Capítulo XVIII - Algo muito, muito errado

Kevin e Flore Grandis observavam Dancourt da estreita estrada de terra encosta acima, enquanto Victor conferia se tudo no carro estava em ordem.

A caçamba da caminhonete estava ocupada pelas caixas de papelão, todas cobertas por uma lona cinza que impedia que as futuras gotas de chuva molhassem os caixotes. Em breve, as nuvens que já haviam começado a se formar ocupariam todo o céu azul, como se entendessem a melancolia da situação e viessem para prestar as condolências. Um gesto bonito, sem dúvida, mas o casal não estava no clima para receber visitas.

Era uma decisão radical, eles sabiam, mas foi a que pareceu mais acertada. A dor era demais para continuar. Flore encarou a enorme floresta de pinheiros à sua frente e sentiu uma lágrima descendo pelo seu rosto, acompanhando a curva do nariz e, por fim, chegando à boca. Um gosto salgado tomou conta de seu paladar, acompanhado por um sentimento amargo de derrota. Ela lutou o quanto pôde, mas não foi o bastante.

A mulher sentiu um braço em seu ombro, mas não se virou para ver Kevin tentar consolá-la. Ambos sabiam que ele não conseguiria. Flore apenas deitou a cabeça no ombro do marido e fechou os olhos. Um vento frio soprava a manhã e fazia os cabelos da esposa caírem sobre seu rosto. Ela não se importou em afastá-los.

O irmão de Kevin apoiou-se na sua caminhonete e olhou para o casal. Ele sabia que era muito difícil para os dois deixar aquele lugar, ainda mais pelas lembranças que guardavam, embora não pudesse compreender totalmente tudo o que sentiam.

Os Grandis moravam em Dancourt há pouco tempo — apenas dois anos —, mas muita coisa havia acontecido durante esse tempo. Foi naquele vilarejo que a menina amadureceu. Lá ela conheceu novas pessoas, se divertiu, passou a precisar acordar cedo para ir à escola. Ela conheceu sua primeira paixão, um menino chamado Isaac Vasara, e ficou profundamente triste quando o garoto saiu de Dancourt. Ela descobriu o valor da amizade, tirou sua primeira nota vermelha e aprendeu que não se deve comer uma fruta antes de saber se é venenosa — uma história da qual Flore ria ao se lembrar, mas que na época causou uma enorme preocupação. Foi lá que Laura Grandis se tornou Laura Grandis, e foi lá que Abelone a tirou dos seus braços.

"Oh, Abelone... Por quê?"

A mente da mulher voltou ao presente ao ver uma movimentação logo abaixo. Seus olhos pousaram em três figuras correndo pelo campo aberto do vilarejo. Uma delas, menor que as outras, se encontrava dezenas de metros à frente, enquanto as duas maiores tentavam desajeitadamente alcançá-la. A senhora ficou curiosa ao ver que a pequena era Lillie Baudet, amiga de sua filha, mas perdeu o interesse pela situação assim que reconheceu os cabelos ruivos do detetive Knopp. Ela se virou para seu marido, que também havia reconhecido o homem, e ele assentiu. Estava na hora de ir embora.

— Podemos ir — disse Kevin para seu irmão.

Victor desviou seu olhar das nuvens cinzentas que se formavam acima de suas cabeças e assentiu. Os dois homens entraram na caminhonete e se sentaram nos bancos dianteiros, deixando a porta de trás aberta para Flore entrar. No entanto, a mulher continuava de pé, encarando a floresta de Manoury.

— Querida? — o marido chamou, colocando a cabeça para fora do carro. — Vamos?

Flore Grandis fechou os olhos por vários segundos, deixando que suas últimas lágrimas de tristeza corressem por seu rosto. Ouviu um carro frear à sua direita e se virou para ver um táxi estacionar próximo à entrada de Dancourt. Saíram de lá dois sujeitos que Flore não conhecia, um homem baixo de cabelos cor-de-rosa e uma mulher loira com um gato no colo. Além deles, saíram mais duas figuras, mas estas, por sua vez, lhe eram familiares: Rebecca e Giselle Gray.

