Capítulo XIX - Um sinal divino
Os detetives bateram à porta de esperaram.
Eram cerca de dez e meia da manhã de uma terça-feira. O padre Josué Larousse não estaria na igreja naquele dia e hora — apesar de eles terem ido ao local para conferir —, então seguiram as instruções que Kevin Grandis havia dado a Lawrence em sua primeira visita caso o padre não estivesse lá: procurar na casa logo em frente.
Era esse o motivo pelo qual os quatro detetives se encontravam em frente à residência do padre àquela hora da manhã.
Aquela situação seria bastante curiosa para os olhos de um observador e, de fato, assim o era para todos os que passavam por perto. Os habitantes de Dancourt encaravam os detetives, intrigados com a cena que se seguia. Jefferson Gusev lhes era um rosto familiar, obviamente, e a maioria reconhecia os cachos ruivos e o visual extravagante de Lawrence Knopp. No entanto, a identidade de Mini Dawil e de Elsie Harper era um completo mistério para a maior parte dos cidadãos, assim como o motivo pelo qual os quatro detetives se encontravam em frente à residência do padre àquela hora da manhã.
O porquê de o narrador ter o costume de repetir as coisas também é um mistério.
Quando Josué abriu a porta para atender quem quer que tivesse batido, se surpreendeu com o tanto de gente ali. Repetiu a confusão dos habitantes do vilarejo, com uma diferença significativa: era em frente à sua casa que estavam esperando.
— Bom dia, senhores — cumprimentou, receoso. — Posso ajudar em algo?
— Pode apostar que sim — respondeu Jefferson.
Josué franziu a testa, reconhecendo o sujeito que o havia interrogado no dia anterior. Reconhecera também, como não podia deixar de ser, o incômodo detetive ruivo que havia ignorado seus conselhos e entrado na floresta amaldiçoada. Não fazia ideia de quem eram a mulher loira e a menina de cabelo rosa, mas, se estavam na presença dos dois, provavelmente eram tão irritantes quanto.
— Precisamos falar com o senhor — disse a menina, e o padre se surpreendeu ao perceber que ela era, na verdade, um homem adulto. — Podemos entrar?
A contragosto, Josué virou-se e caminhou para dentro de sua casa, chamando-os para entrar também. Entrando um por um atrás dele, perceberam o enorme número de figuras religiosas em sua casa. Estatuetas, crucifixos pendurados, quadros, pratos decorativos e panos de prato. Alguns deles, eles perceberam, eram presentes que o padre havia recebido de seus fiéis, acompanhados de cartas de agradecimento de nomes familiares aos detetives.
Estava terminando de preparar um café e o ofereceu a seus visitantes, por cortesia. Também por cortesia, Lawrence aceitou, como era de se esperar.
Sentaram-se quase todos. Dawil ficou de pé pela falta de cadeiras suficientes, mas recusou quando Josué ofereceu-lhe seu lugar. Não estava cansado. Dando de ombros, o padre serviu o café a si mesmo e ao ruivo, que virou o líquido para dentro de sua própria xícara com seu apelido estampado. Como um bom detetive, Knopp não tomou o café antes que o seu anfitrião também o fizesse.
— Fico feliz em saber — disse Josué, claramente nada feliz em saber — que você não apenas ignorou meus pedidos para parar de investigar, como chamou amigos seus para cometer os mesmos erros que você.
Lawrence, de frente para o padre, inclinou-se para em sua direção.
— E eu fico feliz em saber — respondeu, também nada feliz em saber — que você não apenas continua tentando me afastar desse caso, como também... — Pensou um pouco. — Não, é só isso mesmo. Você continua tentando me afastar desse caso.
Não era exatamente o discurso intimidador que ele havia preparado, mas não importava.
— Como você mesmo disse, eu ignorei seus pedidos — continuou. — A Agência LED e o Jefferson se aprofundou nas investigações e, juntos, nós descobrimos algumas informações interessantes. Temos motivos para acreditar que esteve mentindo para nós.
Larousse levantou a sobrancelha.
— Eu por acaso menti sobre os sussurros? — perguntou ele, em resposta. — Você mesmo esteve na floresta, Lawrence, apesar de todos os meus avisos. Eu menti sobre os sussurros?
Lawrence engoliu em seco, lembrando-se dos momentos aterrorizantes vividos lá dentro.
— Não... — respondeu após alguns segundos. — Não mentiu. Mesmo assim, eu me lembro de quando conversamos na igreja. Você disse ter estado — como foram mesmo suas palavras? — "cara a cara com o demônio". Bem, Josué, eu tenho certeza de que está mentindo sobre isso. Não há demônio algum naquela floresta.
O padre mostrou expressão de confusão, mas se retraiu.
