III. Neil

Quando Neil acordou no dia seguinte, ele percebeu que dormiu mais e melhor do que esperava, apertando seus olhos em uma tentativa de evitar a luz do sol que entrava pelas cortinas entreabertas que ele esqueceu de fechar quando se jogou na cama, exausto com a faxina que ele e Kevin fizeram no apartamento. Passou algum tempo brigando com a luz até aceitar que perdeu e finalmente sair da cama, já que queria tentar aproveitar o domingo com seus amigos antes de começar mais uma semana estressante aguentando Riko e seu tio puxa-saco. Concluindo sua higiene pessoal, Neil foi para a cozinha, que ainda se encontrava vazia porque Kevin se recusava a acordar cedo se não fosse para os treinos, e preparou o café que seu corpo pedia desde que abriu os olhos, observando como tudo estava mais bem organizado na cozinha de cores neutras.

Neil, então, pegou o celular e deu uma olhada nas coisas que estavam acontecendo em suas redes sociais e revisitou a conversa com Andrew, sorrindo de canto ao lembrar que os dois marcaram algumas aulas para as próximas semanas, se arranjando para que os horários batessem. Encostado no balcão, Neil respondia algumas mensagens quando Kevin entrou na cozinha.

— Bom dia — Neil falou quando Kevin se sentou no balcão ao lado de onde ele está encostado.

— Bom dia — Kevin respondeu sem nenhuma animação enquanto Neil colocava um pouco de café em uma caneca e passou para ele. — Eu vou marcar mais aulas com a Renee pra semana que vem e a próxima.

— Eu já marquei alguns dias com o Andrew.

— Eu nem vi ele da última vez. Como ele é?

Neil não sabia como descrever Andrew, eles não se conheciam além dos pequenos flertes que acompanharam aquela primeira aula e as mensagens.

— Normal, ué. Pretende marcar pra que horas? Depois do treino?

— Provavelmente. É quando a gente mais precisa aliviar a tensão — Kevin respondeu, pegando o próprio celular. — Tá confirmado com o pessoal?

— Sim, Matt me mandou mensagem pra confirmar. Eu já confirmei que a gente ia.

— Eu não acho que eles esperavam que a gente ia concordar quando eles marcaram de sair — Kevin comentou com um uma risada curta.

— Você, talvez. Eles não esperavam que eu dissesse sim.

— Pra ser sincero, nem eu esperava. O que te fez concordar?

Não era segredo para ninguém que Neil evitava sair se fosse possível. Talvez fosse um dos resquícios da convivência com Nathan, quando sair sequer era uma opção. Neil apenas se acostumou a ficar em casa.

— Primeiro, que é uma saída mais íntima, só com a gente. E segundo que depois de sexta eu preciso estar na presença de pessoas que eu confio. Eu preciso lavar a energia do Riko de mim antes de voltar a treinar com ele, ou eu vou usar minhas aulas de tiro pra garantir um tempo na cadeia.

— Você sabe que não precisa comprar minhas brigas por mim, não sabe?

— Sim, Kev, eu preciso porque, se não, você deixa um babaca como o Riko te fazer de gato e sapato e eu nunca conseguiria assistir isso sem fazer nada.

Kevin o olhou em silêncio por alguns segundos antes de se levantar e lavar a caneca que usou. Neil sabia que estava disposto a fazer qualquer coisa por Kevin e seu irmão também sabia disso.

— Nós vamos sair depois de almoçar.

Neil apenas assentiu enquanto Kevin saía da cozinha e ia para o próprio quarto.

🐾

Dias se passaram desde o dia em que Neil esteve na academia de Andrew e desde então os treinos têm piorado seu estresse em muitos níveis. Riko estava fazendo o que podia para que Neil estourasse e causasse sua expulsão do time e Kevin já precisou segurá-lo mais de uma vez para que ele não fizesse algo que poderia se arrepender, não que ele achasse que ia. Mas tudo tinha limite e a paciência de Neil costumava durar bem pouco e ele já havia forçado bem além dos limites.

— Chega, Kevin! Eu não vou mais deixar esse filho da puta te tratar desse jeito. Quem ele acha que é?

Neil e Kevin estavam no vestiário sozinhos como os últimos a sair do treino em uma tentiva de ter um pouco de paz e se livrar de Riko o quanto antes. Neil trocava seu uniforme por suas roupas casuais para ir embora.

— Ele é a porra do sobrinho do treinador e filho de um dos maiores patrocinadores do time e você vai ficar na sua porque você não quer ser expulso do time.

Neil sentiu a raiva ascendendo de seu interior.

— Não Kevin, eu não quero ser expulso de time, mas que caralho de time é esse que deixa um porrinha mimado mandar e desmandar como se ele fosse o time?