— Vamos — disse ela para o marido, entrando no carro antes que qualquer uma das duas a visse. Não saberia se despedir, principalmente de Giselle.

Ela não olhou para trás quando a caminhonete de Victor começou a andar. Tudo que conseguia pensar era em como o mundo era muito, muito irônico.

• • •

Iguana odiava viajar.

A felina sempre gostou de se sentir livre, solta. Estava acostumada a ir aonde queria, quando queria, retornando apenas para se alimentar e fazer suas necessidades. Havia adestrado bem sua humana, que sempre lhe dava comida, apesar de esquecer-se de fazer isso de vez em quando. No geral, Iguana era um animal independente.

Enclausurada em uma gaiola, em um veículo que a levava a um lugar desconhecido e indesejado, a gata se sentia vulnerável. Não estava no controle da situação, como se acostumou a estar. Para piorar, esteve na presença de uma humana que não conhecia, mas com quem, por algum motivo, havia sido forçada a conviver nas últimas horas.

Bom... Pelo menos esta parecia mais cuidadosa que a sua dona.

Giselle terminou de colocar comida para o felino, que na mesma hora começou a mastigar. Conforme as instruções da srta. Harper — ela insistiu veementemente para não ser chamada de "senhora", dizendo que este pronome de tratamento a fazia se sentir trinta anos mais velha —, foi até a cabana algum tempo após a saída dos detetives para garantir a sobrevivência do gato.

Não demorou tanto para ir, apenas trinta minutos. Esteve em casa e almoçou, devido à insistência da mãe. Pretendia passar na casa de Lillie para conversar, mas sentia que as coisas estavam estranhas entre as duas. Desde que recebera a notícia da morte de Laura, desde a conversa das duas em frente à floresta, Giselle sentia que a relação entre ela e a amiga não caminhava como de costume.

Lil estava chorando quando chegaram em Dancourt. Será que deveria perguntar o motivo a ela? Uma boa amiga respeitaria seu espaço, não é? Mas uma boa amiga também ficaria preocupada, como de fato estava. Deveria tocar no assunto ou esperar que ela o fizesse? Giselle não sabia.

Ela se preparou para ir embora, ansiosa por um banho e para experimentar a blusa que Elsie comprara para ela em uma das lojas do aeroporto, mas algo lhe chamou a atenção: havia uma filmadora em cima da cômoda.

Giselle se lembrava de tê-la visto ao lado de Lawrence quando foi visitá-lo no hospital. Ela não estava presente quando aconteceu, mas supunha que o ruivo a havia usado para gravar sua entrada na floresta. Precisava admitir: estava curiosa para saber como era estar dentro da floresta, embora tivesse sensatez para jamais fazer isso de verdade. Tentava em vão não pensar em Laura — teve a impressão de ter visto a mãe da amiga saindo da cidade, mas não tinha certeza — mas se sentia reconfortada sabendo que o caso estava em boas mãos.

Além do mais, ainda que se recusasse a aceitar o pensamento, gostaria de ver o pai mais uma vez. Claro que o seu corpo morto não era uma visão que a agradava, mas ela queria saber. Se ele havia mudado nos anos em que esteve longe. Se ainda o reconheceria. E, acima de tudo, queria saber como havia morrido e o que diabos estava fazendo ali.

Ela se aproximou da mesa e pegou a filmadora. Abriu o visor, ligando o equipamento. Depois de alguns segundos, a imagem da floresta de Manoury apareceu na tela. Giselle sussurrou algo entre um "ah" e um "oh". Já sabia que não havia nada de sobrenatural naquela floresta e que Lawrence havia sobrevivido — obviamente —, mas não podia deixar de sentir apreensiva. O ruivo poderia ter morrido de verdade, com Abelone ou sem ele.

