Te carreguei comigo...


Lucas estava no recesso escolar, mas dessa vez aquele que antecede o ingresso no ensino superior. Optou pelo processo seletivo, que dispensa o vestibular e o aluno entra com base nas notas do ensino médio. Decidira-se pelo curso de Letras e consequentemente havia tornado-se meio idealista a respeito do ofício de professor.

Na primeira viagem de avião de sua vida, Lucas estava especialmente falante e exaltava algo que não conhecia, mas imaginava que ser professor era a profissão mais importante do mundo. Idade de Lucas, dezessete anos. Sonha-se muito nessa fase.

— Pensa só Pedro. Todo mundo precisa passar por uma sala de aula, médico, advogado, dentista, veterinário. Ninguém vai a lugar algum se não tiver um bom professor. Por isso que eu quero dar aulas de português, porque é a disciplina mais importante que existe.

— Lucas, eu apoio se é o que você quer fazer. Mas começa a colocar aí dentro junto com a teimosia, que nem tudo é como a gente quer.

— Porque? — Lucas ainda lhe parecia o pequeno que não aceitava limites.

— A vida acaba decepcionando quando você coloca muitas expectativas em apenas uma coisa, como essa faculdade de letras. Ter objetivo é bacana, mas vá com calma. Outra coisa é que a gente precisa fazer menos imposições e às vezes levar em conta opiniões que podem nos ajudar.

O olhar verde escuro baixou entristecido e Pedro sentiu dó do menino, sabia que muitas vezes o jovem era um ditador autoritário em sua vida. Sabia ainda mais, que ele que era o culpado por aquele comportamento do jovem. No entanto, era um tanto permissivo porque sabia que o jovem certamente amadureceria, assim como fora com ele. Por baixo da fachada de menino mandão e brabo, tinha um companheiro que colocava Pedro em primeiro lugar na maioria das situações.

Ter dezessete anos, ser rebelde, ter uma família ausente eram motivos que influenciaram naquele comportamento. Lucas tinha sangue quente, mas Pedro não ficava por baixo e era na hora de uma conversa mais calma que ganhava o jovem, como naquele momento em que voavam para o estado onde existia uma situação a ser resolvida.

— Pedro. Eu gosto de trabalhar contigo. Quando eu receber os meus salários de professor, quando eu for professor, né... aí vou ajudar em casa. Porque é assim que casal faz né?

— Oh amor do Pedro. Você é um gurizinho ainda... eu tô aqui pra te apoiar. 

Houve umas orelhas em pé para ouvir o papo deles, então num acordo ambos se calaram.

Para os dois fora uma surpresa descer na capital do estado MT e ver uma cidade tão bonita, urbana e bem estruturada. Talvez por terem ouvido tantas histórias envolvendo brigas de fazendeiros, nativos mestiços expulsos de suas terras ou mortos e invasores nessas áreas, Pedro e Lucas tinham em mente apenas imensidões verdes e agrícolas. Na capital morava a filha mais velha de seu João, Jacira e é para onde ambos se dirigiram ao meterem-se no táxi com suas mochilas.

— Pedro você não tem medo deles, dessas pessoas. Lembra da história que cortaram o vô da Mariana?

— Quero conhecer ela, não sou cagão. Depois eu queria te poupar. Você que me insistiu.

— Ah tá. Eu te ouvi conversando com ela no telefone. Tô um pouco tranquilo.

— Essa carinha bonita aí... tá com cara de assustado. — O mais velho deu um riso e beijou a bochecha do mais jovem. O motorista do táxi pareceu não se importar muito e prosseguiu conversando e puxando o assunto, tratando ambos como os turistas que eram e precisavam disso para ter uma boa impressão da cidade.

Era normal que Pedro sentisse nervosismo à medida que se afastavam da região metropolitana e entravam em um bairro simples, estilo vila que lembrava o lugar onde viviam.

Ficaram muito apreensivos quando o táxi parou na frente de uma casa de alvenaria inacabada, apenas rebocada recentemente. Ali então era a casa de Jacira. Ou talvez não. Poderia ser alugada. Ou ela não passara o endereço correto. O casal se entreolhou preocupado, se aproximou e Pedro procurou por uma campainha, porém não havia, então bateu palmas chamando o nome da mulher.

Uma senhora morena de cabelos pretos lisos e longos pôs a cabeça para fora da janela da morada no primeiro piso.