— A gente não pode arriscar, Neil! Eu não posso arriscar que você seja expulso.

Neil bufou impaciente, terminando de se vestir enquanto Kevin secava o cabelo.

— Vamos fazer assim: hoje a gente vai na academia, a gente desconta a raiva e no treino de amanhã você vai estar menos propenso a planejar o assassinato do Riko. Que tal?

Neil olhou para Kevin se perguntando internamente se Kevin realmente achava que a melhor forma de evitar a morte de Riko era levando Neil para um lugar onde ele aprendia a mirar com uma arma, mas não seria ele a lembrá-lo desse detalhe.

— Tudo bem, mas eu acho que é bom você saber que a minha paciência com o Riko tá bem curta e que dá pra contar nos dedos quantas vezes eu vou conseguir controlar meu temperamento antes de mandar o Riko tomar em mais buracos do que ele é capaz de contar.

Kevin não respondeu nada quando Neil foi até os armários terminar de se arrumar para saírem.

🐾

A academia estava exatamente da mesma forma que Neil se lembrava quando os dois saíram do carro que pediram e se dirigiram para a recepção, onde Rolland parecia ocupado com alguma papelada e não notou a chegada dos dois.

— Roland? — Kevin chamou, se aproximando do balcão e atraindo a atenção dele.

— E aí? Achei que tinham desistido já que não voltaram mais — Roland cumprimentou os dois com um sorriso.

— Os treinos estão um pouco mais pesados por causa do meio da temporada, mas a gente sempre vai acabar voltando.

— Renee e o Andrew sabem que vocês viriam hoje?

— Eu avisei a Renee, mas o Neil não avisou o Andrew. Isso é um problema?

— Acredito que não, mas eu vou precisar pedir pra ele descer. Ele tá no apartamento.

Roland parecia estar sentindo dor quase física por ter que acordar Andrew.

— Eu peço — Neil falou, rindo um pouco de como Roland o olhou como se ele fosse um santo descendo do céu. Neil tirou o celular do bolso e ligou para Andrew.

— Andrew?

O que é? — A voz de Andrew transparecia que ele tinha acabado de acordar.

— Pode me ajudar com as instruções hoje, tipo agora?

Roland olhava para Neil como se estivesse esperando que Andrew fosse sair de dentro do celular e garantir sua morte pelo pedido fora de hora. O silêncio se alongou por alguns segundos.

Já desço.

— Ele tá descendo — Neil avisou e Roland olhou para ele como se ele fosse um quebra-cabeça muito difícil de decifrar. — O que foi?

— Ele não mandou você se foder e avisar da próxima vez? Não te xingou? Não ameaçou enfiar uma faca na sua garganta, nem nada?

Não?

— Era pra alguma dessas coisas ter acontecido? — Kevin perguntou confuso.

— Dependendo do dia, era pra ter acontecido todas elas — Roland respondeu com um ar de quem já tinha passado pelas ameaças de Andrew mais de uma vez.

Quando Andrew apareceu, Neil precisou se segurar para não suspirar com a fofura de um Andrew com um conjunto de moletom preto, os fios loiros saindo pelo capuz, o piercing visível entre os fios, e um coturno, também preto, enquanto escondia as mãos nos bolsos da calça. Os olhos ainda parecendo pesados de sono.

— Renee já tá descendo também — Roland avisou Kevin.

— Desculpa vir sem avisar — Neil falou para Andrew quando ele acabou de se aproximar. — É só que... semana ruim.

Neil finalizou com um suspiro e Andrew o olhou de cima a baixo antes de falar.

— Vamos.

E saiu, mais uma vez, sem esperar que Neil o seguisse, sabendo que ele o faria. Neil acenou para Kevin e Roland, que parecia um pouco chocado com algo que Neil não soube definir o que era, e seguiu Andrew até o estande.

Andrew foi até o mesmo armário da última vez e pegou a mesma arma que Neil usou da vez anterior.

— Desembucha — Andrew falou enquanto os dois colocavam os equipamentos de segurança.

— Não é nada demais, eu tô bem — Neil respondeu, fazendo Andrew revirar os olhos.

— Não quer falar, não fala, mas eu vou estar aqui pra ouvir se você mudar de ideia — disse Andrew quando se encosta no armário, observando enquanto Neil, sem responder nada, começa a mirar e faz alguns disparos com a arma em sua mão.

Neil errou o alvo por pouco na maioria das vezes e Andrew tinha certeza de que isso era por causa do estresse acumulado que o impedia de focar na tarefa atual. A postura que Andrew havia corrigido na semana anterior já estava toda errada novamente. Andrew suspirou e se aproximou de Neil.

— Espera. Você não consegue acertar porque sua postura tá uma merda de novo. Posso?