— Do que estão falando? — perguntou.
— Encontramos pegadas na parte de trás da floresta — revelou. — E também câmeras. Não entendo por que uma entidade paranormal precisaria fazer uso delas, mas o que consigo entender é como um ser humano o faria. Quem está assassinando todas essas pessoas é um ser humano como eu e você, padre. Além do mais, conversamos com a polícia e descobrimos que Abelone sequer morreu nessa floresta! Ele foi preso e morreu na cadeia, trinta anos atrás. Sendo assim, não há maldição alguma, mas você jura ter visto um demônio quando entrou lá. Me pergunto o que o senhor realmente viu lá dentro — se é que viu alguma coisa.
Lawrence sabia que não deveria revelar tantos detalhes da investigação a um suspeito, principalmente a esse suspeito em particular. No entanto, sabia que ele estava escondendo algo e torcia para que, uma vez que percebesse que sua mentira havia sido descoberta, o padre decidisse confessar.
Ele ainda não parecia disposto a isso, limitando-se a responder com um movimento das sobrancelhas.
— O senhor é padre há muito tempo? — indagou Dawil, no que todas as cabeças se viraram para ele. Ele esteve quieto até então, mas enfim decidiu falar.
— Hã... Sim — foi a resposta. — Há quase vinte anos.
Dawil se aproximou e apoiou-se sobre a mesa.
— Quando cheguei ao vilarejo — disse —, eu e Lawrence assistimos à sua missa. Percebemos que o senhor fez questão de alertar as pessoas sobre a maldição na floresta e o que "Abelone" havia feito com Laura. Havia bastante gente na igreja naquele dia, não acha? — O padre não sabia se deveria responder ou se era uma pergunta retórica. — Imagino que não era algo incomum toda essa plateia, assim como não acredito que seu aviso sobre a maldição aconteça apenas em caso de tragédia. O senhor parece ser bastante influente aqui em Dancourt, e aposto que, durante esses vinte anos, usou dessa influência para tentar afastar as pessoas do que quer que haja dentro daquela floresta.
Ele voltou a ficar ereto e apoiou um braço sobre o outro, coçando o queixo.
— Me pergunto por que o senhor teve tanto empenho para salvar as pessoas de uma maldição que não existe. Uma maldição que você sabe que não existe.
O padre engoliu em seco.
— Pessoas morreram lá dentro, meu jovem — ele rebateu. — Morreram de verdade. Não sei o que está fazendo isso, mas está assassinando os cidadãos de Dancourt.
— Pensei que houvesse um demônio — cortou Jefferson. — Agora diz que não sabe o que era? Não estou lhe entendendo, padre.
Josué decidiu ignorá-lo.
— Há anos eu tento impedir esse vilarejo, meu lar, de ser extinto — ele prosseguiu. — Eu faço tudo que é possível para evitar que as pessoas entrem lá dentro, mas parece que sempre há pessoas estúpidas que ignoram meus avisos.
Larousse fez questão de olhar diretamente para Lawrence ao dizer aquilo. O detetive, no entanto, não lhe deu atenção. Não era a primeira vez que lhe chamavam daquilo, numa falha tentativa de ofendê-lo. Ocorria, geralmente, quando duvidavam de sua capacidade de dedução, que ele sabia ter como motivação seu visual extravagante, por isso não se ofendia com isso. Afinal, era mesmo sua intenção baixar as expectativas das pessoas para depois poder surpreendê-las com sua genialidade, o que sempre funcionava. No entanto, não era esse o motivo pelo qual não se incomodou com os xingamentos do padre. Lawrence sabia por que Josué tentava ofendê-lo: Josué Larousse estava com medo.
Knopp não precisou dizer nada. Elsie fez por ele.
— Me soa um tanto hipócrita de sua parte, senhor — ela disse, no que o homem lhe franziu a testa. — O senhor mesmo não entrou na floresta, anos atrás?
Josué engasgou. Era isso, era o seu medo. Medo da lembrança de anos atrás, de quando passara pela mesma aflição que tentara evitar a Lawrence. Pelo mesmo que passaram Laura Grandis, Marcel Gray, Lou Lafaille... Leon Courbet, Martha Pascal e tantos outros, tantos cidadãos que tiveram as vidas tiradas por aquela floresta maldita... Tudo o que queria era evitar que mais mortes acontecessem, e foi o que disse a eles.
— Eu podia ter morrido lá dentro. — Ele encarava a loira enquanto falava. — Não sei como consegui escapar, mas considero que foi um aviso de Deus para mim, dizendo que minha missão não havia acabado. É esta a minha missão: impedir que outras pessoas cometam o mesmo erro do que eu.
