INTERLÚDIO
11 de Agosto de 2018, Antiga Residência dos Walters
Zaden suspirou profundamente ao assistir Alison tropeçar mais uma vez durante a execução de uma série de vinte piruetas contínuas. Ela ensaiava há horas e estava claramente esgotada, mas não parecia ter pretensão alguma de parar.
— Vamos, Alis. Você não acha que já fez o suficiente por hoje? — ele perguntou, enquanto observava a garota tomar posição e tentar novamente. — O seu ensaio de duas horas terminou há quarenta minutos atrás e você passou esse tempo todo só treinando esse giro. A coreografia que quer apresentar no Festival de Arte da escola vai continuar incrível sem uma pirueta de vinte voltas.
— A coreografia que eu montei só tem fouettés de dez voltas — ela disse, encaixando as escápulas, firmando o abdômen e posicionando os pés a distância correta um do outro. — O problema é que eu acabei errando a sequência mais cedo enquanto praticava e não posso correr o risco de deixar acontecer o mesmo no palco.
— Você só se deixou levar demais pelo impulso. Não foi um erro terrível.
A garota bufou.
— Minha perna tremeu, Zaden. Essa falta de equilíbrio fez com que toda a rotação ficasse horrível e eu não tenho muito tempo para corrigir. Hoje é sábado, amanhã é seu aniversário e a apresentação é na segunda-feira. Sendo assim, eu tenho que estar perfeita até lá — declarou, antes de iniciar mais uma pirueta, sustentando o corpo sobre uma perna e dando impulso com a que mantinha suspensa, dobrando-a uma vez e então rodando e repetindo o movimento de novo e de novo quinze vezes seguidas. E então trinta. Quarenta e cinco. Cinquenta. Sessenta.
Sem. Pausa.
Quando Alison completou sua septuagésima pirueta seguida, sua perna falhou e ela pisou em falso, desabando no chão encerado do sótão vazio onde costumava passar a maior parte das suas tardes ensaiando. Seu corpo estava tão firme em manter a compostura que até em queda continuou preservando a delicadeza de uma bailarina.
— Alison! — Zaden exclamou, correndo na direção dela, a testa franzida de preocupação. — Pelo amor de Deus, você se machucou? Consegue levantar?
— Está tudo bem — ela respondeu, ofegante, o peito subindo e descendo em seu collant preto. — Você viu...? Setenta fouettés. Mais que o dobro do que fazem em "O lago dos Cisnes". E eu consegui. Todos perfeitos. Eu fui demais.
— Você foi doida — ele contra-argumentou, checando os joelhos e tornozelos dela em busca de alguma lesão. — Está sentindo dor nos lugares onde estou te tocando? — questionou, ao passo em que a garota apenas fez que não com a cabeça, ainda em êxtase. Felizmente, ela parecia estar falando a verdade. Zaden se permitiu respirar aliviado por um minuto antes de voltar seu olhar para sua melhor amiga, com uma carranca permeada de chateação. — Alison, isso não foi legal.
— Claro que não foi legal — ela concordou de imediato. — Foi mais que legal. Foi esplêndido, Zay. Minha antiga professora de balé ficaria orgulhosa se me visse agora.
— Suas piruetas foram esplêndidas, sim — o rapaz assentiu, a contragosto. — Você forçando a si mesma a dançar além da exaustão? Não mesmo. Foi pura falta de responsabilidade e cuidado consigo mesma.
— Não exagera, Zaden — a garota disse, tentando se levantar, os joelhos tremendo e as panturrilhas queimando com o esforço. — Dizer que aquilo foi além da exaustão? Chega a ser quase uma ofensa. Eu sou uma bailarina.
— Exato. Você é uma bailarina — o guitarrista sibilou, oferecendo o braço como apoio, gesto que Alison aceitou de bom grado; apesar de fazer o tipo orgulhosa, ela era inteligente o bastante para saber que a vergonha de desabar no chão novamente após não aceitar a ajuda de Zaden seria muito maior do que simplesmente segurar nele para se reerguer. — É um ser humano, não uma máquina. Tem ensaiado pesado há meses e essa semana foi ainda pior. Você tem o direito de dar uma pausa.
— Você não entende. O Festival...
— Eu entendo, Alison — ele a cortou, sentando-se ao lado dela no pequeno sofá de dois lugares que havia no canto do sótão. — Sei que o Festival de Arte é importante, mas você não precisa se matar para mostrar que é merecedora de estar na liderança da equipe de dança que você fundou. Todo mundo sabe que você é mais do que capaz. Você já provou isso.
Ela suspirou, aninhando a cabeça no ombro de Zaden, fazendo com que ele se empertigasse por um segundo com a repentina demonstração de afeto. No entanto, o choque não durou muito tempo: relaxando a postura, ele passou um braço em volta da cintura da amiga, trazendo-a mais para perto.
