CAPÍTULO 8
Entrar no quarto de Zaden pela primeira vez em quase três anos era provavelmente a coisa mais próxima de uma viagem no tempo que eu já tinha feito; nada aqui havia mudado, exceto pelo maior número de guitarras em sua parede. Todo o resto continuava exatamente como eu me lembrava: o edredom azul escuro, os pôsteres das bandas e filmes favoritos dele estampando a parede atrás da sua cama e a enorme escrivaninha que ocupava quase toda a extensão de um dos lados do seu quarto. Até a prateleira com os skates e os ganchos onde ele mantinha sua coleção de bonés de beisebol continuava intocada. Tudo igualzinho, sem absolutamente nada fora do lugar. A inércia do tempo aqui dentro chegava a ser opressora.
Fui atingida por uma onda esmagadora de nostalgia: a sensação era quase a de estar entrando numa caixinha de memórias.
Prendi a respiração por um curto momento antes de me recompor. Eu precisava fazer um grande esforço para não deixar que as lembranças que eu tinha daqui agissem como uma névoa sobre os meus sentimentos e bagunçassem a minha concepção da realidade. Tudo podia parecer igual, mas as coisas não eram mais as mesmas. Zaden e eu éramos duas pessoas diferentes agora. Nós dois podíamos ter tido uma conversa sobre o passado e até mesmo nos abraçado, mas a verdade era que nunca voltaríamos a ser os amigos que éramos antes. E a última coisa que eu queria era ter que lidar com toda a decepção que tentar reatar a nossa amizade traria.
— Então, Alison — Zaden disse, de costas para mim, retirando de dentro de uma gaveta ao lado da sua escrivaninha. — Primeiro eu tenho que saber quais são os seus pontos fortes na língua francesa, porque assim já vou ter uma ideia do que preciso priorizar durante as nossas aulas.
— Eu consigo compreender facilmente uma música ou conversa que esteja em francês, mas sempre acabo me enrolando na pronúncia e sou péssima na parte gramatical. O que eu mais... — as palavras somem da minha mente por um momento quando Zaden finalmente vira de frente para mim. — Você... Por que você está...
— Por que estou usando óculos?
Assenti, engolindo em seco.
— Eles são os meus óculos de leitura — ele sorriu, ajeitando a armação fina e quadrada em seu rosto. — Quase não uso porque raramente leio, mas acho que dar aulas para você é uma ótima oportunidade para mudar esse hábito, não concorda? Além disso, eu ganho um ar bastante professoral quando estou com eles.
Ele acha que isso é professoral?, penso comigo mesma, desviando o olhar do rosto dele e focando na pilha de livros em cima da mesa.
— Acho que você fica melhor sem os óculos.
— Sério? — ele perguntou, erguendo uma sobrancelha enquanto assumia seu lugar em frente à escrivaninha e indicava a cadeira ao seu lado para que eu me sentasse. — Porque eu achei que o visual me caiu super bem.
E era exatamente esse o problema.
Aqueles óculos não faziam com que Zaden parecesse um professor de francês. Não aqui, e certamente não na França; ele estava mais para um universitário sexy que frequentava a biblioteca do campus usando óculos falsos unicamente com o propósito de conquistar alguma pobre desavisada que só estivesse querendo estudar ou ler alguma coisa em paz. (Se bem que a garota em questão teria que ser meio burrinha pra cair nessa, porque com os ombros que Zaden tinha qualquer indivíduo com olhos saberia que ele passava seu tempo livre levantando ferro na academia e não perambulando entre prateleiras de livros).
— Acredite em mim, você fica muito melhor sem — falei, puxando a cadeira para que eu pudesse me sentar, abrindo certa distância entre nós dois. — Além do que, essas lentes ofuscam os seus olhos.
Um brilho de divertimento perpassou suas feições e xinguei a mim mesma mentalmente por não ter inventado uma desculpa melhor.
— Esse é o seu jeito de dizer indiretamente que acha que os meus olhos são bonitos? Porque se for, não precisava ter se dado ao trabalho — ele estalou a língua, abrindo um sorrisinho convencido. — Eu já sabia. Aquele joguinho de encarar que você faz comigo nunca enganou ninguém, Alis. Você tem que aprender a disfarçar um pouquinho melhor se quer que eu não perceba.
Contive a forte vontade de lhe dar um tapa.
