Fio da Vida
Morta, deveria estar morta.
Era isso que cada poro do seu corpo gritava, não deveria estar ali. Parecia errado, estranho, uma forasteira vagando por um lugar que não lhe pertencia; uma consciência que havia conseguido escapar das garras traiçoeiras de um mar revolto. Jogada em seguida num lugar desconhecido.
O vazio prévio deu lugar a uma floresta com folhas verdes vibrantes, a terra fofa sob a sola dos seus pés afundavam conforme andava. Os pequenos feixes de luz do sol encontravam pequenas fendas dentre as copas majestosas iluminando seu caminho, lhe mostrando o rumo que devia seguir.
Entendeu sem precisar pensar, alguém a trouxe até ali.
A mesma fagulha de vida que tinha a salvo da escuridão sufocante propositalmente a levará para dentro de uma das muitas tapeçarias que havia visto, sim se lembrava de tudo.
Haviam muitos fios. Vida em forma de tecido – mutável - feito de linhas do passado, presente e futuro. Contos, histórias, livros inteiros com tramas que se desdobravam nas mais infinitas possibilidades.
Todo aquele cenário parecia estranhamente familiar, dolorosamente conhecido, mas mesmo assim misterioso.
O marrom denso dos troncos diminuiu dando brecha para que outras cores surgissem, no peito o coração batia fortemente, a cada passo um anseio ainda maior por algo que não sabia o que era. Os olhos alcançaram a visão além arvoredo e então... Parou.
Não por surpresa, mas por temor.
Se apoiou de leve na árvore mais perto, já não tinha certeza se as pernas cobertas por aquele horrível traje de hospital aguentariam firmes por muito mais tempo.
Era Gojo, o mesmo rapaz que compartilhava da outra ponta da linha do destino bem a sua frente. Não havia maneira de negar que era – de fato - o retentor da técnica dos seis olhos, os mesmos cabelos claros, a figura esbelta e o ar despretensioso enquanto mexia no celular.
Mas mesmo assim não era seu Satoru, não era aquele que havia conhecido. Não era o rapaz do qual sentiu as dores quando foi atacado por Toji, não era a pessoa que tão desesperadamente atendeu seus pedidos enquanto caminhava para o leito de morte ou o que compartilhou palavras de esperança durante o tempo que Prometeu a manteve em cativeiro.
Poderia ser a mesma figura, mas era outro.
Queria chegar mais perto, mas assim que deu alguns passos além da linha da pequena floresta voltou a parar. Só então reparando na figura feminina que estava ao lado dele, segurando seu braço, mirando em sua direção.
Um olhar afiado, confuso e talvez levemente curioso. Desafiante mas de alguma forma gentil.
Não sabia se a garota podia enxergar os pequenos filetes avermelhados que os circulavam, tampouco se entendia o que realmente estava acontecendo por ali, quem realmente era ou a ligação que compartilhavam mesmo sendo de histórias completamente diferentes. Tapeçarias incompletas que se moldavam em universos díspares.
Iguais, mas ao mesmo tempo. Não.
De alguma forma estranha sentiu suas próprias lembranças escaparem para fora de sua mente, uma troca. Estava visitando o mundo dela então que compartilhasse um pouco do seu.
Acima da sua cabeça alto nas nuvens o som de um dos pássaros a fez desviar e então quando voltou seu olhar a frente eles já não estavam mais lá, a visão que tinha era uma versão mais nítida dos sonhos que havia tido meses atrás.
Uma campina florida com uma única figura de cabelos longos sentada ao meio dela, a famosa akai ito a rodeando flutuando em espirais o tom de vermelho vibrante parecia cintilar conforme se movimentava.
A voz tranquila chegou aos seus ouvidos, mas tão estranha quanto se fosse de uma língua desconhecida. Deu alguns passos em sua direção e dessa vez não afundou, ou acordou de repente em sua cama nos arredores da escola de jujutsu. Apenas encarou mais atentamente a figura de seus sonhos.
Observou apenas para descobrir ser um reflexo, mas mãos cruzadas educadamente sobre o colo completamente encharcadas de sangue, manchas de carmesim se erguiam pelas roupas tradicionais até quase chegar aos cotovelos.
-Você os viu não? – a figura que até então parecia imóvel, abriu os olhos. O esquerdo era de um turquesa vivo, como as águas iluminadas do mar egeu o outro era de um azul brilhante com reflexos coloridos, igual aos olhos de Satoru. Um riso gentil adornou sua feição de traços leves, criando um contraste gritante com o resto da composição brutal da cena.
– O outro caminho. – concluiu a frase respondendo sua pergunta anterior.
-Quem... Quem eram? – Sua voz soou rouca como se tivesse mantido em silêncio por muito tempo.
-Eu, você, numa outra história num outro universo – a figura continuou falando e indicou para que a visitante se sentasse à sua frente – Esperei muitas eras para te encontrar, apesar de aqui o tempo passar diferente.
