stellae

banner by Malleficarum


A FUMAÇA subia pelas paredes e embaçava o espelho, preenchendo o cômodo com o calor que tanto lhe fizera falta. Frank deixou a água envolver seu corpo por completo.

Tão rápido quanto haviam se instalado na sala, os três tiveram que sair — um chamado vindo do quarto e o alarde de Rose em esconder Frank já dissera o suficiente. Não sabiam da história toda ou dos motivos por trás das coisas, mas tinham certeza de algo: Albert não poderia saber de imediato que seu sobrinho estava livre novamente.

Frank foi direto para o banheiro, trancando a porta, enquanto a garota distraía seu pai e Leonard buscava uma muda de roupa para o homem que retornava à sua casa. Se é que ainda poderia chamá-la de sua; todos que ele conhecia e amava já haviam saído há tempos, os detalhes que lembrava da infância apagados com o tempo. Para ele, naquela casa restavam apenas fantasmas — resquícios de pessoas que ali estiveram e momentos ali vividos.

Sua cabeça emergiu da banheira, e Frank a apoiou na borda. Inspirou fundo, com os olhos ainda fechados. Apenas assim conseguia ver os rostos que esperava encontrar: sua mãe, Ida, Samuel. Em vez disso, os rostos de Rose e Leonard carregavam traços de uns e outros, reconhecíveis e ao mesmo tempo novos.

Era evidente que as coisas estavam diferentes, mas o passado ainda se fazia presente naquela casa, mesmo com as tentativas de enterrá-lo.

Se ele realmente se concentrasse, poderia fingir que as vozes abafadas de Rose e Albert na cozinha eram na verdade Ida e seu tio Samuel debatendo o que jantar. Talvez pudesse olhar pela janela e ver o belo jardim de sua mãe banhado pelo Sol, em vez do amontoado de ervas daninhas e flores mortas. Podia fingir que assim que abrisse a porta do banheiro, Emma estaria o esperando para um abraço apertado.

Ainda era difícil de digerir a informação. Parecia um sonho ruim, uma piada de mau gosto, uma ilusão. Parecia falso. Parecia falsa a maneira como, mesmo depois de sua liberdade, ele não podia ter o que mais queria. Parecia falso como não saía nenhuma lágrima; nem quando ouviu a notícia na sala de estar, ou refletindo sobre ela na banheira. Parecia tudo uma armação ou um devaneio de um Frank ainda delirante no poço.

Mas a dor era real. Tanto física, em seus músculos por tanto tempo dormentes, quanto mental. Aquela que martelava em suas têmporas e o nó que prendia sua garganta. A sensação angustiante no peito. Não havia água quente ou cobertor que aliviasse esse tipo de dor, que gritava dentro dele mesmo, e que provavelmente era fulminante ao ponto de impedir qualquer lágrima de sair. Por mais horrível que fosse, a dor era o que lhe garantia que aquilo não era apenas um sonho de liberdade.

Frank ficou na banheira por horas. Se secou e se vestiu com uma calma sobrenatural, aproveitando cada momento e sensação. O tecido escorregando por sua pele, os calos nos pés sendo acolhidos pela sola macia de um sapato. Com os dedos, envolveu o cabo de madeira da bengala que Leonard deixara junto às roupas, e calmamente foi abrir a janela do banheiro. A fumaça saiu pela abertura.

Em seguida, foi até a pia e se olhou no espelho acima dela. Era como encarar a um estranho. O cabelo estava grande, molhado e bagunçado; sua barba tornava quase impossível uma visão inteira do rosto. Um rosto que ele não conhecia como seu. Abrindo o armário do espelho, Frank pegou uma lâmina, um vidro e uma tesoura. Se lembrava de, ainda pequeno, observar seu tio Samuel fazer a barba em frente ao espelho. Não parecia ser tão difícil.

A lâmina percorreu cada curva de seu rosto. Sua mão tremeu e sangue escorreu de sua bochecha. Não interrompeu o trabalho. Se olhar no espelho era como revelar uma foto — por baixo da barba, via um rosto completamente novo. Era seu, mas nunca havia sido reconhecido como tal.

Frank pegou a tesoura, apoiando a lâmina na pia. O rosto agora era emoldurado por seus cabelos. Daria um jeito naquilo também.

Fios se amontoaram no chão e caíram por seus ombros. Ele quase cortou a própria orelha por acidente. Quando terminou, agora sem barba e com e os cabelos curtos levemente tortos, parecia outra pessoa. Se demorou um pouco mais observando as próprias feições no espelho.

Lentamente, talvez até um pouco hesitante, Frank se dirigiu à janela do banheiro mais uma vez. Abriu-a ainda mais e dessa vez colocou a cabeça para fora, erguendo o olhar na direção do céu. Dali, conseguia ver as estrelas.

Desde pequeno, Frank sempre gostara de observar o céu noturno. Não sabia os nomes das estrelas e constelações, mas gostava de apontar para elas e imaginar histórias, nomes, desenhos. Subia ao sótão com sua mãe e ela o levantava à altura da janela, para que pudessem juntos contemplar os astros.