— Sabe, Zaden — eu disse, cruzando as mãos sobre a mesa. — Você se lembra de quais foram as condições que eu estabeleci para que essa coisa de você me dar aulas continuasse? Nada de piadinhas, distrações ou qualquer brincadeirinha parecida com essa que você fez agora. Sei que se ofereceu para fazer isso só por tédio, mas eu realmente quero melhorar, então...
— Eu não me ofereci para ajudar só por tédio — ele me cortou, retirando um dos livros da pilha que havia à sua esquerda e colocando-o à minha frente. — Olhe. É um volume de contos infantis em francês. Você disse que tinha mais dificuldade na parte gramatical, então o segredo é passar a ler mais no idioma. Esse livro em especial tem um vocabulário cuja maioria das palavras você vai compreender, já que foi escrito voltado para um público mais jovem. O fato é que: quanto mais você ler, mais familiarizada com a ortografia francesa vai ficar.
Encarei o livro diante de mim, atordoada. Era uma edição especial, com letras douradas e capa de couro vermelho, com páginas que pareciam terem sido manuseadas várias vezes ao longo dos anos. Sinto meu peito se contorcer de culpa.
— Eu...
— E antes que você diga alguma coisa, eu sei que não vai ser do dia pra noite e que você não quer um livro bobo pra criança, mas tenha em vista que estamos só no começo do seu processo de aprendizagem e que...
— Não é nada disso, Zaden — eu o interrompi, antes que ele continuasse e fizesse com que eu me sentisse ainda pior. — Eu só queria te agradecer pelo livro. E por estar... você sabe, fazendo o que está fazendo. Você não tem que me ajudar. Não tem que fazer nada disso, na verdade. Você só... quer saber de uma coisa? — balancei a cabeça, me levantando. — Desculpe, isso foi um erro. Você está se recuperando de uma lesão, deveria estar descansando e não tendo que me ensinar francês, coisa que, para ser sincera, eu posso me virar sozinha para aprender. É uma pena que você tenha tido todo esse trabalho, mas...
— Não, não é uma pena — ele disse, gravemente, erguendo o queixo na minha direção. — Sabe por quê? Porque você vai parar com essa besteira e sentar nessa cadeira, Alison. Você veio até aqui para que eu te ajudasse com um problema e só vai sair daqui quando ele estiver resolvido. Comprenez-vous, mon cher?
— Como é que é? — eu ri, achando graça do atrevimento dele. — Eu não vou sentar. Eu estou indo embora e quero ver o que é que você vai fazer para me impedir.
— Você não vai querer me testar — Zaden disse, retirando os óculos cuidadosamente.
A confiança calculada em sua voz é o bastante para que eu faça disso um desafio.
— Ah, é? — indaguei, cruzando lentamente o espaço que havia entre nós até estar de pé bem na frente dele, minhas pernas encostando em seus joelhos cobertos por jeans. Inclinei o corpo na sua direção, apoiando as mãos nos braços da sua cadeira. — Eu acho que eu vou.
Seus olhos encontram os meus, faiscando em azul-gelo intenso e provocador. A cor deles não sugere nada além de frieza, mas ainda assim sinto seu olhar queimar contra o meu. Meu coração acelera quando a atenção dele se desvia para a minha boca. Sem que eu me dê conta, acabo tocando o dorso da mão de Zaden, e observo fascinada uma série de arrepios percorrer o seu braço. Ele aproxima vagarosamente o rosto do meu, nossos narizes resvalando um no outro, sua respiração pesada se misturando à minha.
— Você...
Nós dois temos um sobressalto quando a tela do monitor do computador dele se ilumina, apitando de repente. A compreensão do que eu estava prestes a fazer me atinge com força e eu mal posso acreditar em mim mesma por ter chegado tão perto de cometer um erro tão grande.
— É uma chamada de vídeo — Zaden diz, a voz quase inaudível de tão rouca. Ele limpa a garganta: — Do Loren.
— É melhor eu ir embora — digo, mal me virando antes de ouvir vozes conhecidas vindo do enorme eletrônico atrás de mim.
— Ciao, fruta podre!
— Pelo amor de Deus, Loren, esse apelido é muito ridículo — Sebastian é quem está dizendo.
— Ridículo? É genial, isso sim. E você está é com inveja por não ter pensado nele primeiro — Loren se gaba.
