lux
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A LUZ se mantinha alta e inalcançável, lá em cima. Acima de pedra e terra e madeira, não exatamente visível de lá debaixo, porém fazendo sua presença notável por entre frestas e aberturas. Era um resquício de mundo exterior ao qual ele se agarrava, constantemente de cabeça erguida como um girassol seguindo sua fonte de calor.
O poço era a pior das prisões, porque, há trinta anos, ele ainda dava a Frank esperança.
Era a esperança que o mantinha vivo. Ele tinha certeza. A mão esquelética entregando comida por uma grade era apenas uma necessidade biológica — a mental, a essencial para que não tivesse se matado no auge da adolescência ou há horas atrás, fora esperança. Esperança de um dia sentir o Sol no rosto novamente, de tocar a grama e deixar a brisa levar os aromas do ambiente mais uma vez.
De olhar nos olhos de sua mãe, e abraçá-la forte. Frank se lembrava apenas vagamente de Emma — seus cabelos dourados, o semblante tranquilo e belo. Às vezes aparecia uma memória de sua voz ou uma imagem dela sentada na grama, cuidando de seu jardim. Ele tentava manter para si a imagem de seu rosto, como um segredo bem guardado, para que nunca pudesse esquecê-la.
Há muito suas roupas ficaram pequenas, e os cabelos estavam enormes. O único resquício do menino de seis anos era um ursinho de pelúcia, puído e gasto, em um canto mais afastado (ou o máximo que algo possa estar em um poço daquelas dimensões). Há muito o mundo acima esquecera dele.
Mas ele não esqueceu o mundo acima, e o papel em suas mãos demonstrava isso.
Fora como um milagre — alguém derrubar um papel naquele poço, descuidadamente em uma tarde qualquer. Ele tinha encontrado uma pedra parecida com grafite ou carvão alguns dias antes, com a qual deixara marcas pretas nas paredes, mas aquele papel podia ser a chave para sua liberdade. Ele apenas precisava de uma maneira de levar o papel para fora do poço.
Depois de muito tempo pensando — desse luxo ele não podia reclamar da falta —, Frank fizera um aviãozinho de papel. Levara um tempo para relembrar as dobras, depois de trinta anos, mas o pequeno planador voava como em sua época de menino.
Para que chegasse até o lado de fora do poço, Frank esperou. Precisava de vento. Precisava da presença de pessoas, e evitar a presença de pessoas específicas também. Esperou horas, dias, semanas; o que mais tinha para fazer? Não tinha muita noção do tempo, apenas que ele se passava.
Até que um dia, ele sentiu. Sentiu a brisa descer até as pedras frias do fundo do poço; e percebeu que chegara a hora. Frank ergueu a mão e lançou o projétil aos ares. O aviãozinho foi carregado pelo vento e erguido alguns metros, antes de dar uma pirueta no ar e cair ao lado do homem novamente. Ele franziu a testa.
Frank lançou o avião novamente. Uma corrente o impulsionou para cima, mas o avião colidiu com a parede e caiu mais uma vez. Não acabaria assim. Ele ergueu o braço, esquelético, movendo-o para trás e deixando por uma terceira vez o papel escapar por entre seus dedos. Para cima. Para o alto. Para a luz.
O avião deu uma pirueta e parecia prestes a cair em sua cabeça mais uma vez, mas Frank observou incrédulo uma corrente de vento fortuita empurrar o aviãozinho para cima. E mais para cima, no ângulo que precisava, graciosamente flutuando até sair de vista. Por cima da borda do poço. Para o lado de fora.
Ele esperou. Não muito, pois logo ouviu alguns sons: passos, vozes, era tudo muito baixo e indiscernível. Depois de alguns minutos, o som que preencheu o ambiente era um conhecido — a corda se desenrolando do cilindro de madeira, um balde de metal descendo em sua direção. Frank sorriu.
Naquele mero aviãozinho de papel, Frank escrevera uma mensagem. Uma mensagem para qualquer um ler, uma que qualquer um entenderia. Um pedido de ajuda, como tentara diversas vezes ao longo dos anos. A diferença é que, naquela vez, havia funcionado.
