Capítulo único

Florianópolis-SC, Brasil
1 de abril de 2018

Querida Ivy,

Chega a ser cômico que eu esteja te escrevendo esta carta justo em uma data como essa: 1 de abril, o Dia da Mentira. O dia de não levar a sério as pessoas. O dia de pregar peças e rir da tolice alheia. Um dia que eu costumava achar tão idiota quanto quem o criou.

Bem, não mais.

Você sabe que tenho pavio curto. Sabe que detesto mentiras e desonestidade, mesmo quando são uma "brincadeirinha" para celebrar o primeiro de abril. Mas nós duas sabemos que não haveria data mais perfeita como esta para escrever para a primeira garota que genuinamente amei: você.

Nossa história começou quando você foi transferida para minha turma. Estávamos no último ano do ensino médio e as turmas da manhã sempre foram bem lotadas. A minha era a única da tarde e, seja lá por qual razão, em algum momento você achou que seria uma boa começar a estudar no período vespertino.

Foi assim que entrei na sala, logo no início do segundo bimestre de aulas, e deparei com você. A garota com os cabelos curtos de cor violeta, olhos escuros e tatuagens por todo o corpo.

Você estava sentada de maneira um tanto despretensiosa e ergueu o olhar para mim assim que passei pela porta. Quando te vi, fiquei um pouco em choque. Não exatamente pela sua aparência - que era bem marcante, diga-se de passagem -, e sim porque você ocupava a carteira ao lado da minha.

Eu sempre sentei na primeira cadeira da primeira fileira em frente à mesa do professor. Ninguém nunca sentava ao meu lado porque os alunos não gostavam de ficar tão expostos assim, tão perto do professor. Geralmente ficava uma mochila ali, mas lá estava você, me encarando como se tivesse estado me esperando esse tempo todo.

Eu odiei aquilo, para falar a verdade. Eu tinha quase que uma aversão a mudanças e você era a transformação em pessoa. O cabelo tingido e as infinitas tatuagens falavam por si só. Se fosse para eu me sentir atraída por alguém, essa pessoa definitivamente não deveria ser você.

Talvez eu tenha perdido a guerra no momento em que você se apresentou para mim, no intervalo entre uma aula e outra. Apesar do visual rebelde, sua voz era suave e seus traços, delicados. Quanto ao seu olhar, era irritantemente intenso. Seus olhos pretos expressavam tranquilidade, mas também um autocontrole que me lembro de ter achado estranho, pois destoava daquela figura serena passada por você.

Você tentou conversar comigo e eu tentei não me importar com o que você dizia. Na verdade, eu sempre fazia isso: fingir não dar a mínima. Era meu mecanismo de defesa para evitar o sofrimento. Até porque, eu não me considerava a pessoa mais estável e resiliente do mundo, então... sei lá. Eu só procurava evitar a dor. Já havia sido tão torturante quando meus extremamente religiosos pais descobriram que sua amada filha era lésbica, que eu preferia agir como se não ligasse para as pessoas à minha volta. Fazia a vida parecer mais fácil.

E você, Ivy, com certeza não foi a exceção ao meu modus operandi.

Isso não te desanimou, no entanto. Como iria? Se nem os olhares de reprovação dos professores e colegas para as suas tatuagens te barravam.

Eu via o modo como muitas meninas te julgavam pela aparência. Às vezes estávamos na aula de educação física, você colocava os shorts e suas pernas tatuadas ficavam à mostra. Nesses momentos eu observava de longe cada centímetro de pele com desenhos em tinta preta e colorida, enquanto as meninas fofocavam sobre você.

De certa forma, acho que consigo entendê-las. Algumas tatuagens, ainda vai. Mas o corpo todo?

Suas pernas e braços estavam praticamente fechados com os desenhos de inúmeras flores. Iam de enormes rosas e papoulas coloridas até trepadeiras crescendo em várias direções por seu braço e ombro esquerdos. O decote da sua regata branca mostrava os galhos floridos tomando parte do seu colo. Eu lembro que um dos caules folheados serpenteava por sua pele até alcançar a parte de trás do seu pescoço, mas eu também me lembro que um deles se projetava para baixo, insinuando-se para seu seio direito sob o tecido da camiseta.

Sentada na arquibancada, eu te observava jogar voleibol e tentava imaginar como aquele desenho terminava. De repente você me encarou e eu prendi a respiração.

