Amostra


Era em momentos assim que Helena se sentia no topo do mundo, quando ela fazia a avenida Paulista se resumir ao que cabia no enquadramento da máquina fotográfica em suas mãos.

Tinha tanta coisa que poderia dar errado! Ela podia ter confundido tudo que o professor tinha falado e estar fazendo exatamente o contrário quando ajustava a sensibilidade à luz. Ou podia estar fazendo certinho, mas se mexendo demais para que sua amiga – temporariamente modelo – ficasse tão borrada quanto as luzes de freio dos carros que passavam atrás dela. Quem garantia que seus olhos estavam funcionando direito e eram capazes de regular o foco? Sem contar, é claro, com as roupas que ela tinha escolhido para sua Mariana, que, no mundo a cores, estavam bastante bregas. Só restava torcer para elas funcionarem perfeitamente na revelação em preto e branco.

Nada disso parecia importar para Helena. A cada passo que ela dava, cada vez que se inclinava, quase caindo para trás, se sentia mais em controle, como quem tinha nascido com o talento da fotografia e conseguia prever os ângulos perfeitos sem precisar pensar muito no assunto, só se soltar. Ela se abaixava, se entortava, chegava ao limite do que teria considerado ridículo na sua adolescência.

E se sentia no topo do mundo.

Era a estranheza no olhar de quem passava por elas, talvez a curiosidade deles que ela fingia não perceber; mas era também uma certeza profunda e intensa que ela sentia em seu peito de que amava o que fazia. Ali, ela era a fotógrafa, ela que comandava, ainda que fosse um simples trabalho de faculdade. Mesmo quando tinha total consciência de que estava só se esforçando por uma nota, se dedicava completamente. Seus pés quase fugiam do chão, prestes a levitar a cada passo que davam.

Não fazia muito tempo que ela tinha desenvolvido aquela teoria, a que usava quando Mariana ria ao perceber que ela tinha andado de ré e esbarrado em um pedestre de novo. Antes de se mudar para a cidade, quando ainda se escondia no fundo de uma sala do Ensino Médio e torcia para que a piadinha ofensiva dos garotos da sala não fosse dessa vez sobre ela, Helena nunca teria imaginado que um dia estaria ali, com as mãos na cintura, uma câmera pendurada no pescoço e nenhum constrangimento em seus ombros.

— Vergonha só tem força se você der atenção — ela contou sua teoria à Mariana, quando a amiga se escondeu para fingir que não a conhecia depois de mais um encontro com pedestre.

Eram mais do que palavras, era uma certeza de que nenhum olhar atravessado ou murmúrio grosseiro mesmo depois de ela pedir desculpas a atingiria. Nada conseguiria roubar sua felicidade ao mirar a câmera outra vez na direção da Mariana descontraída e tirar uma foto que precisaria valer o filme que ela estava gastando sem pensar direito em exposição e foco ou qualquer coisa assim.

A confiança em seu trabalho era tanta, que ela nem se preocupou, continuou sentindo seus pés dançarem pela calçada como se fosse uma fotógrafa famosa e conceituada.

Mas ela não sorria. Estava concentrada demais para isso. Só quando parava, girava no meio da rua para buscar outro lugar onde mandar sua amiga posar, que ela inevitavelmente deixava seus lábios se curvarem livres. Então logo voltava a se concentrar.

Depois de uma hora clicando sua amiga, Helena sabia que tinha só mais dez fotos. Ainda queria tirar uma dela se girando também, no meio das pessoas, e outra quando desse cinco e meia da tarde, ou seis horas, para poder fazer um desenho com luz e movimento.

Fotos assim sempre precisavam de mais do que só alguns cliques, então ela reservou quatro para cada. As outras duas gastaria para um enquadramento que só pegasse o rosto da amiga, algo bem conceitual que nem precisasse mostrar as roupas, ainda que o trabalho fosse para uma faculdade de Moda.

— Olha para mim como se fosse minha chefe e precisasse me intimidar só com sua expressão — falou para sua amiga, Mariana.

— Assim? — ela questionou, encarando a lente da câmera como se a quisesse perfurar. Aquele não era seu primeiro ensaio, e Helena apostaria que a amiga conseguiria trabalhar como modelo futuramente, para além de trabalhos da faculdade.

Helena não perdeu um segundo para colocar a câmera de volta na frente do rosto.

— Exatamente assim — respondeu, logo escondendo o sorriso que ameaçava lhe tomar.

Ela precisava se concentrar. A máquina fotográfica era analógica e requeria muito cuidado a cada foto. Principalmente já que ela só descobriria se tinha funcionado na segunda, quando fosse revelar na sala escura e quase monopolizar o tempo do assistente.

Sua mão esquerda foi até o foco, levando-o ao limite do embaçado, só para ir arrumando de pouquinhos até ter quase certeza absoluta de que estava perfeito. Depois, correu seu único olho aberto pelo enquadramento da foto, checando para ver se sua amiga não estava estranha, se um cabelo não estava fora do lugar, se um carro horrível não passava atrás, se o grande amor da sua vida não atravessava a rua.

Ela ficou sem fôlego na hora e deu as costas para a amiga, que ficou sem saber o que estava acontecendo.

Helena respirou fundo, duvidando do que seus olhos tinham acabado de ver, mas tendo certeza absoluta do que sentia.