Ele parecia convicto do que falava, Elsie tinha de reconhecer. No entanto, ainda havia uma pergunta a ser feita, o motivo que os levara àquela casa, àquele horário. A mulher deixou as honras para Lawrence, que pareceu satisfeito em, finalmente, perguntar:
— E o que o senhor fazia na floresta, para início de conversa?
Assim como da primeira vez que lhe fizera essa pergunta, o detetive não esperava receber uma resposta imediata. Do contrário: o padre permaneceu em silêncio, olhando para os lados, umedecendo os lábios que haviam ressecado, como Knopp previra. Em alguns segundos, daria alguma desculpa para tirá-los de sua casa, algo sobre a igreja ou alguma tarefa urgente a ser concluída. Mas eles não cairiam nessa.
— Lamento interromper a conversa, mas vocês precisam ir. — Ele se levantou, caminhando até a porta. — Tenho tarefas urgentes pra concluir. Coisas da igreja, vocês entendem.
Bingo.
Quando chegou à porta, virou-se, esperando ver os quatro detetives de pé atrás de si. Por isso, ficou surpreso ao ver que eles continuavam sentados.
— Você não pode me expulsar, Josué — disse Lawrence. — Não dessa vez.
Como forma de apoio — ou apenas de descanso —, Dawil sentou-se na cadeira que o padre desocupara, indicando que não sairiam de lá tão cedo. Talvez não fosse uma boa atitude deixar um senhor de idade de pé sem ceder seu lugar para ele, mas também não era uma boa atitude expulsar detetives de sua residência sem antes dar-lhes uma resposta.
Enquanto Josué não fizesse sua boa ação, eles não fariam as deles.
O padre inspirou fundo, de olhos fechados. Ele travava uma batalha interna, seus sentimentos fluindo e a memória daquela noite anos atrás, aquela fatídica noite em que sua vida perdera o sentido. A noite em que o Maligno fizera sua jogada, dando-lhe um xeque-mate. Ele tentava não se lembrar, há muito tempo fugia de suas lembranças, mas, ao final de tudo, havia falhado.
O padre, enfim, percebeu que não tinha como continuar fugindo daquilo.
— Jade.
O padre contornou a mesa e sentou-se em um banco próximo, sob os olhares confusos dos detetives. Não se sentou: desabou. Caiu sob o peso de seus pensamentos sobre o banco que, miraculosamente, conseguiu suportá-los.
Foi Elsie quem fez a pergunta:
— Quem é Jade?
Josué a encarou. Sua expressão era triste.
— Minha filha — disse ele. — Eu a adotei quando ainda era um bebê, anos atrás, e a perdi para essa floresta maldita.
Seus olhos passearam pelo cômodo, lembrando-se da pequena correndo pela casa. Aquele lugar era tão vivo, tão acolhedor...
— Uma noite, quando ela tinha apenas quatro anos, eu a deixei esperando em casa enquanto rezava a missa — contou. — Seria algo rápido, apenas uma curta celebração. A igreja estaria cheia e não queria que ela ficasse no meio de toda aquela gente. Pensei que não haveria problema, mas... Quando voltei para casa, ela havia sumido.
Os detetives se entreolharam, atônitos. Sumido?
— A procurei por todo o vilarejo — ele continuou. — Corri em busca dela, mas não a encontrei. Perguntei às pessoas se algum deles havia visto minha filha, mas ninguém sabia de nada. Foi então que um homem me disse ter visto uma menina correndo para dentro da floresta, alguns minutos antes. Entrei lá na mesma hora, sem pensar duas vezes.
Ele olhou para cada um dos detetives, um por um.
— Quando a encontrei, ela já estava praticamente morta. Suas pernas estavam cheias de sangue e ela não conseguia andar, ou mesmo se levantar. Alguma coisa havia machucado gravemente a minha filha, mas eu ainda não tenho a menor ideia do que pode ter sido.
Eles não sabiam o que dizer — ou mesmo se deveriam dizer algo. Não tinham dúvidas de que Josué escondia algo deles, mas a verdade por trás de suas atitudes suspeitas era mais trágica do que pensavam.
Mas Larousse ainda não tinha acabado.
— Então, ouvi os sussurros. — Nesse momento, seus olhos se fixaram em Lawrence, como este sabia que aconteceria. — Não menti sobre eles, Lawrence: eu passei pelo mesmo que você passou. Então, eu fugi, simplesmente fugi. De alguma forma, consegui voltar para a vila sem problemas, arranhões ou machucados de qualquer tipo. Deus me protegeu naquele dia, Ele me deixou viver. Por algum tempo, não entendi o motivo disso, mas percebi que Ele queria que eu fizesse um bem a Dancourt. E é esse o bem que eu posso fazer.
O homem deu de ombros, os olhos cheios de lágrimas.