Fiquei vermelha por ter sido flagrada pela pessoa alvo dos meus pensamentos impróprios. Você apenas devolveu meu olhar com a mesma intensidade de sempre até que deu um passo para fora da quadra em direção a mim, como se tivesse esquecido que estava no meio de uma partida. Mas então seus olhos se arregalaram e logo você estava gritando: "Alice, a bola!"

Minutos depois, eu pressionava uma bolsa de gelo na testa.

Eu estava tão irritada.

Você estava comigo porque havia se oferecido no lugar da professora para me acompanhar até a diretoria. Você disse que ia ficar tudo bem e eu só falei que me sentia estúpida. Instantaneamente você abriu a boca, como se estivesse pronta para se opor, mas então seus olhos pousaram na diretora, que falava ao telefone, e você se calou.

Quando já estávamos fora da sala da diretoria, você segurou meu braço de leve e disse, com a voz tranquila, que viu a maneira como olhei para você. Que foi difícil arrancar esse olhar de mim, mas conseguiu. E que valeu muito a pena ter pedido transferência por minha causa.

Eu fiquei sem reação e você sorriu. Quase morri com aquele sorriso e com a explicação que veio a seguir: você pediu transferência para a tarde porque queria estar na mesma turma que eu. Você me viu pela primeira vez quando foi à biblioteca de tarde para fazer um trabalho da escola e, desde então, não conseguiu me tirar da cabeça. Disse que ia parecer loucura, mas você gostava de mim. Gostava muito. E que queria me beijar naquele momento, se não fosse problema.

Eu podia até ser direta, mas tinha alguns limites que eu gostava de respeitar. Já você, aparentemente não.

Para desconversar, comentei que suas tatuagens eram bonitas. Isso te fez abrir outro sorriso e você rebateu dizendo que elas eram, mas que tinha certeza de que esse não foi o motivo para eu ter te olhado fixamente naquela quadra.

Baixei os olhos e dei um sorriso, assumindo a derrota. Quando voltei a te olhar, lembrei qual era a data: primeiro de abril. Só o pensamento de você estar me fazendo de tola fez voltar toda a irritação de ter levado uma bolada na cara.

Eu te dei as costas resmungando sarcasmos. Algo sobre ser o Dia da Mentira e você quase ter me enganado. Odiava que brincassem comigo dessa forma, mas então do nada fui puxada para uma sala vazia e você fechou a porta.

Sem dizer uma palavra, você tirou a regata e me mostrou as tatuagens antes cobertas pelo tecido. Eu só pude olhar, embevecida, para o jardim florido estampando o seu corpo.

Foi então que você contou que houve uma época em que a vida não fazia mais sentido para você. As tatuagens foram o que te seguraram aqui. Sua mãe adorava flores, por isso te batizou com o nome Ivy, que significa "hera". Você a amava muito e sabia que ela não gostaria de ver a filha desistir de tudo, então você decidiu tatuar uma flor para cada vez que sentisse vontade de ir embora. Quando o peso fosse demais para carregar e te desse vontade de partir...

Você ainda explicou que as pessoas não gostavam muito quando viam uma garota jovem toda coberta de tatuagens. Elas pensavam que as tatuagens te deixavam feia, mas essa na verdade era a parte mais bonita que você tinha para mostrar ao mundo. A parte de você que era grata pela vida. A parte que tinha vontade de viver e de ser feliz.

Lembro que minha garganta estava apertada enquanto eu olhava para as incontáveis belas flores marcando sua pele.

Eu não fazia ideia. Ninguém naquele maldito colégio fazia.

Então, você terminou de falar: "E é por ser a parte mais bonita de mim, que eu te dedico. Te dedico todas as flores, Alice."

E foi ali que entendi que não havia escapatória.

Ivy, eu me apaixonei pela sua sinceridade e profundidade. Eu te amei em todos os anos que ficamos juntas. Amei cada segundo da longa e maravilhosa vida que compartilhamos, minha garota tatuada de cabelos violeta.

Hoje chorei quando visitei sua lápide recém-colocada no cemitério. Nela espalhei vários buquês, com todos os tipos de flores que você merece, porque eu também, Ivy, também te dedico todas as flores.

Em alguns anos estarei me juntando a você, meu amor, mas até lá, nada melhor do que celebrar o Dia da Mentira falando verdades como as que estão nesta carta.

Até lá, continuarei te dedicando todas as flores.

Com amor,
Sua Alice

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