Andrew gesticulou, apontando para Neil com a mão, e Neil demorou um pouco para entender que Andrew estava pedindo permissão para tocá-lo mais uma vez. Neil permitiu com um "sim" quase sussurrado. Andrew, então, ficou atrás de Neil e levou a mão até os braços mais esticados do que deviam.

— Flexiona mais o braço esquerdo, ou você vai receber o tranco do tiro mais do que precisa. — Andrew colocou o braço esquerdo de Neil onde deveria estar desde o começo. — A coluna também, você tá muito reto. — Levou a mão para as costas de Neil, onde pressionou um pouco para ajudá-lo a se curvar no ângulo certo. — Seus pés estão bons — disse Andrew depois de se afastar para dar uma olhada mais geral. — Tenta atirar agora.

Neil tentou mais três disparos e sorriu levemente quando dois deles acertaram o canto do alvo, se virando e olhando para Andrew como se eles tivesse acabado de vencer seu jogo de exy divisor de águas, Andrew não conseguiu evitar uma quase risada que deixou seus lábios sem sua permissão. Neil passou mais algum tempo atirando até que a maioria de seus disparos passaram a acertar o alvo e Andrew o obrigou a dar uma pausa.

— Mais relaxado? — perguntou quando os dois se sentaram lado a lado no chão do estande, encostados na parede com pouco espaço entre eles. Neil tentou não pensar muito na proximidade que o agradava mais do ele estava acostumado.

— Sim, obrigado por ter descido mesmo que eu não tenha marcado nem nada.

— O que te estressou? Você não parece ser o tipo de pessoa que esquece o que foi ensinado depois de ser corrigido e eu corrigi a sua postura semana passada, então isso quer dizer que você provavelmente não estava focado o suficiente hoje pra se lembrar de manter a postura certa.

Neil olhou para Andrew por alguns segundos, ponderando se valeria a pena contar o que o estava atormentando.

— O quanto você sabe sobre o meu time de exy atual? — perguntou, por fim.

— Pouca coisa. Que você e o Kevin são atacantes, que é um dos times favoritos pra levar o torneio e que cada jogador ali faz parecer como se jogar nos Ravens fosse uma oportunidade que eles precisassem agradecer de joelhos todos os dias.

— Você já ouviu falar de Riko Moriyama? — Andrew assentiu. — Pois bem, por muito tempo ele foi considerado o melhor jogador do país sem muita concorrência, só que aí os Ravens contrataram e o Kevin. Juntos. Eu jogo com o Kevin desde sempre, nenhuma dupla se dá melhor que a gente em quadra, então em alguns jogos a gente começou a chamar mais atenção da mídia que o Riko e ele não gosta disso. Ele começou a pegar muito nosso pé, procurando por uma briga pra fazer um de nós ser expulso do time. O problema é que ele é filho do maior patrocinador dos Ravens e sobrinho do treinador e isso faz com que o que ele quer seja muito mais fácil de conseguir do que se fosse só um jogador qualquer.

— O que exatamente ele faz?

— Ele provoca o Kev porque sabe que ele é o meu ponto fraco, que eu não reagiria se ele só mexesse comigo. Então treino após treino e jogo após jogo, ele vem encher a cabeça do Kev de minhoca e às vezes parte pra agressão física e eu não consigo evitar de reagir porque o Kevin é o caralho da pessoa mais importante da minha vida e eu não consigo ficar só olhando um idiota filho da puta usando os privilégios de ser filho de quem é pra intimidar o meu irmão.

Andrew não falou nada por um tempo, apenas retribuiu o olhar que Neil lhe deu quando acabou de falar, aliviado por finalmente colocar para fora.

— Eu vou assistir seu próximo jogo. — Foi o que Andrew falou depois de pensar por um tempo. — Me avisa quando começar a vender os ingressos, eu vou estar lá.

— Você quer ir?

— Eu preciso ir — Andrew respondeu. — Eu tenho que ter uma conversa com alguém — concluiu com um sorriso debochado que Neil não conseguiu deixar de admirar.

— Você não precisa comprar ingresso, eu posso te colocar no camarote como meu convidado. O próximo jogo é aqui, nós vamos jogar no nosso estádio.

— Ótimo, faça isso — Andrew concordou com um sorriso quase maldoso.

— Obrigado.

Andrew apenas o encarou antes de soltar uma risada sem humor. O cabelo estava bagunçado depois de tirar o capuz e a aparência relaxada era uma visão muito bem-vinda para Neil, que gostava da sensação de saber que Andrew estava confortável o suficiente perto dele para não se importar em se arrumar ou impressionar.

— Você é interessante, Josten, então seja sempre sincero comigo e não me entedie como outros já fizeram. Boa sorte em manter minha atenção.

Foi tudo que Andrew disse antes de fazê-los voltar a atirar. 

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