Sentou-se na cama e apertou o botão de play. Imediatamente, ou quase, a imagem mostrada na tela começou a se mexer.

A câmera passava rapidamente pelas árvores, o que ao mesmo tempo impedia que Giselle pudesse perceber detalhes e criava um clima de filme de terror. A menina se sentia dentro da própria floresta em vez de apenas assistindo a uma gravação, o que contribuía para o engrandecimento de sua apreensão.

Giselle nunca foi fã de filmes de terror. O silêncio sempre a incomodou, como se alguma coisa estivesse esperando o momento certo para sair das sombras e pular em sua direção. Era justamente esse sentimento de aflição que ela teve ao ver com seus próprios olhos a mesma coisa que Lawrence vira com os dele apenas três dias atrás. Giselle não pôde deixar de se imaginar no lugar do ruivo, entrando naquele lugar escuro e perigoso. Ela não queria nem imaginar.

Nada aconteceu nos dois primeiros minutos de gravação, até que a lanterna acoplada à filmadora iluminou uma árvore que possuía algo de diferente: marcas de garra. A menina se assustou ao pensar que poderia haver algum tipo de monstro dentro da floresta, mas se forçou a acreditar que não era nada. Ela sabia que Dawil e os outros detetives descobririam o que fez aqueles arranhões.

Depois de um tempo, Lawrence começou a seguir algumas pegadas, fez o caminho inverso e passou mais uns três minutos seguindo a trilha no chão. Gray supôs que eram de Laura Grandis e seu coração se apertou. Enquanto o detetive seguia o rastro de sua amiga, o sentimento ficava cada vez mais amargo e se tornou insuportável quando a trilha acabou repentinamente. Ela deu lugar a um monte de terra arrastada e ensanguentada e nem sinal de um corpo ou de para onde Laura pudesse ter ido.

Giselle não sabia se seria melhor ter visto o corpo. A inquietação de querer saber o que acontecera a sua amiga era angustiante, mas sabia que não conseguiria esquecer aquela imagem. Era real, a morte de Laura era real, aquele sangue ficaria gravado em sua mente para sempre. Com coragem, ela continuou acompanhando a filmagem.

Lawrence não se deteve muito tempo naquele lugar, o que foi um alívio. Ela observou enquanto ele fazia o caminho de volta, indicado pelo fio de barbante. O sentimento de que a qualquer momento algo apareceria na tela e a faria se assustar ainda estava presente, mas ela tentou ignorar.

Quando Lawrence se abaixou para pegar a sandália de Laura, Giselle percebeu que não deveria ter usado aquela palavra para expressar seu sentimento. Deveria tê-la guardado para aquele momento, porque aquilo, sim, era insuportável. Ver o calçado de sua amiga despertou uma emoção tão intensa que a garota precisou pausar a reprodução para poder se recompor.

Se permitiu chorar por alguns segundos. Iguana pareceu compreender o mal-estar da menina e pulou para cima da cama, esfregando-se em sua perna para consolá-la. Pareceu funcionar. Giselle soltou uma risada sem graça e fez carinho na gata. Após limpar suas lágrimas, se recompôs e continuou, já em dúvida se queria mesmo continuar assistindo.

No instante em que deu play novamente, a câmera caiu no chão e tudo ficou escuro.

Ela soltou um grito que fez Iguana pular de volta ao chão. Por Deus, aquilo lhe assustou. O que caiu não era a câmera que ela segurava: o que ela vira foi a gravação de quando Lawrence a havia deixado cair dentro da floresta. Ela já estava temendo pelo pior — mesmo sabendo que Lawrence estava bem — quando a imagem voltou a ficar clara. O ruivo havia apenas caído no chão, e com a queda a lanterna se apagou. A menina respirou aliviada. Aquela gravação estava muito real, e ela sentia medo mesmo sabendo que estava segura, que Lawrence estava seguro. Gray estava prestes a mudar de ideia e pausar o vídeo quando ouviu o som de algo. Knopp também tinha escutado, evidente por interromper o seu próximo gole na garrafa de água.