Fosse quem fosse, eram estranhos e foi normal aqueles olhares curiosos e até pouco amigáveis.

— Dona Jacira? — Pedro perguntou a ela.

— Sim. É o Bruno?

— Pedro.

— Espera.

Lucas apertou com força a mão do namorado e eles trocaram um olhar afetuoso. Logo a senhora estava ao portão olhando imediatamente para as duas mãos entrelaçadas com força.

— Entra Pedro, eu sou a Jacira, tua irmã. — Então ela o abraçou e chorou. Pedro apertou a pequena mulher nos braços com força e também ficou emocionado. — Poxa, eu sempre quis conhecer pelo menos um de vocês pessoalmente. O outro não veio?

— Na audiência ele vai estar. Eu queria vir conhecer o lugar onde tu vive e os teus filhos.

— Oh Pedro... — Jacira apertou o irmão com mais força ainda e chorou sentida. — A mãe morreu faz um tempo, coitada. Ela rezava pra um dia o pai criar algum juízo e aparecer, a gente precisou tanto dele.

— Jacira, eu não sei o que te dizer. — Pedro precisava abraçar muito aquela pequena mulher, era muito bom e ele sentiu seu coração pleno de felicidade.

Jacira tinha alguns traços meio indígenas, mas o nariz empinado como era do seu João. Até o queixo furado como ele e Bruno, ela tinha. Eram de fato irmãos.

— Mas o que nós estamos fazendo aqui fora? Vamos entrando. Só não repara que eu ajudo criar a minha neta e ela é espoleta demais, hahaha. A casa tá sempre de pernas pro ar. Mas é assim onde tem criança com saúde. — Jacira limpou as lágrimas, abraçou Lucas pegou nas mãos de ambos e os conduziu ao interior da casa.

O casal estava meio acanhado quando acomodou-se no sofá olhando a volta. A casa era simples e limpa, mas cheia de brinquedos espalhados. Logo uma criança gordinha de uns dois anos veios correndo pra sala.

— Essa é minha netinha Duda. Olha que pingo de gente e me diz se não mordo ela. A minha filha mais nova a teve com dezessete anos, a Pietra.

— Achei que a Pietra fosse mais nova. — Pedro se interessou. — Onde ela está?

— A Pietra agora está bem de saúde. A minha filha tem diverticulite e a gente descobriu faz pouco tempo. É raro dar em pessoas tão jovens, mas tem tratamento e talvez nem cirurgia vai precisar. —  Jacira se emocionou outra vez. — Ela mora no andar de cima com o marido. Os dois trabalham bastante e a Duda fica aqui.

— Vim aqui por isso. Quero ajudar.

— Não precisa Pedro. A gente vai pelo SUS se não tiver outro jeito. Sempre se viramos por aqui. Mas te agradeço. Sei que você e o outro mano não têm culpa. Até queria pedir desculpas por isso.

— O quê? — Pedro ficou tenso.

— Esse negócio do dinheiro. A minha mãe achava que eu tinha direito a alguma coisa. Porque se não fosse o que nosso pai fez, meu vô teria deixado muito dinheiro.  Ela teve ódio do pai por anos e ela sofreu. Mas todas essas coisas te conto outro dia.

— Meus Deus... tenho vergonha disso.

— Não é tua culpa. Nem quero muita coisa, só o que a mãe tinha pedido de pensão e umas coisas que ela tinha direito. Me desculpa por isso. Eu não estou passando necessidade, só que...

— Jacira, nunca me peça desculpas. Não eram os filhos que tinham culpa. Nem consigo chamar ele de pai, não conheço mais ele.

— Essa raiva vai te fazer mal em algum momento da tua vida. Se livra disso Pedro. Tô bem contente que tenho um irmão na minha casa. E esse moço? É teu... namorado, vocês namoram?

— É. — Lucas se antecipou em responder, completamente corado.

— Ah então vou arrumar uma cama de casal no outro quarto de visita. Nem liguem. Eu tenho um filho assim, o Paulo. Ele vem pouco aqui porque trabalha e estuda, mas é uma graça. Hoje é mais comum isso. E tem a Patrícia que é a mais velha, ela é muito linda. Minha filha mais velha é... ai vocês vão conhecer ela. Ela é uma fofa.