Um suspiro de condescendência que eu reconheceria em qualquer lugar se sobrepõe sobre as outras vozes.
— E aí, Zaden? Como você está? — Charles pergunta, e antes que eu possa sequer pensar em me esconder, logo emenda: — Estou tendo alucinações ou essa garota aí no seu quarto é a minha irmã?
— A não ser que haja outra igual a ela a solta por aí, suponho que seja a própria — Zaden respondeu, antes de dar uns tapinhas no assento da cadeira ao seu lado. — Não seja tímida, Alison. Senta aqui para que o seu irmão possa te ver direito.
Contive o ímpeto de olhar feio para Zaden e abri um sorriso para os três rostos que nos encaravam pela tela do computador, me aproximando da câmera.
— Oi, gente. Vocês conseguem me ver melhor daqui?
— Só do pescoço pra baixo. Seria bom se você sentasse, porque aí ficaria na altura certa.
— É, Alison. Vem sentar aqui do meu ladinho — Zaden zombou em voz baixa, e eu lhe mostrei o dedo do meio disfarçadamente enquanto engolia a derrota e sentava na maldita cadeira.
— Como estão as coisas por aí? — perguntei, abrindo um sorriso. — Vocês vão sair em turnê no final da semana, não é?
— Sim, mas já estamos com as malas prontas — Charlie disse, enquanto Loren movia a câmera para mostrar a bagagem deles amontoada no fundo da sala de estar do apartamento que ele dividia com o meu irmão. — Temos uma entrevista marcada num jornal local da primeira cidade onde faremos show e por isso iremos para lá antes do planejado.
— Pelo menos dessa vez a gente vai em um jato particular ao invés de ter que passar por todo aquele tumulto do aeroporto — Loren disse, voltando o aparelho na direção deles, dessa vez ocupando quase todo o espaço da tela.
— Não acredito — falei, em choque.
— No quê?
— Você cortou o cabelo! — apontei, só agora percebendo que seu cabelo preto sempre abaixo do pescoço havia sido totalmente aparado.
— Ah, isso. Já faz uma semana — ele disse, indiferente. — Eu meio que cansei de manter o corte daquele jeito. Os cachos davam muito trabalho, e eu ando sem tempo.
— Sei como é — assenti, sabendo por experiência própria o quanto cuidar de cabelo grande era trabalhoso. — Os cachos te deixavam com a aparência de um anjo caído metido.
— Sério? — o italiano ergueu as sobrancelhas. — E agora eu pareço o quê?
— Só um cara metido qualquer mesmo.
— Chata — ele revirou os olhos. — Como o meu primo está se comportando na escola?
— O Gianluca é um fofo — falei, lembrando do garoto gentil de cabelos e olhos escuros. — E gentil também. Nem parece que é parente seu.
— O Luca? — Zaden gargalhou. — É tudo fingimento. Ele é uma peste muito pior que o Loren.
— E que moral você tem para falar alguma coisa? — rebati, olhando para ele de relance. — Ele foi um amor. Muito mais legal do que você.
— Mais legal do que eu? Pelo amor de Deus, Alison, como você é fácil de enganar. Ele só estava fazendo charminho pra tentar ganhar sua atenção — disse, em tom de obviedade.
— Com licença? Eu não pedi a sua opinião.
— Desculpe atrapalhar o assunto logo agora que o primo do Loren ia ser desmascarado, mas a curiosidade está me matando — Sebastian interrompeu, antes de perguntar: — Você e Zaden juntos? A que motivo se deve a realização de tamanho milagre?
— Eu também estou morrendo de vontade de saber — meu irmão ergueu uma sobrancelha.
— Alison estava precisando de ajuda em francês e eu me ofereci para ensiná-la — o idiota ao meu lado respondeu, ao passo que eu completava:
— Mas nós já desistimos.
— Por quê? — Charles franziu a testa em confusão. — Zaden era o melhor da classe em francês. Era a única matéria com a qual ele não tinha que se preocupar. Se precisa de ajuda, ele é a pessoa certa.
— Chupa essa, Alison — o loiro olhou para mim, triunfante. — O seu irmão disse que eu sou a pessoa certa.
— Perdão, mas depois dessa demonstração deplorável de falta de profissionalismo, eu já não tenho mais tanta certeza — Charl foi logo dizendo, o que trouxe um sorriso ao meu rosto.