— Eu só... sinto que tenho que continuar surpreendendo — desabafou. — Todos os ensaios, os treinos, as tardes praticando... tenho medo de não serem suficientes — prosseguiu, a voz não passando de um murmúrio. — Eu não sou como você, Zay. Seus pais têm dinheiro suficiente para que você não precise se preocupar em seguir os seus sonhos, mas eu tenho que dar tudo de mim para garantir ao menos uma chance de realizar o meu. Fora todos os olhares maldosos que recebo de quase todas as garotas brancas que também fazem balé no colégio. É como se pensassem que, por ser negra e conseguir ganhar protagonismo, eu estivesse roubando o lugar delas – quando na verdade sempre foi totalmente o contrário!
Zaden cerrou o punho ao lado da perna, sentindo raiva de todos aqueles que tentavam fazer com que Alison se sentisse inferior por causa da cor da sua pele. Também sentia raiva de si mesmo por não poder se levantar dali e fazer justiça com as próprias mãos.
— Toda essa gente nojenta sente inveja do seu sucesso, Alison. Morrem de inveja de você porque sabem que é maravilhosa, inteligente, talentosa e que dança melhor do que qualquer uma delas. E como sabem também que não podem tirar isso de você, tentam fazer com que perca a confiança em si mesma. Mas você não pode se deixar afetar, entendeu? Nem por elas, nem por ninguém nesse mundo. Nunca, está ouvindo? — o rapaz indagou, erguendo o rosto dela com delicadeza para que se alinhasse com o dele. — Enquanto você acreditar, não há nada que não possa fazer.
Os dois se olharam, castanho e azul encarando um ao outro como ímãs que não conseguem evitar contato, pupilas dilatando com a proximidade. Narizes se tocam, e eles compartilham uma mesma respiração. No entanto, quando os lábios estão prestes a se encontrarem, Alison muda de ideia subitamente, dando um beijo no canto da boca de Zaden.
— Obrigada por acreditar em mim. O que você pensa é muito importante — ela sussurrou, antes de se levantar, pigarreando: — Acho que Charles já chegou da reunião do clube de debate. Por que você não vai ver como ele está enquanto eu tomo banho?
Zaden levou um instante a mais para se levantar, ainda se recompondo do beijo que havia recebido. Não havia sido no lugar onde imaginava, mas tinha chegado perto.
Muito perto.
— Pode ir na frente — respondeu, com um sorriso tenso, enquanto Alison lhe dava um breve aceno e deixava o recinto.
Como ela conseguia simplesmente sair assim?, perguntou a si mesmo, tocando o local em seu rosto onde havia sido beijado, relembrando a sensação dos lábios dela contra sua pele.
E então sacudiu a cabeça bruscamente, tentando afastar o pensamento e tendo tanto êxito quanto na sua prova de matemática da semana passada – na qual, diga-se de passagem, ele havia ficado em recuperação.
Por Deus, não passava de um idiota apaixonado.
No início, Zaden pensava que conseguiria aguentar não contar sobre como se sentia em relação à Alison só para vê-la dar o braço a torcer e se declarar primeiro, mas hoje tinha acabado de se dar conta de que era fraco demais para continuar resistindo aos próprios sentimentos; além do mais, manter a dignidade ao fingir que suas intenções com ela eram só de amigo quando tão evidentemente estava desesperado por uma oportunidade de beijá-la era uma missão destinada ao fracasso.
E, tendo em vista que passaria a maior parte do dia seguinte ao lado dela, era melhor aceitar que só lhe restava uma única opção: aproveitar que iriam só os dois para o parque e deixar claro que pensava nela como muito mais do que uma amiga. Não tinha segredo. Ele tinha que ser honesto e pronto. "Eu gosto de você, Alison. Gosto muito mesmo. Você é a garota mais divertida que eu conheço, e não consigo pensar em nenhuma outra pessoa que seja mais bonita. Você me entende melhor do que ninguém e sinto que posso fazer qualquer coisa quando estou com você. E não, eu não sinto um pingo de vergonha por admitir que estou completamente apaixonado por você."
No entanto, havia alguém com quem ele precisava conversar antes.
— Ei, Charles — Zaden bateu de leve na porta aberta do quarto do seu companheiro de banda e um de seus melhores amigos. — Como foi no clube de debate?
— Hmm, não interessante o bastante para que valha a pena falar a respeito — o rapaz de cabelo cacheado respondeu, pendurando cuidadosamente um paletó azul-marinho em um cabide e o guardando no armário a sua frente. — Mas e você? Sábado não é o dia em que você e a minha irmã passam a tarde brincando de "Meninas Sereias" na piscina da sua casa?