Passos.

Lawrence não havia contado a ela o que vira dentro da floresta, e Giselle, vendo com os olhos do detetive, se surpreendeu. Já havia ouvido as histórias do padre Larousse sobre sussurros dentro da floresta, mas não esperava ouvir passos. E então, quando o detetive virou a câmera para a esquerda — Giselle não sabia se queria mesmo saber o que havia causado aquilo —, ela viu uma luz.

Sua surpresa foi grande, tão grande quanto a de Lawrence, ao que tudo indicava. O detetive caíra de joelhos no chão e Giselle também o faria caso não estivesse sentada na cama. Não conseguiu ver a origem da luz, mas, naquele momento, teve certeza de algo: havia, sim, algo de sobrenatural na floresta. Lawrence estava louco? De onde tirara a ideia de entrar lá?

E então, ouviu um grito grave cortar a floresta quando a luz foi de encontro ao chão, restando apenas o brilho da lanterna de Lawrence.

Enquanto o detetive se aproximava cambaleante do que quer que fosse aquilo, a garota inglesa só conseguia pensar "saia daí, vá embora". Todos os personagens de filmes de terror morriam quando iam investigar um som misterioso e ela não queria que Knopp fosse mais um deles. Giselle parecia ter se esquecido de que ele estava vivo.

Lawrence iluminou o chão, revelando o corpo de um homem. Foi então que um pensamento perturbador passou pela cabeça da garota.

"Estava no pescoço de um homem", foram as palavras que Knopp havia lhe dito ao lhe entregar o cordão de seu pai. "Havia acabado de morrer quando eu o encontrei".

Lawrence havia mentido para ela! Ele não havia encontrado seu pai morto coisa nenhuma! Ainda estava vivo quando ele o encontrou, e poderia ter saído vivo de lá. Giselle se recusava a acreditar que Knopp havia deixado seu pai para morrer, abandonado à própria sorte. No entanto, era isso o que havia acabado de ver.

"Lawrence não faria uma coisa dessas".

Ela se recusava a acreditar nisso. O simpático detetive que lhe dera esperanças não seria capaz de algo tão cruel, seria? Lawrence Knopp, o homem que lhe prometera solucionar o assassinato de uma de suas melhores amigas, deixaria um homem, seu pai, para morrer?

Entretanto, quando Knopp virou o corpo de lado e iluminou seu rosto, Giselle deixou esses pensamentos e deu pause no vídeo para observar atentamente a face ainda viva de seu progenitor. O homem que a abandonara anos antes. O homem que enfim voltou. Ela olhou seu rosto, em seus olhos.

Um sentimento tomou conta de Giselle, algo que ela não sabia descrever.

Ver a imagem de seu pai morto pode ser uma experiência perturbadora para a grande maioria das pessoas. Ver um ente tão querido perder seu último resquício de vida, lançado ao solo como um simples pedaço de carne, é capaz de embrulhar o estômago de qualquer um. Capaz de fazer sair lágrimas de seus olhos, gritos apavorados do fundo da garganta, juntamente de qualquer motivo para continuar a habitar este mundo sem essa pessoa. A morte é algo doloroso, cruel, sem a menor decência pela existência humana, mas é a verdade inevitável à qual estão fadadas todas as criaturas vivas.

Ver a imagem de seu pai morto, no entanto, não foi uma experiência perturbadora para Giselle. Ver seu ente querido perder o último resquício de vida não embrulhou seu estômago. De seus olhos não saíram lágrimas e por sua garganta não passou nada além do ar que a menina respirava. Não apenas porque "querido" não era a palavra certa para descrever o que sentia por seu progenitor, mas porque o que Giselle via ia muito além de Marcel Gray caído no chão da floresta de Manoury.

Não era um sentimento de tristeza o que tomou conta de Giselle, definitivamente não. Era o sentimento de que havia algo muito, muito errado.

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