Ambos riram com a forma de tratamento tão carinhosa da meio irmã de Pedro com eles, enquanto ajeitava uns brinquedos para a neta sobre a mesa de centro.

— Então me contem, o Bruno é casado? Falei mais com ele no telefone e gostei muito de conversar. Chorei tanto no dia que ele me ligou da primeira vez e falou todas aquelas coisas e que queria fazer um acordo comigo. Nem era por dinheiro, mas só de ouvir que alguém queria me ajudar naquele mês. Fiquei tão contente.

— Ele tem uns problemas e a gente se fala cada vez menos. — Pedro contou com calma tudo o que acontecera nos últimos anos. Lucas sentou-se separadamente para brincar com a pequena Duda, dando essa privacidade aos irmãos. — Eu queria muito sentir menos ódio, Jacira. Mas eu penso neles e lembro da mãe, daí não consigo me conter de tanta raiva.

— Pedro... — Jacira apertou a mão dele. — O pai abandonou a minha mãe quando eu tinha uns seis anos, eu cresci sem ele, minha mãe ficou mal falada porque era largada pelo marido, eu passei o diabo com ela... ela era ruim, meu Deus, a minha mãe descontava em mim todo o ódio que tinha do pai. Caí fora de casa bem nova, me ajuntei só pra sair de casa. Apanhava do pai da Patrícia, pensa. Eu não sou tão cheia de ganância, nada disso adianta muito. Perdoa se puder.

— É difícil. 

— Não odeie ele, Pedro. Eu não odeio nem o pai. Família é importante. 

— Desculpa, Jacira. Agora é cedo pra isso. —  Pedro não era do tipo que chorava fácil, mas a irmão o deixara emotivo. Principalmente ao sorrir. —  Você sofreu na vida e é alegre. 

Ele secou uma pequena lágrima antes que escorresse pelo rosto.

— Ai meu irmão, eu não me queixo. Dizem que o que não mata, nos fortalece. Larguei do pai da Pati, daí casei outra vez e vivo com aquele "mundiça" até hoje. E a gente dá risada. Ele é legal, mas é matuto, acredita até em disco voador. Essa hora tá na construção, trabalha de pedreiro. Esse cunhado você vai gostar, Pedro.

E ele amou tudo o que recebeu naquele encontro com a irmã. Conheceu Patrícia sua sobrinha de pele negra que ostentava um penteado black power, parecia artista, era linda demais. Ficou encantado com a beleza e a simpatia da moça, depois conheceu a Pietra, mais acanhada e muito parecida com Márcia a pequena maninha que "partiu" ainda criança. E no dia seguinte conheceu Paulo, que tanto quanto Pietra eram mestiços de pele morena clara. 

Pedro ainda estava no processo de aceitação com a sua sexualidade e não via necessidade de gritar para o mundo que tinha uma relação afetiva com outro homem. Lucas não era tão discreto, tinha trejeitos e também era muito tranquilo com a questão de aceitação desde muito novo. Já Paulo parecia o porta estandarte da militância LGBT e era o cara mais engraçado e escandaloso que ele já conhecera na vida.

Foi um encontro familiar com abraços, segredos compartilhados e tensões dissipadas. Algo que Pedro não queria perder nunca mais.

Bruno preferiu se hospedar em um hotel e na audiência, apenas Max compareceu e concluiu aquele acordo no valor que fora pedido por Jacira. Pedro achou pouco e até comentou com Max o que eles poderiam oferecer a mais.

— Espera Max... Esse valor que ela pediu se eu vender um trator novo que tenho eu mesmo pago. E as terras? Pelo amor de Deus, que acordo é esse? Cadê o dinheirão que o Bruno comentou que ela pediu. Cadê ele?

— Pedro, eu fiz o que foi combinado. Meus honorários foram pagos pra isso. Ela pediu X e teve Y, demos um valorzinho a mais.

— Tá, só que o que a mãe dela pediu lá no começo era uma cacetada. Foram aceitando menos só pra ver se o pai pagava eles. Aí hoje deu pouco. Cadê os bens que o pai colocou no nome do Bruno? O Bruno... Vou socar ele.

— O Bruno estava esperando esse acordo sair pra devolver os bens...

— Devolver pro pai? A mulher tá precisando...