Dois segundos. Esse foi o tempo que ela se permitiu qualquer vulnerabilidade. Virou para a amiga logo depois, sorrindo e jurando para si mesma que não conseguia sentir o frio na sua barriga que começava a fazer com que ficasse enjoada.

— Está tudo bem? — Mariana perguntou, e Helena até assentiu, mas não tinha forças o suficiente para desviar seus olhos para a amiga, nem que tentasse muito.

Ela acompanhava o garoto que terminava de atravessar a rua, que parou para ajudar uma menina cujos livros caíram no chão e então seguiu seu caminho.

Na direção dela.

Aquela devia ser a esquina mais movimentada da cidade – senão do país! –, ela nunca tinha pensado que poderia encontrá-lo ali! Depois de anos sonhando acordada com o momento em que o veria outra vez, já tinha chegado a desistir daquela ideia. Já tinha superado.

Entendeu, Helena?, se perguntou. Você já superou. Não tem por que ficar nervosa. Nem fugir dele.

Era essa sua vontade. Ainda que tentasse se convencer de que não era, torcia para que ele não a visse.

Ao mesmo tempo, para que a percebesse.

Teria sido impossível não perceber. Primeiro, porque sua amiga ainda estava logo aí, vestindo uma cartola e um casaco roxo enorme em pleno março; mas principalmente porque, antes que se desse conta do que estava fazendo, Helena se colocou na frente dele.

— Enzo — ouviu sua própria voz dizer, fazendo com que ele levantasse a cabeça e encontrasse seus olhos.

Eles não eram amigos. Nunca tinham sido. Sua relação se resumia basicamente a ela ser completamente apaixonada por ele e ele simplesmente não lhe dar a menor bola.

Mas isso era no colegial. Não importava agora.

— Eu achava mesmo que era você! — ela continuou, nada natural e falando só o que achava que pessoas normais diziam em momentos como aquele.

— Helena... — ele disse, menos certo do que ela, o que, se é que ela tinha coragem de admitir para si mesma, lhe deu uma pontada de vergonha. — Quanto tempo — foi o jeito que ele encontrou de responder, enquanto tentava superar a surpresa de encontrá-la ali e colocava as duas mãos nos bolsos.

Quando fez a menor menção de se inclinar para a frente, ela pensou que lhe daria um beijo no rosto. Sempre tinha achado aquela tradição dispensável – sua teoria principal sobre aquilo era que trazer demonstrações de afeto para o "aceito" e "esperado" na menor das interações forçava quem não gostava a ser considerado estranho ou engolir seu próprio desconforto. Agora, em compensação, lhe parecia terrivelmente agradável. Ainda que tivesse criado um dos momentos mais desconfortáveis da vida dela, em que ele logo deu para trás, ela foi dar um beijo no rosto dele e Enzo acabou ainda mais perdido naquilo tudo.

Os dois olharam discretamente para qualquer outra coisa depois, esperando o constrangimento passar. Ele com suas mãos no bolso, ela mexendo na câmera e se forçando a superar aquele clima terrível.

Já fazia anos. Ela tinha superado. Ela não era mais aquela garota insegura.

Certo?

— Não sabia que você tinha se mudado para São Paulo! — Ela exclamou depois de alguns segundos, torcendo para suas palavras terem um poder sobrenatural de fazê-la esquecer de como aquela conversa estava esquisita.

— Não me mudei — ele correu para se explicar, tirando uma mão do bolso só para esfregar sua nuca em uma tentativa um tanto dolorosa de se livrar momentaneamente da timidez. — Vim só para uma festa amanhã. Só estava indo pegar a chave do apartamento de um amigo.

Ela quis tocar em seu braço, mas só assentiu. Tudo bem ter superado, mas tocá-lo seria demais. Afinal, eles ainda não eram amigos. Nunca tinham sido.

Mas por que não podiam ser agora?

— Vai ficar na casa dele? — Antes que ele respondesse, ela já pensava na próxima pergunta que faria caso o assunto morresse tragicamente. Definitivamente não seria, Quer ficar na minha?

— É, vou. — Enzo devia ter percebido que estava na hora de ele também contribuir para a interação e olhou rapidamente por cima do ombro, logo trocando acenos com a amiga de Helena. — Tá trabalhando?

— É pra faculdade — ela respondeu na hora, sentindo seu coração vir parar na boca.

Aquilo era idiota. Ela nem gostava mais dele. Não tinha por que ficar nervosa.

Mas, quanto mais pensava em como devia ficar calma, mais parecia ficar ansiosa.

— Você vai fazer alguma coisa mais tarde? — Assim que as palavras saíram de sua boca, ela quis as engolir outra vez. Aquela parecia ser só mais uma atitude de sua nova personalidade aventureira e destemida da faculdade, mas definitivamente não era a hora para ser rejeitada. — Nós vamos acabar em uma meia hora — continuou explicando, ignorando como seu nervosismo competia com sua determinação de não dar para trás agora. Até ajeitou sua postura, buscou pelos olhos dele e o encarou, tranquila e amigável. — Quer tomar um café?

Para sua surpresa, Enzo sorriu e, pela primeira vez desde que tinham quase se esbarrado na esquina da Paulista com a rua Augusta, a olhou de volta sem parecer contar os segundos para desviar.

— Quero.

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