14 - Música para os meus ouvidos, dança para os meus pés

Antes

— Como você conseguiu deixar o seu vestido neste estado, Trix? — examinava a peça minuciosamente para saber o que poderia ser resgatado dali.

— Não interessa! — pegou o vestido da mão da irmã com força. — Se você não vai me ajudar, então fale logo e eu me viro de alguma forma!

— Irmã, não precisa falar tão alto. — chegou mais perto dela com o indicador a boca. — Os vizinhos vão te escutar.

— Eu não me importo com os vizinhos, Aiyra. — gritou ainda mais e sacudiu a roupa. — Vai dar um jeito no meu vestido ou não?

— Tudo bem, tudo bem, calma. — respondeu, pegando a roupa da mão dela. — Fale baixo e já, já ele estará pronto, sim?

Trix bufou. O que levaria para a irmã ser tirada do sério? Era tão perfeita que a irritava profundamente. Nem quando cortara o seu precioso cabelo longo enquanto dormia anos atrás, ela se irritara. Na verdade, se irritava, mas parecia engolir toda e qualquer chateação. Ela sentia que não conhecia sua irmã. Seus medos e segredos obscuros todos fechados a sete chaves e trancados num baú sem localização. Quem saberia o que se passava naquela cabeça?

Em pouco tempo, Trix e Aiyra estavam prontas, sentadas na sala de estar esperando o resto de sua família. Ertimus dava os últimos toques nos pratos que passara o dia fazendo. Kira permanecia pensativa e distante enquanto que Amiycus observava seu neto com um sorriso no rosto. Andrius corria, como sempre! Difícil tarefa é narrar sobre este menino quando ele nunca está parado. Passemos, então, a outro integrante da família. Syrahna levava sua mão à cabeça e já estava de olhos fechados para não ver a bagunça que aquele menino iria arrumar em seu cabelo. Não adiantava falar com ele, seu pai sempre se intrometia e Andrius acabava correndo de novo. Mas hoje não, hoje não iria se aborrecer pois nada poderia dar errado. Afinal, era a Festa das Abelhas.

Juntos e cada um carregando uma vasilha com as melhores especiarias de Ertimus, chegavam os Vitania. Estava tudo tão no lugar, apareceram tão bem vestidos que a entrada deles assemelhava-se a uma pintura em movimento. Apesar dos pesares, sabiam muito bem como precisavam se portar para causar uma boa impressão para a comunidade dos prudentos. Salvo algumas exceções, todos iam cumprimentá-los quando chegavam nas festas. A própria presença deles era um evento à parte, principalmente quando estavam todos juntos.

— Onde estão guardando os molhos este ano? Mesmo lugar de sempre? — perguntava Ertimus para as pessoas que o rodeavam com um largo sorriso no rosto.

— Sim, senhor Ertimus.

— Mas não precisam se preocupar, nós podemos levar isto para a sua família.

— Tudo bem, podemos levar. - respondeu ele, sem graça.

— Não, não. Fazemos questão!

— Sim, por favor!

Quando menos esperavam, estavam todos de mãos vazias. Trix comemorou, ao contrário de Andrius e Kira que gostavam de ter algo para ajudar. Estar de mãos vazias, para Kira, significava ter que falar com as pessoas que provavelmente lhe fariam perguntas. Se não estava pronta para respondê-las para ela mesma, imagine para os outros. Mas era a Festa das Abelhas e isto significava que se tivesse de fingir que estava tudo bem, então o faria.

Sob a luz do luar, as flores que adornavam aquele lugar o deixavam deslumbrante e com um toque de divino. Colocadas ao redor dos postes, pareciam refletir a luz que brilhava da lamparina, emanando uma resplandescência correspondente a sua cor. Era lindo de se ver. Aquela aurora era tão aconchegante que trazia aos corações dos prudentos uma grande necessidade de estarem juntos em comunhão.

Alguns bancos de madeira ficavam espalhados em volta para os anciãos. Alguns recusavam, sentando-se no chão junto com o resto das pessoas. Contudo, outros sentavam-se nos bancos por terem tantos séculos de vida que enfrentavam grande dificuldade para se abaixarem. A maioria deles não se aprontava como todos os prudentos, vestiam as mesmas túnicas que usavam durante o dia. No começo, os sábios anciãos apareciam nas festividades cheios de jóias. Todavia, quando acharam um antigo manuscrito perdido daquele considerado o mais sábio, começaram aos poucos a perder estes costumes. Alegavam que, parafraseando o sábio, tudo era vaidade.

