18 - Tudo bem, se não estiver sozinha

Agora

Zyskla não seria ela mesma se não tivesse feito aquilo. Estavam passando por uma estrada de terra rodeada de verde. Havia um campo enorme do lado esquerdo, com algumas árvores, e do lado dirieto um enorme lago limpíssimo e muito convidativo. Já era verão e, ainda que chovesse muito na chegada do crepúsculo quase todos os dias, fazia muito calor. O sol havia espalhado toda a sua coloração laranja pela extensão do céu. As nuvens estavam pesadas e todos sabiam que elas pensavam em se enxugar naquele momento. Assim que ouviu as primeiras gotas de chuva se lançarem ao chão, Zyskla saiu da carruagem ainda em movimento e correu para o lago.

Ela tropeçou e quase caiu ao chão, mas rapidamente se equilibrou com uma linda acrobacia. Aiyra assistia àquilo com um grande sorriso no rosto. Apesar de ter passado alguns perrengues, já estava acostumada ao jeito do Circo de Xalen e se sentia parte dele. Em meio aos risos, saiu atrás de sua amiga, sendo seguida por cada vez mais pessoas.

À essa altura, toda a viagem estava interrompida. Até mesmo os animais estavam sendo retirados para se refrescarem na água do lago. As gotas de chuvas eram grossas e faziam um grande escândalo ao chegarem ao chão. Só não era maior que a bagunça que os próprios circenses faziam. Até mesmo Pefrus deixou sua postura sempre impecável e irrepreensível e mergulhou também.

Aiyra estava distraída e não percebeu quando ele chegou perto dela e sussurrou:

- O que acha de surpresas?

- Como? - ela se virou.

- Surpresas. - Seu rosto estava molhado e suas expressões marcadas. - Você gosta ou é o tipo de pessoa que prefere ter o controle sobre tudo?

Ela ficou um tempo em silêncio tentando entender a que ele se referia.

- Eu, particularmente, gosto quando sou a pessoa a surpreender. - Continuou ele. - E você?

- Acho que gosto, não sei, nunca parei para pensar nisto. - Coçou a cabeça. - Acho que nunca aconteceu comigo, na verdade.

- Existem muitas coisas nas quais não paramos para pensar, e ainda assim, no fundo, sabemos a resposta. - ele se aproximou dela - Mas tudo bem, vou te dar a chance de descobrir. Quando nos acomodarmos em Tsyarah e você for informada, me diga o que achou.

Ele ia virando as costas, mas ela segurou seu ombro.

- O que eu preciso te dar em troca? - perguntou Aiyra, pois ouvira a reputação dele pelo circo de que não era uma pessoa que fazia favores sem que recebesse algo de volta. - Alguma surpresa também?

- Se surpreender, minha querida, tem a ver com expectativas. - ele passou o dedo indicador numa gota de chuva que caíra na bochecha dela e ia descendo, interrompendo que completasse seu trajeto até o queixo. - E eu espero demais de você para ser pego de surpresa.

Imóvel e sentindo o dedo de Pefrus ainda ali em sua bochecha, Aiyra ficou olhando ele se afastar.

Aiyra queria evitar Pefrus e a proximidade de Zyskla com ele a incomodava. Gisar apareceu algumas vezes para ficar com ela, mas Gocai, seu irmão gêmeo, sempre o chamava para preparar seus equipamentos. De fato ele estava certo, seria injusto arrumar tudo para o espetáculo sozinho.

Então, passou o dia com Badika e não se arrependeu. Ele a ensinou como andar a cavalo e eles apostaram corrida até o lago e voltaram. Óbvio que Badika foi o vencedor, mas havia sido muito divertido. Ela amava passar tempo com ele, principalmente quando estavam apenas os dois. Na frente dela ele era solícito, gentil e engraçado. Só bastavam chegar outras pessoas, no entanto, que ele assumia uma carranca e passava a responder à quase tudo de maneira monossilábica. Aquilo de certa forma a magoava ainda que não soubesse o porquê, mas procurava sempre esquecer e deixar de lado.

Quando chegaram do lago, Pefrus esperava ao lado de um preto imponente animal. Era Bruto. Badika resolveu não levá-lo para que fizesse sua refeição e descansasse e foi com outro cavalo. Agora Bruto parecia mal.

- O quê há com você, garoto? Hein? - ele faia carinho na crina do cavalo enquanto falava.

- Acho que antes de dar passeios por aí, você deveria checar se seu trabalho está bem feito. - Pefrus estava parado e rígidos como uma pedra. Nada em seu rosto se movia.