Seus ombros se moveram indicando um longo suspiro, a cabeça se virou para olhar as pequenas pétalas de flores caiam até se aconchegarem no chão. – Você está salva aqui [Nome], embora não possa retornar para o seu corpo físico. Pelo menos não ainda.
-Onde é aqui? – perguntou, e não dando chance de resposta continuou – Acredito que você seja a minha ancestral, a que assinou a outra metade daquele contrato.
A mulher riu alto – Soube no momento que te vi que gostaria de você. Pois bem, sobre onde estamos...
-É um território – disse encarando com firmeza – Um espaço escondido na linha do tempo. Yoshiaki, usou do que restava da sua vida e energia para criar esse lugar.
A maneira sussurrada como ela disse o nome do parceiro não deixou dúvidas de que provavelmente era o descendente de Satoru. Tinha amor presente em cada sílaba falada do nome dele, e tristeza também.
-Aposto que esse olho também é dele.
-Sim, de fato. – a mão alcançou o lado direito do rosto – Graças a ele pude te observar durante todo esse tempo, então sejamos agradecidas.
-Pelo que? – [Nome] perguntou – Por perder o livre arbítrio? Ou melhor, já sei, por ter uma maldição romantizada me acompanhando pelo resto da minha existência!
-Nós achamos os documentos, a guerra, as cartas trocadas... Vocês estavam apaixonados. Mas as famílias insistiram em entrar no caminho e então fizeram um acordo, um contrato amaldiçoado para que se encontrassem na vida seguinte a aquela que morreram.
- Tudo por... – parou por um segundo – Amor. Condenaram suas próprias almas a ficarem juntas pelo resto da existência, se encontrando de novo e de novo. Bem me desculpe, mas realmente não sei como agradecer por isso.
O reflexo deixou que despejasse toda a sua fúria antes de responder – Não estava lá quando descobrimos quem realmente éramos, e o que um dia fomos. Pode pensar que retiramos a sua liberdade, mas enquanto vocês viverem no mesmo mundo a história iria se repetir com contrato ou sem contrato.
-Então porque entrelaçar as duas vidas para toda a eternidade?
-A linha que você vê não é um mapa, não serve para que possam se encontrar... É uma amarra. – as mãos que estavam em cima do colo ensanguentado se ergueram – Tempo e espaço são uma unidade, quando separados trazem nada além de destruição.
-Sim, você não está errada quando fala que foi por amor – respondeu – Amor por esse mundo, pelo que conhecemos, pelas famílias, pelas pessoas... O eu fui e o que você é, representa um perigo [Nome].
-O tempo é e sempre foi o mais perverso das forças.
Sentia sua cabeça pesar, a linha do destino era um laço que os prendiam mas que ao mesmo tempo servia de proteção. Impedindo que se autodestruísse e num cenário mais caótico destruíssem o que existia ao redor. Um não existe sem o outro, o equilíbrio não existe sem a unidade a akai ito era a algema que estava ali para garantir isso.
-Por isso a pena de morte – disse com a voz baixa – A ausência da outra parte provavelmente te transforma numa força destrutiva, para salvar o que existe se um morre o outro também.
O silêncio foi mais do que a confirmação.
-Tivemos que ser um pouco egoístas para salvar o que viria depois de nós... Desculpe.
Entendeu de certa forma, era como o famoso dilema moral do trem. "Um trem está correndo pelos trilhos e está fora de controle. Se continuar em seu curso e não for desviado, ele passará por cima de cinco pessoas que foram amarradas aos trilhos. Você tem a chance de desviá-lo para outra pista simplesmente puxando uma alavanca. Se você fizer isso, no entanto, o trem vai matar um homem que por acaso está parado nesta outra pista."
Matar um para salvar cinco, ou matar cinco para salvar um.
No fundo da sua mente não sabia se teria agido de forma diferente. Mas era seus pensamentos mesmos ou eram os dela que estavam ressonando pela sua mente, o que a fez pensar num outro ponto.
-Se o contrato foi firmado sem uma cláusula de romance, então porque-
[Nome] se interrompeu antes que pudesse continuar.
-Porque você tem sentimento por ele? – a mulher completou com um sorriso – Porque ele te faz sentir viva mesmo que ache que não? Porque parece ser uma fagulha de calor que traz companhia? Uma presença inexplicável que você simplesmente não consegue deixar partir?
-Amor. Alguns tipos de encantos apenas não precisam ser explicados. – pela primeira vez ela saiu da posição sentada e se levantou andando vagarosamente na direção da garota - Eu amei Yoshiaki com tudo o que eu tinha, e ainda amo.
-Mas não significa que você é obrigada a amar Satoru também, essa escolha é sua para fazer. – ela balançou a cabeça tomando um tom mais risonho – Mas ser o encaixe perfeito um do outro ajuda.
Ela sorriu e levantou a mão para meu rosto – Espero que você tenha uma vida longa [Nome], esse é meu presente de despedida para você.
***
O chão branco abaixo dos meus pés e acima nada além de nuvens escuras. Flocos de neve pura dançando no ar, não sabia o que a outra "eu" quis dizer com despedida mas mesmo assim não estava com uma sensação boa.
