que deveria fazer mais, deveria correr atrás, mas, naquele momento, ele era só um garoto.

Muito aconteceu depois daquele dia. Caçadas, tragédias, perdas. A vida de Sam e Dean seguiu o curso incerto de quem vive à beira do desconhecido, lutando contra monstros que ninguém mais enxergava. 

 Mas a lembrança de Blake nunca o abandonou. Ele nunca soube para onde ela havia sido levada, o que havia acontecido com ela depois que aqueles homens apareceram. E, por mais que quisesse acreditar que ela tinha encontrado um caminho seguro, o vazio daquela promessa quebrada o acompanhou por anos. Sam nunca mais viu a menina de novo.

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