Frank suspirou, deixando o vento frio da noite bater em seu rosto. Era inevitável — em cada lugar, para cada canto que olhasse, ele veria um pedaço de Emma olhando de volta.

Depois de anos sem nem ao menos ver o céu em sua plenitude, Frank via nas estrelas uma certeza. A casa mudara, as pessoas mudaram, mas o céu não; ao menos não a olho nu, não a ponto de as constelações estarem irreconhecíveis. As estrelas estavam ali, a milhares de anos-luz de distância, e eram como uma mensagem do passado — seja do passado distante de onde vinha sua luz, seja das noites tranquilas de trinta anos atrás.

Naquele momento, ele gostava de pensar que sua mãe estava nas estrelas. Que ela o olhava de cima e que aquele brilho reconfortante dos astros era sua maneira de lhe dar um abraço depois de tanto tempo. E nas estrelas ele conseguia ler o "Eu te amo, meu filho," na voz doce de Emma, como quando era criança e sentava em seu colo para alcançar a lente do telescópio.

Frank fechou os olhos, e deixou que as estrelas o vissem chorar.

Só saiu da janela, em silêncio, quando parecia não haver mais lágrimas a caírem. Lavou o rosto na pia, vendo seus olhos vermelhos no espelho. Ainda não parecia real — o corte na bochecha quando tirou a barba, as linhas tortas do cabelo recém-cortado, o rosto marcado pelo tempo que ele mesmo não reconhecia. Nada parecia real.

Frank foi tirado de seus pensamentos pela porta do banheiro se abrindo. Rose hesitou em entrar, ainda olhando por cima do ombro, mas fechou a porta atrás de si e se deixou relaxar após alguns segundos.

— Meu pai está na sala lá embaixo. — Ela manteve a voz baixa. Rose parecia sempre medir suas palavras. A garota olhou para Frank, das roupas elegantemente casuais ao cabelo torto, e foi até o homem, próximo à pia. A tesoura prateada reluziu em sua mão. — Posso consertar, se quiser.

Frank assentiu lentamente, puxando um banquinho de madeira do canto do banheiro. Ele apenas se olhou no espelho enquanto a garota mexia em seu cabelo, fazia ajustes aqui e ali, com uma calma sobrenatural e a firmeza de quem sabia o que estava fazendo.

Como tudo naquela casa, Rose era um mistério. Ainda era inconcebível para Frank que Albert Vanderboom, o homem que jogara uma criança em um poço, resolveu ter uma. Mesmo assim, lá estava a adolescente ruiva que chamava Albert de pai e parecia viver sob suas regras — ao menos até aquela tarde, quando o resgatara do poço aparentemente de maneira repentina.

Por mais que algumas coisas nela realmente remetessem a Albert — as olheiras marcando a pele pálida e a figura magra, por exemplo —, suas ações até o momento divergiam drasticamente do que Frank esperaria de alguém criado por... ele. Ela não era uma cópia de seu pai, e o simples fato de ela estar ajudando-o já deixava isso claro. Sabe-se lá o que movia a jovem Rose; de fato ela era uma figura enigmática, principalmente porque Frank a conhecia há tão pouco tempo.

O pai da garota, no entanto, infelizmente era uma figura familiar. Como o único rosto que viu por longos 30 anos, já parecia estar gravado em sua memória da pior maneira possível. Apenas pensar em Albert por um segundo já ligava nele algum tipo de alerta — uma resposta de fuga ou luta, a indicação gritante de que ele era uma ameaça.

Albert era o principal e único responsável por sua vida ter sido um inferno.

O único som no ambiente era o barulho metálico da tesoura e ocasionalmente os sapatos de Rose, mudando de posição a seu redor. Foi Frank quem quebrou o silêncio.

— Você sabe o que vai acontecer, não sabe? — Ele a encarou através do espelho. Talvez não fosse óbvio a todos, mas o homem suspeitava que Rose já percebia, àquele ponto, o que significava Frank e Albert sob o mesmo teto depois de tanto tempo.

Ela hesitou por um momento antes de responder.

— Eu sei que ciclos se encerram. — Rose não encarou de volta, concentrada em terminar o corte. Sua expressão não parecia se alterar. — Que histórias chegam ao fim. E que as coisas que você faz retornam para você, de um jeito ou de outro.

O banheiro foi inundado pelo silêncio mais uma vez.

Quando ela terminou, ergueu o olhar para encontrar o de Frank no espelho. Ela sabia de suas intenções, e sua ajuda era como um apoio silencioso. A garota assentiu levemente com a cabeça.

Frank se levantou do banco, olhando o próprio reflexo uma última vez. Abriu a porta do banheiro e desceu as escadas rumo à sala, se apoiando na bengala de madeira e no corrimão. No andar de cima ainda haviam quadros — de Emma, Samuel, Ida, e até ele quando criança —, e estes pareciam encará-lo enquanto descia os degraus de cabeça erguida. Estava cansado de se esconder.

Ele se apoiou no batente da porta, ainda hesitando em entrar na sala, olhando com firmeza para a figura que tomava um chá e se sentava de costas para a entrada. Frank apertou o cabo da bengala com mais força.

— Boa noite, tio.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top