— Pedro eu não tô te entendendo. Vim pra fazer o acordo, o acordo tá feito. A gente não deve mais nada. Os bens do teu pai em caso de falecimento automaticamente serão divididos entre os três. Deixa o Bruno na dele agora, ele tá sofrendo bastante com tudo isso.

Pedro revirou os olhos, amenizou a raiva e se despediu de Pedro Maximiliano. Sequer viu a cara de Bruno. Mas estava puto com ele. 

— Acordo de bosta.

— O que foi Pedro?

— Ah Lucas, que ódio. — Pedro e Lucas estavam aproveitando sua última noite na casa de Jacira antes de partirem. Acariciava os cabelos escuros do jovem, que um dia foram claros e formavam pequenas ondas quando despenteados. Isso dava paz a ambos e sonolência. — Vai me dar saudade daqui.

— É né... eu adorei o Paulo. Ele até quer ir visitar a gente. Ele pode né?

— Mas claro. Convidei todo mundo. Pena que é tão longe pra gente se visitar mais. Jacira é tão preciosa. Como que pode ter sofrido tanto e ainda assim quer abraçar o pai.

— Depois que você contou hoje fiquei com mais dó dela.

— Ah, pelo valor que recebeu com essa palhaçada?

— É sim. Mas ela tava tão feliz, disse que ia comprar um terreno lá nos "caixa prego", ia arrumar os dentes, quitar um negócio pra sair do SPC.

Pedro ficou em silêncio um bom tempo a pensar em como poderia ajudar sua irmã. Queria ela mais próxima e sentiu-se muito conectado com Jacira.

Ela fez o papel de irmã mais velha e o aconselhou a não nutrir o ódio. Sua mãe a ex esposa de seu João tinha falecido na fase de tratamento contra um tumor no estômago com metástases pelo pulmão, rins, fígado e dois nódulos no cérebro. E essa mulher aconselhou a filha da mesma forma: "Não odeie seu pai como eu odiei, talvez o dinheiro que ele roubou do teu vovô podia me ajudar hoje, mas não tem mais problemas. Preciso descansar em paz."

— Pedro meu mano... Minha mãe teve uma morte sofrida. Só morfina pra acalmar a dor. O capital do meu vovô também era sujo pelo que a mãe me contou. O meu bisavô invadiu aquela região com uma bandidagem e mataram tanto índio, Pedro, mas tanto. Por isso que não quero mais nada. Quero ficar bem tranquila e ter sossego. Chega de tanta merda, credo.

Jacira era uma alma iluminada, ria dos próprios dissabores do passado e não tinha tantas ambições para o futuro, tinha uma casa simples em fase de acabamento, terreno quitado e um carro mil na garagem e se satisfazia com isso.

Fora uma despedida com lágrimas e promessas de visitas e ela estava ansiosa pra passear na casa de Pedro, conhecer outro estado, comer coisas diferentes, ver gente diferente e ouvir sotaques tão interessantes como os da amada Santa e bela Catarina.

— Pedro... a gente vai embora? Achei que a gente ia passear. Nunca fui na praia, você já? Bem que a gente podia, né?

Lucas ficava mais falante quando eles ficavam sozinhos. Haviam reservaram um quarto para dormir naquela noite antes do voo e quando ficaram a sós, o mais jovem abriu um sorriso sacana, encostou-se a porta do quarto e falou:

— Pedro, três dias que a gente nem pode se beijar gostoso. Quer beijo?

— Amor do Pedro. Tô maluco pra te beijar todo, todinho.

Lucas permitiu-se se apertado em um abraço afetuoso e protetor. Pedro sim era seu anjo, ele pensava. Ah como o amava. Já se pegara tantas noites olhando o macho mais velho dormindo, sempre o abraçando ou com uma de suas pernas sobre as dele.

— Pedro, já que a gente é mochileiro, quero ir conhecer a praia. Pode ser?

— Tá. — Pedro beijou a cabeça do mais jovem e perguntou.

Lucas sorriu feito menino que ganha o melhor presente da vida. 

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Oiii tava com "sudades"♥

Espero que continuem gostando desses dois moços do interior, kkk 

Paulo é um personagem alegre que deve colorir um episódio em breve.

Recebam luz, alegria, amor e paz. Todo meu ser lhes envia isso.

Suas energias são preciosas para esse "trocinho" atrás do teclado, por isso, agradeço muito!

Eu i love you-lhes =^.^=



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