O balde atingiu o chão. Não era muito grande, mas deveria bastar para seu fim. O homem testou a corda com um puxão; firme, presa ao cilindro de madeira que já aguentara seu peso uma vez. Sim, tudo daria certo e estava como seu plano; como ele pensava há anos. Seu coração palpitava em ansiedade, mas o corpo continuava preso na estática da hesitação.
Frank olhou em volta. As paredes de pedra que já conhecia como a palma da própria mão. O chão sujo, as roupas jogadas no canto, o velho ursinho de pelúcia. Este último ele pegou, sentindo o tecido agora áspero entre os braços magros. Era uma lembrança; uma memória.
Frank olhou para cima, vendo as telhas da cobertura do poço, provavelmente pela última vez daquele ângulo. Com uma boa dose de esforço, ele se levantou. Fazia um bom tempo que não o tentava, para falar a verdade — seus ossos não tinham mais tanta força e ele teve dificuldade para se mover até o balde metálico. O homem se sentou dentro do balde, cruzando as pernas próximas ao peito, e fez a corda tremer.
Após alguns segundos, o balde começou a se erguer, com óbvio esforço vindo daquele que girava a manivela.
Frank estava finalmente livre.
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Fazia um bom tempo desde que Rose vira um rosto novo. Ela crescera ao lado de Leonard, fora educada por seu pai e provavelmente nunca saíra daquela casa. O Sol não banhava seu rosto com muita frequência; ainda assim, ela se encontrava no jardim naquele momento oportuno.
Albert nunca deixara a garota ficar muito tempo do lado de fora, mas aos dezesseis anos Rose já tinha autonomia o suficiente para se aventurar pelo extenso jardim da casa Vanderboom. Era um lugar quase que mágico — tinha seu ar misterioso, um tanto abandonado; talvez pelo canteiro de flores descuidadas, pertencente a uma tia da qual vira apenas um retrato; ou a grande árvore da família com seus galhos retorcidos. Apesar de todo o ambiente colaborar para a imagem, o que completava o clima era sem dúvida o velho poço.
Rose não se aproximava muito do poço, mais uma das exigências exageradas de seu pai, mas naquele dia ela e Leonard se sentavam na grama por ali e aproveitavam a brisa. Se mantinham em um silêncio.
Os fios ruivos da garota estavam presos em um coque, com apenas um ou outro balançando ao vento, e reluziam com os raios do Sol. Leonard, por sua vez, encarava o céu com um olhar mais aéreo, quase que perdido. A perna de madeira, substituindo a perdida na guerra, se apoiava no chão. Silêncio.
Rose nunca fora muito de palavras, mas o silêncio com Leonard era... esquisito. Por mais que o visse como um irmão mais velho, ele sempre esteve distante — parecia até que não gostava de sua presença, mesmo que sempre tenha sido educado com a garota.
O momento estático foi interrompido por um pequeno avião de papel. Flutuando etéreo e tranquilo, poderia ter sido jogado por uma criança qualquer; o inusitado era que vinha do velho poço.
Rose se levantou de prontidão, pegando o planador e desfazendo as dobras. Reconheceu o papel — uma folha arrancada de seu próprio caderno, como comprovavam os arabescos desenhados no canto —, provavelmente jogado ao vento em um momento de raiva e levado ao poço pela brisa. Rose sempre gostara de um certo enigma, um ar de mistério, que a levava a vasculhar os artefatos mais obscuros de seu pai. Mesmo assim, ela segurou a respiração ao ler as palavras mal-escritas em preto. "ME AJUDE A SAIR". Seu olhar foi até o poço.
Ela nunca entendera direito por que seu pai a proibia de se aproximar do poço, e Rose nunca fora muito de quebrar regras. Mas, no momento, as peças começavam a se encaixar. Provavelmente, para Albert Vanderboom, o que — quem — quer que estava lá dentro deveria continuar lá.
Isso não impediu Rose de correr até o poço, descendo o balde de metal há muito fora de uso. Leonard voltou o olhar à prima, parecendo sair de sua espécie de transe apenas ao ouvir o barulho da madeira girando e o metal batendo na pedra, poço abaixo.
— Rose? — Ele se levantou, andando com uma certa dificuldade até a ruiva e o poço. — O que você está fazendo?
