11 - A família feliz
Antes
Kira Vitania separava as roupas de seus netos com carinho e dobrava-as antes de colocar sobre a cama. Estava quase completando suas sete décadas de vida. Pensava naquele momento se não seria mais útil preparar-se para ser uma sábia e não apenas uma anciã ranzinza que perdera seus pais quando a terra chacoalhou a ponto de derrubar sua casa e levá-los consigo. Todavia, não sabia que lacuna poderia preencher, não haveria muito o que ensinar e tinha um certo medo de se aproximar dos livros. Eram tantos! Sentia que lhe faltaria tempo para adquirir conhecimento o suficiente para ser uma boa Sábia Prudenta. Kira, na verdade, queria sentir-se útil em algo, mas enfrentava dúvidas cruéis quanto ao quê.
Do lado de fora, no quintal, estava Amiycus Vitania brincando com seu neto quando percebeu pela silhueta na janela que sua esposa estava ali, mais uma vez, pensativa. Seus devaneios estavam começando a preocupá-lo. Ele não entendia o motivo pelo qual ela estava tão distante ultimamente. Ele não havia mudado, continuava cuidando das plantas e, sempre que voltava, trazia uma flor para sua esposa, uma para sua filha e a laranja mais vibrante para a sua neta. Entretanto, este gesto que tanto a alegrava e a fazia agradecer com um beijo, agora limitava-se a despertar nela um simples sorriso tímido. Amiycus sentia que o sorriso era por obrigação e isso o estava magoando cada vez mais.
A água da banheira estava morna quando Syrahna Vitania entrou. Ela encostou primeiro os dedos para certificar-se de que a temperatura estava agradável e então se afundou ali. Ela sentia cada músculo rígido de seu corpo relaxar. Era exatamente disto que precisava depois dos últimos dias. Não sabia por que raios sua mãe não se comportava mais como antes. Tentara conversar com ela mas as duas não se davam, tinham o gênio muito parecido. Se as pessoas apenas ouvissem as discussões das duas, pensariam se tratar de duas abaetês rabugentas que acabaram de ter sua biblioteca bagunçada. Seu filho mais novo brincava no quintal com seu pai quando já deveria estar pronto. Sua filha do meio era rebelde praticamente desde que nasceu, devia a ela seus cabelos brancos. A única com a qual não precisava se preocupar era a mais velha. Contudo, nem esta escapou de dar preocupações a Syhrana naquele dia, pois não havia nem chegado em casa ainda.
O molho que ficara encarregado de levar para a festa borbulhava, bem vermelho, do jeito que Ertimus Vitania gostava. Pegou um pouco com a grande colher de madeira com a qual mexia, assoprou e a levou à boca. Ele fechou os olhos enquanto saboreava o delicioso molho de frutas vermelhas, uma especialidade sua que planejava tornar uma tradição de família. Esperava apenas o seu filho mais novo crescer um pouco mais para ensiná-lo seus dotes culinários, pois era o único da casa que se interessava pelas mesmas coisas que ele. Enquanto isso, se ocupava em criar novas especiarias. Ertimus era conhecido na vila pelas suas invenções na cozinha, que normalmente davam certo, salvo uma vez ou outra. Apesar de ser um homem muito fácil de lidar, era distraído por natureza, e isso o mantinha alheio e distante dos problemas da família.
Rasgado em pedaços. Era assim que estava o vestido que Trix Vitania usaria para a festa que estava para acontecer. Ela havia tentado reformá-lo para deixar mais parecido com algo que gostaria de vestir, mas acabou estragando a peça. Sua mãe, que já perdera a paciência tantas vezes naquele dia com ela, ficaria furiosa. Não havia hipótese alguma de que Trix iria contar a verdade, mas precisava de ajuda. Ninguém entenderia que só estava tentando ser autêntica, porque só parecia deseperada para chamar a atenção. Tinha a impressão de que os minutos passavam mais rápido que o normal. Pela janela era possível ver seu irmão e seu avô, a pessoa que ela mais admirdava naquela família. Gostaria de um dia cuidar das plantações como ele, só queria que ele a notasse mais para que pudesse dizer isso a ele. Saiu e ficou parada à porta esperando alguém chegar. Onde estava sua irmã quando ela mais precisava?
Já com os joelhos ralados de tanto se jogar ao chão, Andrius Vitania corria pelo quintal de sua casa com seu avô que ele tanto amava. Se davam muito bem pois era o único que tinha disposição para ficar horas brincando com ele. É fato que vovô deixava ele correndo sozinho de vez em quando mas não poderia reclamar. Enquanto ele ainda estava chegando perto de completar sua primeira década, faltava pouco para o senhor chegar a sua sétima. Não sabia por que motivo sua irmã estava sempre o encarando quando brincava com seu avô. Se ela queria se juntar a eles era só pedir. Para Andrius, quanto mais pessoas brincassem com ele, melhor. Menos sua mãe, pois ela passava tanto tempo tentando o proteger que o sufocava e provavelmente, se participasse da brincadeira, iria estragar tudo por ser perigoso demais.
Andrius viu uma silhueta aproximar-se de longe e logo reconheceu quem era. O adorno laranja no cabelo era inconfundível. Deixando toda brincadeira para atrás, correu para um abraço.
Lá vinha ela, contra o sol, radiante como sempre estava, apesar da cor apagada do vestido. Tinha uma presença e graciosidade no andar que era rara de se ver. Não sei se você a consideraria bonita, leitor, já que a concepção de beleza depende de qual sociedade você vive, mas posso falar pelos prudentos que eles a consideravam estonteante. Aiyra Vitania voltava de seu passeio pela biblioteca com senhor Rerovius pensativa. A história de Coutaux Kerý a comovera de uma forma diferente, pois a lembrava de uma conversa que havia tido com sua avó há poucas semanas. As duas eram muito próximas e a senhora a confidenciara as dúvidas que vinha enfrentando sobre sua utilidade. Talvez fosse a crise das sete décadas chegando, não seria a primeira prudenta a enfrentá-la. Mas e se fosse algo a mais? Talvez senhor Rerovius estivesse certo e fosse mesmo melhor pensar nisso tudo antes de ter sua própria família formada.
A família Vitania era muito estimada na Vila de Prudenta, mas também tinha os seus problemas por debaixo do tapete. Nunca devemos acreditar que um grupo de seres humanos conseguiria viver em perfeição uns com os outros, sem problemas de comunicação, mal-entendidos, pecados ou mágoas. Eles eram destas famílias que todos olham para se inspirar como referência. Pois bem, o fardo de ser uma referência para outros é algo que poucos ou nenhum consegue carregar. O cinismo aparece, eventualmente, de uma forma ou de outra. Ou desenvolve-se um cinismo consciente para manter o status e a posição; ou o desenvolve insconscientemente, omitindo coisa ou outra dos de fora para não causar má impressão e dos de dentro para poupá-los de precisar lidar com a dor. Este último tipo de cinismo era o caso da família Vitania. Sendo um ou outro, em todo caso, a verdade estoura um cano de consequências nas horas mais inconvenientes envolvendo quem se menos espera.
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