As harpistas tocavam calmamente durante o ínicio da festa. Conforme as horas avançavam, mais instrumentos se juntavam a elas. Os dedilhados delicados das instrumentistas preenchiam aquele lugar com um som calmo e pronto para receber aqueles que chegavam. Era neste momento inicial que cantavam os de boa voz, que, inclusive, descansavam nas últimas horas de festa para que o sereno não afetasse suas cordas vocais.

Logo após as harpistas, assim que chegavam e se posicionavam, as crianças da Vila de Prudenta começavam a tocar suas kalimbas. Era um instrumento leve, que cabia nas mãos dos pequeninos e saciavam suas vontades de participar do momento musical mais esperado do ano. O único instante no qual conseguiam fazer Andrius ficar quieto era para tocar seu kalimba. De longe era possível perceber como ele se sentia importante ao estar ali junto com seus amigos. A concentração com que tocava deixava Syrahna extremamente orgulhosa e, algumas vezes, também emocionada. Nunca se soube dizer ao certo de onde surgiu tal kalimba. Temos apenas algumas lendas que contam ter sido um não-prudento muito antigo que trouxe consigo o instrumento mais usado de seu país.

A essa altura, as famílias conversavam e confraternizavam entre si. Alguns ou outros dançavam no meio do pátio, rodeados pelos postes decorados e iluminados pela lua. De longe, Guinu Fantený observava discretamente Aiyra que ainda estava com sua família. Na Vila de Prudenta, ao completar duas décadas, as jovens meninas poderiam dançar com os adultos. Todavia, os jovens rapazes, como já não eram mais crianças, precisavam esperar que uma das damas que estivessem dançando os convidassem para que pudessem participar. Guinu se perguntava se havia mandado sinais confusos para Aiyra. Se outra o convidasse, não poderia recusar, pois era considerado um desrespeito. Então o que ela estava esperando?

Aflito, olhava os flautistas tomarem suas posições. Isso significava que a cerimônia já estava perto de começar. Logo mais, já não haveria mais tempo. Enquanto observava os instrumentistas, não percebera que Aiyra se aproximava.

— Gosta de flautas? — ela estendeu a mão e ele a aceitou.

— Pensei que não fosse dançar este ano. — disse, deixando os flautistas e voltando sua atenção totalmente para ela.

— Não durante a cerimônia, com as crianças. Mas da dança social, sim. — brincou com seu vestido roxo enquanto seus pés trabalhavam de um lado para o outro. — Achei que tivesse te contado mais cedo.

Ele olhou para o alto como quem tenta arduamente se lembrar de algo que fugira-lhe a memória.

— Não, não contou.

— Hum, acho que me esqueci. — ambos sorriram, estavam muito felizes por finalmente poderem participar daquele momento juntos.

Na Vila de Prudenta, as festas tinham três momentos. No começo delas, as crianças poderiam tocar o seu Kalimba enquanto os mais velhos dançavam. Depois, já durante a cerimônia, os pequeninos se apresentavam com danças. Mais tarde, iam para a praia passar a madrugada e viam o amanhecer. No dia seguinte, todos acordavam mais tarde. Isto é, aqueles que não tinham em suas casas crianças agitadas logo cedo pela manhã. A dança da cerimônia era algo que Aiyra já não fazia mais parte, mas da dança social aquele era o primeiro ano que poderia participar.

Os braços de todos se mantinham vez para o lados, vez para o alto e faziam como que círculos no ar com as mãos. Seus olhos seguiam seus dedos, as cabeças seguiam seus olhos e o pescoço mantinha-se leve, permitindo tais movimentos. Os joelhos, ainda que esticados, provocavam às pernas uma precisão fora do comum. Os pés, por sua vez, esticavam-se todas as vezes que deixavam de tocar o chão. Quando chegava ao ápice da música e saltavam, seus joelhos sempre voltavam flexionados e isto garantia uma aterrissagem macia como se todos fossem feitos de pena.

Os dois bailavam como que à parte do resto do grupo no meio do pátio. A conexão que mantinham durante a dança contava por si só toda a história que tiveram desde a infância e como se conheciam bem.

A entrada dos percussionistas com seus tamborins anunciava a cada um que deveriam tomar o seu lugar, pois a cerimônia da Festa das Abelhas estava prestes a começar.

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