Ele tentou olhar pela beirada, mas Rose o parou com o braço. Em vez disso, a garota colocou a ponta da corda em sua mão; tinha a desenrolado da manivela, provavelmente para conseguir a ajuda de Leonard.
— O que quer que seja, quer ajuda. — Ela tinha um bom coração, Rose, mesmo sem algum antecedente familiar em relação à característica. Como uma flor que desabrochara da mais fria pedra. — Pode me ajudar a puxar?
Leonard hesitou. Era uma brincadeira de adolescente, provavelmente, ou mais uma das esquisitices daquela família. O olhar de Rose era sério, e não se desviava de suas próprias íris. A segunda opção. Ele inspirou fundo.
— No três. — Leonard pegou a corda e a tensionou, se posicionando atrás de Rose.
Com uma contagem baixa, os dois puxaram a corda. Era menos peso do que esperavam, mas claramente era necessário um esforço para erguer o balde. Um, dois, três, de novo. As mãos de Rose ardiam. Mais passos para trás, e o balde continuava a se erguer. Leonard franziu a testa com o esforço. Um, dois, três, mais uma vez — a ruiva por pouco não escorregava na grama. Leonard puxou mais uma vez, e assim que ouviu a voz de Rose o indicando que parasse ele amarrou a corda em uma árvore, fortificando o nó para prendê-la no lugar. Pela primeira vez, Leonard levou seu olhar ao que diabos estivera tanto tempo dentro do poço.
Nem ele e nem Rose esperavam um homem.
Subnutrido, pálido e nu, o homem se sentava no balde com as pernas cruzadas. Deveria estar dentro daquele poço há anos, a julgar pela maneira como seus olhos se fecharam em frestas e ele demorava a se acostumar à luz do Sol no ambiente. Rose podia jurar que vira lágrimas se formarem nos cantos de seus olhos, mesmo que elas não tenham chegado a cair.
Leonard instintivamente se colocou na frente da garota.
— Quem são vocês? — O homem fez a primeira pergunta, com a voz rouca e provavelmente pouco usada nos últimos tempos.
— Eu sou a Rose. Esse é o Leonard. — Apesar do olhar de protesto de Leonard, a ruiva se dirigiu ao estranho com um projeto vago de sorriso no rosto. Era sua maneira de se mostrar amigável.
— A pergunta é quem é você. — Leonard já foi um tanto menos amigável, cruzando os braços e encarando o outro.
— Eu sou o Frank.
Um momento se passou antes que Leonard fosse tomado por uma lembrança.
Quando Leonard era pequeno, sua tia costumava ficar no jardim de dia e à janela à noite. Com seus cabelos loiros presos em um coque e vestindo roupas pretas de luto eterno, ela se sentava ao lado da janela e apenas olhava para o alto. Para o nada. Para o tudo. A imensidão do céu estrelado parecia refletir em seu olhar — um olhar cansado e distante, de quem procura algo além do infinito.
O mesmo olhar se via no homem à sua frente.
— Frank Vanderboom. Filho de Emma Vanderboom.
Seus pais sempre o avisaram para ser gentil com sua tia; um ensinamento que ele estendeu para todas as pessoas. Não perguntar demais. Não ir incomodá-la no jardim nos dias que ela se sentava na frente do cavalete e parecia não se mover por horas, encarando uma tela em branco. Seus pais diziam para não se sentir culpado quando ela começava a chorar aparentemente sem motivo, quando ele corria atrás de uma bola ou brincava no balanço.
Seus pais não lhe disseram muita coisa quando ela se enforcou na árvore da família, naquele mesmo jardim; apenas que ela sentia falta de seu Frank.
O Frank que agora estava à sua frente.
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Frank levou a caneca de chá quente à boca, se aninhando na poltrona. O tecido do cobertor, o calor descendo por sua garganta, a maciez do assento — era tudo como novo e ao mesmo tempo estranhamente familiar.
A primeira coisa que Leonard e Rose fizeram após tirar o homem do poço foi levá-lo até a sala e preparar um chá. Era outono, e ele estava gelado; Leonard trouxe-lhe um cobertor e ele se acomodou em uma poltrona, apenas digerindo o ambiente e a situação.