Nem todos podiam contar com um irmão como o meu.
— Obrigada, Charlie. É sempre bom saber que tenho você para enxergar sob o meu ponto de vista — agradeci, mais do que satisfeita.
— Ei, espera aí, eu acho que mereço um pouco mais de crédito! — Zaden interferiu, ofendido. — Eu fiz o Loren passar sem precisar fazer nenhuma recuperação, isso tento em vista que ele mais dormia do que assistia às aulas. Esse é um feito que tem que ser levado em conta!
— Odeio admitir, mas é verdade que você facilitou bastante — Loren suspirou, dando o braço a torcer. — Aquela Professora Bru-Sei-lá-o-quê era o diabo.
Balanço a cabeça em concordância imediata.
— Ela é horrível — eu disse, pronta para despejar toda a raiva que eu estava sentindo com alguém que sabia do que eu estava falando. — Você acredita que a mulher marcou uma reunião só para me humilhar e dizer o quanto me achava péssima? E o pior foi que depois de ouvir todos os comentários depreciativos que ela fez, pensei que me seria oferecida alguma ajuda, mas eu estava enganada. Ela debochou de mim na maior cara de pau, ameaçou me tirar do clube de dança e foi isso, au revoir.
— Esse tempo todo e eu só fico sabendo disso agora? — Zaden olhou para mim, ressentimento estampando a expressão em seu rosto.
— Que diferença faria eu te contar ou não? Eu ainda teria que melhorar minhas notas de qualquer forma.
— Faria toda a diferença. Dependendo do que tiver sido dito para você, ela pode ser processada por abuso de autoridade.
— Não começa, Zaden.
— Ele tem razão — Charles assentiu, com raiva. — Quem ela pensa que é para ameaçar te tirar do grupo de dança que você fundou? Isso não pode ficar assim.
Respirei fundo, querendo retomar o controle da situação:
— Não é para tanto. Eu só tenho que tirar notas melhores e então esfregar meu boletim na cara dela — falei, tranquilamente. — Não tem nada melhor do que fazer alguém provar do seu próprio veneno. E eu sou totalmente capaz de dar o troco sozinha, muito obrigada.
— Se você está dizendo, então eu acredito — meu irmão disse, com o semblante sério. — Mas não me deixe por fora do assunto, está bem? Quero ficar sabendo caso essa professora volte a te falar coisas desse tipo.
— Tudo bem, mas não precisa esquentar com isso. Eu tenho tudo sob controle.
— Eu sei. Bom, nos falamos depois, porque temos um ensaio com o guitarrista substituto daqui a meia hora — ele falou, recebendo de Sebastian e Loren acenos em concordância.
— E como as coisas estão indo com o Thom? — Zaden perguntou, provavelmente se referindo ao rapaz que ficara no seu lugar. — Ele está dando conta de tudo direito?
— Não está cem por cento, mas está chegando lá — Sebastian disse, balançando a cabeça com um sorrisinho. — Você faz falta aqui, cara. Se cuida pra voltar logo.
— E vê se não cai de novo nesse meio tempo, hein? Nós precisamos de você inteiro — Charles acrescentou.
— Tá vendo em que situação você me deixou, Zad? Não aguento mais ficar com esses caretões — Loren resmungou, em seguida espalmando a mão na tela do computador, para fazer um leve drama. — Ci manchi, fratello.
— Também sinto a falta de vocês — Zaden riu, colocando a mão sobre a imagem da dele na tela. — Mas não chorem, logo vamos estar juntos de novo. Se tudo der certo, em um mês e duas semanas vou estar livre desse gesso.
— Assim eu espero — Sebastian disse, solenemente, antes de acenar em despedida: — Tchau pra vocês dois. Se comportem bem um com o outro para não acabarem ficando no cantinho da discipli...
— Tchauzinho, Sebastian — eu disse, apertando no botão de encerrar transmissão de vídeo.
O silêncio reinou por um minuto inteiro antes que Zaden falasse novamente:
— Bem. Está pronta para começar a estudar de verdade ou quer voltar da parte onde fomos interrompidos?
Eu muito convenientemente finjo não saber a que parte ele está se referindo e abro o livro de francês à minha frente.
— Perdão, o que era que você estava dizendo sobre leitura e processo de aprendizagem?
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