E isso se confirmou quando vi o corpo da comandante Vega coberto de sujeira numa cratera recém aberta no chão. Senti meus olhos arderem, aquilo havia sido pouco para ela.
No chão de gelo fofo outra trilha se arrastava terminando numa pilha mais à frente, o conhecido tom de vermelho sangue indicando que havia alguém ferido nos arredores, andei com passos cuidadosos até a pessoa que estava ali apenas para ter o choro engasgado em minha garganta.
-Akio-san! Não! – meu joelhos cederam – Por favor não!
Mesmo que tentasse não conseguia o alcançar, afinal ainda era só uma consciência vagando por lugares que não deveria. Queria o chacoalhar bater em seus ombros e pedir para que parasse com aquilo – Prometeu acabou Akio-san, Vega, Ryker todos eles se foram. Podemos voltar para casa agora, por favor.
Não sabia se ele podia me ouvir, também deveria ser um pouco difícil já que não passavam de soluços em meio a lágrimas. –Você disse que ia cuidar de mim quando me buscou no aeroporto não foi? Que ia me levar no próximo festival de primavera.
-De tudo o que eu disse você só lembra disso?
Minha visão estava embaçada pelas lágrimas mas a voz do homem soou forte clara aos meus ouvidos. Me virei para trás o encontrando parado, uma aparência fantasmagórica e as vestes completamente destruídas, alguns ferimentos de tiros visíveis até mesmo a olho nu.
-Akio-san! – mesmo aos tropeços me lancei ao tronco do homem a energia fraca mas mesmo assim o suficiente para que eu o pudesse tocar – Você está morrendo, eu estou feliz de poder falar com você. Mas o você de verdade está atravessando, precisa voltar. Eu descobri o que aconteceu e-
Ele me calou puxando a minha cabeça contra seu peito num abraço forte – Achei que tinha te perdido, todos nós achamos. Satoru-kun cumpriu sua promessa, afinal, posso me dar merecidas férias agora.
O jeito que ele me segurou foi necessário para que eu entendesse que não voltaríamos para casa. – Escute...
O homem afastou meu rosto a fim de que pudesse encontrar meus olhos – É esperta [Nome] já deve ter entendido o que está acontecendo, olhe pra mim. – Akio-san tirou os poucos fios de cabelo que estavam na frente dos meu rosto para poder me encarar – Você foi a melhor coisa que me aconteceu, potencialmente problemática. Mas mesmo assim trouxe a vontade de viver que a muito tempo eu já não tinha.
-Não sei quanto mais de energia eu tenho, mas sei que você precisa voltar. Vou manter o discurso que tivemos logo no primeiro dia, use seus poderes com sabedoria. Não tenha medo de pedir ajuda de outras pessoas, não é fraqueza. Não tenha medo de se arriscar ou amar [Nome] é tudo o que temos nessa vida.
-Sei que não tenho direito de falar isso porque não sou seu pai ma-
-É sim – interrompi colocando as minhas mãos por cima das dele – Você é meu pai.
Akio ficou em silêncio por um momento mas sorriu – Me prometa que vai dar o seu melhor para ser feliz. Por mim e por você.
Balancei a cabeça enquanto os soluços cortavam a minha garganta e as lágrimas turvaram a minha visão. – Prometo.
-Ótimo – senti ele me apertar nos braços mais uma vez – Eu amo você [Nome], não se esqueça disso. Mas agora está na hora de voltar.
***
Gritos desconexos foi tudo que chegou aos meus ouvidos, não conseguia enxergar mas sentia os fios ligados ao meu corpo. Girei a minha mão puxando o que fosse que estivesse me restringindo.
Ar precisava de ar.
Joguei o tecido para o lado e em seguida minhas pernas alcançaram o piso frio do quarto, minhas pernas vacilaram mas antes que eu pudesse cair no chão um par de braços me manteve no lugar.
-Sabe na história de verdade você devia esperar pelo beijo do príncipe encantado – levantei a minha cabeça, era Satoru. O meu Satoru. Os cabelos estavam bagunçados e o óculos que geralmente cobriam seus olhos não estavam por perto, o garoto sorriu de leve antes falar – Bem vinda de volta.
N/A: Muitas coisas a se falar nessa nota.
Primeiramente queria agradecer a @maki_sann
Que aceitou a minha loucura de colab, se vocês quiserem saber quem é o outro Satoru e a figura misteriosa (que carinhosamente atende pelo nome de Ushi) deem uma conferida na história:
- Way ( Jujutsu Kaisen )
Disponível nesta mesma plataforma. (dei uma mãozinha pra autora tb hihihi)
Talvez vocês encontrem essa mesma cena lá com outro ponto de vista ;)
Segundamente, bom. Temos muitas coisas a processar, ainda haverá conversas entre os personagens explicando o que foi esse turbilhão de informações, mas essa semana foi isso.
Vejo vocês semana que vem.
Até mais, Xx
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