— Ha-ha, muito engraçado — o loiro ironizou, adentrando no cômodo e sentando-se na ponta da cama do amigo, com as palmas abertas sobre os joelhos. — Alison está meio pilhada com a apresentação que a equipe de dança dela vai fazer no Festival de Arte do Instituto, então achou melhor ficar ensaiando.
— E como o bom amigo que é, você resolveu passar a tarde assistindo-a — Charles complementou, puxando uma cadeira para sentar de frente para Zaden, cruzando as mãos sobre o colo. — Sabe, ultimamente você e a Alison têm encontrado cada vez mais atividades para fazerem em conjunto.
— Isso é um problema? — o guitarrista indagou, incerto. — Digo, o fato de nós dois passarmos muito tempo juntos... isso incomoda você?
Charles ergueu as sobrancelhas.
— Não. Por quê? — devolveu a pergunta, encarando com desconfiança o amigo que exibia uma expressão nervosa no rosto. — Tem alguma coisa que vocês têm feito juntos que deveria me incomodar de alguma maneira ou...?
— Não! É claro que não — o outro negou, prontamente. — Eu só... o que eu estava tentando saber era se...
— Se eu sou contra o romance de vocês dois?
Zaden ficou sem palavras por um instante, perplexo.
— Como você...? — e então abriu um grande sorriso, cheio de esperança. — Alison falou alguma coisa de mim?
Charles deu risada.
— Aí você já está dando crédito demais a si mesmo, amigão — balançou a cabeça, achando graça. — Minha irmã não falou nada. Não foi preciso que falasse para que eu visse o que estava bem debaixo do meu nariz. Para ser sincero, chega até a ser cômica a maneira como vocês pensam que fazem um ótimo trabalho em esconder o que sentem um pelo outro quando todo mundo ao redor já percebeu.
— Como assim, todo mundo? Você quer dizer que Loren e Sebastian...
— É claro que eles sabem. Fazem piada pelas costas de vocês dois há meses, apostando quando vão finalmente começar a namorar.
Zaden riu, descrente, sentindo seu rosto esquentar com o constrangimento.
— E eu aqui pisando em ovos para saber a sua opinião quando na verdade você já sabia o tempo todo... — passou a mão pelo cabelo, puxando os fios dourados para trás. — Sebastian e Loren, aqueles dois safados. Se divertindo às minhas custas, não é?
— Você não faz ideia do quanto. Mas para te dar uma noção, basta dizer que Loren fez até um desenho de Alison levando um cachorrinho com o seu nome gravado na coleira para passear — o amigo comentou, mal contendo o sorriso. — Todavia, se te serve de consolo, o seu eu canino parecia bem feliz.
— Aquele italiano metido à besta — Zaden riu, descrente, imaginando seus amigos gargalhando ao redor de Loren enquanto ele trabalhava em sua caricatura. — O idiota tem sorte de que eu estou mais curioso para ver o tal desenho do que irritado pelo que ele quis insinuar. Além do mais, se tiver sido fiel ao original, a minha versão de quatro patas deve ser um verdadeiro espécime a ser admirado.
— Você realmente não deixa passar uma, Zaden — Charles disse de modo auspicioso, se inclinando contra o encosto de sua cadeira. — Brincadeiras à parte, é muito bom saber que você se importa com o que eu penso a respeito do seu relacionamento com a minha irmã, apesar de não ser algo que dependa da minha aceitação. Contudo, se quer minha opinião sincera, eu diria que não poderia escolher ninguém melhor para gostar da Alison. Ela costuma ser meio fechada emocionalmente, mas parece confiar muito em você. Fico feliz de vê-la se abrir tanto com alguém, principalmente se tratando de um dos meus melhores amigos — pigarreou, assumindo um ar austero. — Então, quando você me pergunta se ver duas das pessoas que mais amo fazendo bem uma a outra me incomoda, a minha resposta vai ser não, apesar de eu não fazer a menor questão de estar presente durante quaisquer demonstrações de afeto entre vocês dois e... você não vai querer me abraçar agora, vai?
— Desculpe interromper o seu discurso, senhor presidente do clube de debate, mas acho que sim, esse é um ótimo momento para um abraço — o loiro assentiu, com um sorriso emocionado, indo com os braços abertos na direção do amigo.
Charles suspirou, se levantando de sua cadeira.
— Você gosta muito de abraços — o baterista falou, apertando as costas de Zaden uma vez antes de lhe dar alguns tapinhas firmes no ombro. — Isso vai ser um problema, porque a minha irmã não é do tipo que vive abraçando.
— Nós podemos entrar em consenso.
— Não a magoe. Nunca.
— Eu não vou.
E Zaden fez de tudo para que isso não acontecesse, mas acabou magoando-a mesmo assim.
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