— Tentei alertar à população, mas não me deram ouvidos. As mortes continuaram e a cada notícia eu só conseguia pensar em minha filha, que sofreu o mesmo destino que cada um deles. Por isso, eu espalhei toda essa história para tentar afastar os moradores de lá. Não fui eu quem inventou esses boatos, eles existem desde que a morte de Abelone foi confirmada, mas eu tive que fazer com que todos passassem a acreditar nisso. Sim, eu sei que Abelone não morreu na floresta. Sim, eu menti sobre ter visto o tal demônio. E sim, eu sei que não há nada de sobrenatural naquela floresta. No entanto, eu não tenho a menor ideia do que foi que assassinou a minha menina, e esta era a única forma de impedir que mais mortes acontecessem.
Os quatro detetives estavam incrédulos. O padre fora tão veemente em suas afirmações sobre Abelone e a maldição que era óbvio o quanto ele acreditava neles. No entanto, suas próprias palavras agora diziam o contrário. E, pelo estado em que o homem se encontrava naquele momento, eles se perguntavam se havia sido mesmo uma boa ideia interrogá-lo.
— As pessoas precisam do medo — ele concluiu. Talvez inconscientemente, levou sua mão direita em direção ao crucifixo e o agarrou. — Não é assim que deveria ser, mas não há outro jeito. É a única coisa que impede que nossa sociedade se entregue ao caos.
Ele baixou seus olhos e se pôs a chorar, em silêncio. Eles respeitaram seu momento. Lawrence passeou os olhos pelo cômodo mais uma vez, notando, além da grande quantidade de figuras religiosas, a total ausência de qualquer retrato de Jade na casa. Tal qual os Grandis, o padre decidiu deixar para trás o sofrimento que vivera no passado, mas, diferentemente destes, não abandonou o vilarejo. Preso a um propósito, firmou seus objetivos, que partiam de uma causa nobre. O ruivo quase sentiu-se mal por pressioná-lo tanto, mas não podia simplesmente deixar o caso. Precisava saber o que estava acontecendo naquela floresta.
Elsie não estava se sentindo confortável naquele lugar — nenhum deles, aliás. Para sua sorte, o timing estava a seu favor. Seu celular tocou naquele momento, interrompendo o silêncio com alguma música estridente e irritante. A sueca interpretou aquilo como um sinal divino para deixar a conversa.
— É de Rebecca Gray — ela avisou, ainda que curiosa sobre o motivo que levaria a mãe de Giselle a lhe telefonar. — Volto logo.
Ela levantou-se e se dirigiu a outro cômodo antes atender à ligação.
Aproveitando-se do ocorrido, que quebrou o clima tenso que havia se formado, Jefferson retomou o interrogatório — ou algo parecido com isso.
— O senhor sabe que Abelone foi preso e morreu na prisão, certo? — ele perguntou. O padre levantou a cabeça e a balançou positivamente. — Mas você sabia que ele tinha uma parceira?
A resposta desta vez veio como uma cabeça inclinada para a esquerda e a testa franzida.
— Parceira? — Josué repetiu, confuso. Então, fez que não. — Nunca ouvi falar sobre nada disso. Vocês têm certeza?
Foi a vez de Jefferson assentir.
— Falamos com a polícia — respondeu. — Nos disseram que Abelone não foi o único a roubar a joia. Havia uma mulher desconhecida com ele, mas apenas ele foi capturado. Pensamos que pudesse ter alguma ideia de quem pudesse ser.
'Josué tentou lembrar-se de qualquer menção a alguma cúmplice de crimes nas histórias que ouvira — e inventara — sobre Cédric, mas nada lhe veio à mente.
— Lamento, senhores, mas...
Eles nunca tiveram a oportunidade de descobrir pelo que o padre lamentava, pois a fala do clérigo foi interrompida por um grito do cômodo ao lado. Os quatro se viraram para a porta no momento em que a detetive Harper entrava por ela correndo com o celular em mãos, já com a chamada encerrada.
— Era Giselle — explicou, um pouco mais alto que o necessário. Percebendo isso, se corrigiu: — Era Giselle — repetiu, um pouco mais baixo. — Pegou o celular da mãe para me ligar. Ela não tem telefone, o que acho até bom. Ela não precisa de um, esse vilarejo é tão pequeno... Se bem que ela já tem dezesseis anos. Eu sempre tenho dificuldade para identificar a idade de alguém jovem, ela me parece ter uns treze anos para ser sincera...
— Elsie — Dawil a chamou.
— Ah sim, desculpe.
Ela então retomou o fio da meada.
— Era Giselle — repetiu. — Estava desesperada. Nós precisamos nos encontrar com ela agora. O corpo na floresta... — Ela olhou nos olhos de cada um dos colegas. — ...não era de Marcel Gray.
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