A casa, impressionantemente, não havia mudado quase nada; o papel de parede era o mesmo, agora apenas um pouco desbotado; o piso era feito das mesmas tábuas de madeira; até a mobília parecia ser a mesma de quando era um garoto. A única coisa diferente eram as estantes vazias — antes repletas de porta-retratos com fotos de família, imagens dele brincando no jardim, retratos tirados de seu tio ou desenhos de sua mãe.
Após alguns segundos de silêncio, digerindo o ambiente à sua volta, Frank abaixou a xícara e se dirigiu aos dois que se sentavam em um sofá ao seu lado.
— Vocês sabem onde está... Emma? — Mãe. As palavras ainda saíam estranhas e hesitantes, tanto pelos anos de silêncio quanto pelo peso da pergunta. Alguma coisa naquela casa o fazia já saber a resposta. — Emma Vanderboom, ela...
Leonard abaixou o olhar.
— Eu sei. É minha tia. Já faz anos que ela... — Se enforcou na árvore da família, ele diria; em vez disso, a frase foi morrendo com um aceno de cabeça de Frank. Havia entendido.
Mais um gole do chá. Frank fechou os olhos, sentindo o gosto do líquido quente. A xícara em suas mãos não caiu por um milagre; por mais que tentasse evitar, seus dedos tremiam. Ele não deixou Leonard terminar porque sabia o final daquela frase. Estava preso em sua garganta e empurrado até o canto mais obscuro de sua mente, encoberto com camadas e camadas de esperança; mas naquele momento se libertava e se mostrava a amarga verdade.
— Ela morreu.
As palavras saíram de sua própria boca — parecia menos doloroso do que ouvir da de outra pessoa.
— Tio Sam? — Ele olhou para Leonard e Rose, que pareceram não entender. — Samuel. Samuel Vanderboom.
Frank viu o outro homem umedecer os lábios; estavam tocando em assuntos delicados, porém ele precisava se atualizar sobre a família. Rose continuava um tanto confusa, mas quieta e atenta à conversa.
— Morto. — Pelo visto, Frank não era o único que perdera família ali; agora que reparava, conseguia ver traços do tio no homem à sua frente. — Ida também. Meus pais estão mortos.
— ...Victor Butzelaar?
— A mansão pegou fogo há um bom tempo.
O silêncio desconfortável se instalou mais uma vez; Frank já acabara com sua xícara àquele ponto, enquanto Leonard nem havia tocado na que Rose fizera para ele. A ruiva foi quem se pronunciou, apoiando na mesinha de canto a própria xícara de porcelana ornamentada.
— Por que você estava no poço?
— Alguém me colocou lá. — Frank apoiou a xícara na mesa, com calma.
— Por quanto tempo?
— Por quê?
Engolindo em seco, ele não respondeu. Não sabia por quê e não sabia exatamente quantos anos passara lá. Algo que ele sabia, no entanto, era que a verdadeira pergunta nas mentes dos dois era quem?
Uma pergunta que ele sabia muito bem a resposta, mas não tinha certeza se os dois estavam preparados para ouvi-la.
— Eu deveria contar pro papai? — Ela olhou para Frank e então Leonard, que a encarou novamente em uma espécie de cumplicidade. Não, não exatamente cumplicidade; o olhar era como o de quem discute um plano perigoso ou uma alternativa arriscada. A resposta de Leonard confirmou a observação de Frank.
— Não. — Estava evidente que o homem, automaticamente, ficara tenso com a mera ideia de contatar seja lá quem eles estavam falando sobre. — Definitivamente não.
— Quem é seu pai?
— O pai dela, Frank, — Leonard apoiou sua própria xícara na mesinha, ao lado da de Rose, antes de continuar — não é uma pessoa com a qual podemos contar. Acredito que você saiba disso.
O olhar do mais velho se voltou para Rose, que por sua vez encarou o chão. Não exatamente tinha como refutar a constatação. Frank escaneou os arredores, seu olhar parando em um retrato antigo; talvez o único reconhecível que ainda ficara naquela estante. O rosto apático era o mesmo que assombrava suas memórias.
Pelo visto, o mesmo nome era a resposta para as perguntas de todos.
— Albert Vanderboom.
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