Badika abaixou a cabeça e continuou acariciando o animal. Aiyra nunca o tinha visto assim.

- É seu trabalho cuidar dos animais, Badika. - continuou Pefrus -  Sei que ninguém se importa muito com isto mas não é porque seu posto não tem concorrência que não deve fazer algo com esmero. - respirou fundo antes de continuar - Eu me importo profundamente com os animais deste circo. Espero que entenda isto.

- Badika, o que houve com ele? - perguntou, sentindo o coração apertado.

- Ah, não. Você também tem muito trabalho para fazer. - ele ofereceu o braço - Vamos, não pense que me esqueci da surpresa.

- Mas...

- Como? Alguma objeção? - o olhar que dirigiu a ela neste momento conseguiu ser gélido mesmo que suas pupilas parecessem pegar fogo.

Badika olhou com os olhos transtornados para ela e fez um sinal com a cabeça para que fosse embora. Aiyra franziu a testa.  Estava se sentindo descartada. Então aceitou o braço de Pefrus e foi.

Andaram em silêncio e pararam de frente para uma tenda vermelha.

- Queria comunicar pessoalmente que meu desejo é que treine para ser minha assistente. - a expressão dele já era outra, como se nada tivesse acontecido.

Eles entraram.

- Sei que as meninas aqui podem ser intimidadoras à princípio, e por isso resolvi trazê-la eu mesmo. - Já lá dentro, ele falava isso alto, para que as outras ouvissem.

Elas surgiram como que das sombras e se reuniram em volta deles como animais selvagens cercam suas presas.

Pefrus a largou ali e saiu. Ele deveria ter expectativas altas demais sobre ela para achar que conseguiria passar por este lugar e aguentar a pressão que era ficar ali. Já estava prestes a ir embora procurar por Zyskla, que não tinha medo delas, quando sentiu um puxão no seu braço.

- Uma vez aqui dentro, não pode sair até o fim do dia. Você é uma de nós agora, precisa seguir as regras. - disse uma menina de cabelos ruivos desgrenhados e grandes olhos redondos.

- Tudo bem.

Ficou impressionada quando, ao fim do dia, percebeu que o treinamento ali era não apenas físico como de sedução. Se lembrou que muitas coisas que aprendera a fazer com visitantes do circo, Zyskla havia feito com ela na cidade. Era como passos que, apesar de suas variações, sempre se repetiam. A finalidade era trazer pessoas para perto, ganhar sua confiança e convencê-las a fugirem com eles. Apesar de se sentir um tanto enganada, Aiyra se consolou com o pensamento de que todos que estavam ali também haviam passado por isso antes de entrar para o Circo. Ainda que achasse errado, não estava sozinha. Então julgou estar tudo bem.

A ruiva que havia falado com ela no início do dia sentou ao seu lado na refeição. Elas conversaram e Aiyra já se sentiu parte de uma família quando a ruiva perguntou se ela queria ouvir um segredo.

- Que segredo?

- Quer ou não? - ela levantou as sobrancelhas.

- Sim, claro. - assentiu.

- Tudo bem. - então ela olhou para os lados - Vejo que você tem alguns problemas para caber nos figurinos.

Aiyra ficou calada.

- Tudo bem, você é meio mal educada e não responde as pessoas direito mas vou te ajudar mesmo assim. - Ela se aproximou e começou a falar ainda mais baixo que o normal, pois sua voz já era um sussurro. - Nós ouvimos dizer que perto do lago cresce uma planta chamada aehorsy que nos ajuda a perder peso rapidamente se amassarmos e misturarmos ela na comida. Se você convencer aquele garoto dos animais a ir com você, eu posso te cobrir aqui.

Ela pensou por alguns segundos. Será que estava tão desesperada a este ponto? Pensou na liberdade que Zyskla tinha por ter se provado tão boa a ponto de conseguir seu próprio número solo. Queria isto.

- Mas Badika? Por quê?

- Ele conhece essas coisas. Tenho certeza de que vai achar rapidamente. - disse, de maneira casual - E então? Você aceita ou além de mal educada é covarde?

A menina mediu o tamanho do braço de Aiyra com o indicador e o dedão e comparou com o dela mesma, que era claramente mais fino.

- Acho que precisa mais do que eu.

- Tudo bem. - disse, subitamente. - Aceito.

Sempre que se sentia parte do circo, aparecia mais alguma coisa que precisaria fazer. Estava cansada. Queria atalhos, facilidades.

Então sim, estava tão desesperada a este ponto.

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