CAPÍTULO 6

— Nunca vi você estar tão animado com algo relacionado à escola — Zara comentou, balançando a cabeça, enquanto eu indicava os antigos livros de francês que ela deveria retirar da estante na biblioteca. — Você passou todo o seu último ano desejando nunca mais ter que abrir um caderno na vida e agora está montando seu próprio grupo de estudos? — ela riu, como se achasse a ideia ridícula. — Você é mesmo o meu irmão ou algum sósia que ele encontrou em Nova York e mandou até aqui para nos pregar uma peça?

— Suposição completamente equivocada, Zara — eu disse, pegando um volume especialmente pesado e adicionando-o à pilha que ela estava carregando. O que posso dizer? Irmãos mais novos são pra isso. — Como se algum dia eu fosse encontrar alguém bonito o suficiente para poder se passar por mim. Tsc, tsc. Quanta imaginação há na mente das crianças.

— Eu não sou criança — ela argumentou, endireitando a postura enquanto equilibrava os livros em seus braços. — Já tenho quinze anos.

— E aonde você quer chegar com isso?

— No fato de que não sou mais uma menininha — declarou, toda cheia de si. — Inclusive, eu acho até que vou começar a namorar primeiro que você, sabe?

Dei uma risadinha.

— O que você quer dizer com isso, Zara? Por acaso está de olho em algum garoto da sua turma do colégio? Porque se estiver... Me avise, ok? Alguém precisa contar ao pobre coitado que você mal toma banho — fiz uma pausa, na intenção de me retratar: — Quer dizer, muito provavelmente ele já deve ter sentido algum cheirinho característico vindo de você.

O rosto dela ficou roxo. 

— Eu tomo banho, espèce de menteur idiot! 

— Calminha aí, ma petite sorcière — falei, contendo o riso. — Estou só brincando. Por que eu diria uma coisa dessas ao seu pretendente? Ele acabará descobrindo sozinho mesmo.

— Quer saber de uma coisa, Zaden? Fique à vontade para achar um jeito de carregar todos esses seus livros estúpidos lá pra cima, porque eu estou dando o fora — disse ela, deixando a pilha de livros sobre a mesa de mogno no canto da biblioteca, o impacto causando um baque surdo contra a madeira.

— Ei, Zara, espere um pouco... — eu a chamei, enquanto ela me dava as costas. — Foi só uma piada, huh? Eu não posso carregar tudo isso sozinho. Meu braço está quebrado, esqueceu? Zara! — Totalmente inútil. Como estava parecendo que a minha tentativa de fazê-la se compadecer com a minha triste situação não daria certo, estava na hora de partir para o meu meio favorito de abordagem: a famosa e infalível chantagem. — Querida irmãzinha, eu acho melhor você voltar aqui agora e ajudar o seu irmão mais velho debilitado. Isso é, se não quiser que o papai fique sabendo sobre o seu namoradinho secreto.

Isso mesmo, pensei, com um sorriso satisfeito, enquanto observava a minha irmã dar meia volta em direção à mesa onde havia deixado os livros.

— Mas que garota solidária. Tenho certeza de que irá direto para o Céu — elogiei, quando ela pegou novamente cada um dos volumes de francês que eu havia separado para servir de base quando eu fosse dar aulas à Alison. — Agora é só subir com eles até o meu quarto. Vamos, não faça essa cara. São só alguns lances de escada. Força! Você consegue!


🎸


Do meu lugar na sombra, encarei com atenção o Audi prateado que estava sendo estacionado em uma das vagas da garagem externa da minha casa. Sorri comigo mesmo quando sua condutora deixou o veículo, caminhando em minha direção vestindo uma camisa regata branca e calças jeans de cintura alta, os girassóis customizados em seus tênis brancos piscando para mim a cada passo que ela dava. Alison sempre teve um gosto singular para calçados.

— Não tive a chance de dizer antes, mas você é uma ótima motorista.

Ela deu um sorrisinho convencido, gloss labial cintilando em sua boca carnuda. Desviei o olhar.

— Sou muito melhor do que você, não é? Lembro que foi reprovado umas três vezes antes de finalmente ganhar a sua licença.

Sorri ironicamente, sem me deixar abalar. Esse era o jogo com Alison: aquele que se afetasse primeiro perdia.

— Eu posso ter tido alguns probleminhas para conseguir a minha carteira de motorista, mas, ei — estalei os dedos, como se tivesse acabado de lembrar: — Não foi você a garota na bicicleta por quem eu passei na minha Kawasaki? Desculpe, foi tão rápido que nem pude parar para cumprimentar.

Ela me olhou com raiva por um momento, antes de se recompor e dar uma risadinha que pingava sarcasmo.

Quase.

— Não me surpreende que não tenha conseguido parar. Do jeito desgovernado que pilotava aquela coisa que você chama de moto, fico chocada até que soubesse como chegar em casa.

Abri um sorriso malicioso.

— Você fala isso, mas sempre foi doidinha pra subir na minha garupa — e voilà:

— Vai se fod...

— Alison? — uma voz ecoou ao longe, fazendo com que nós dois nos virássemos em sua direção. — É você mesmo?

— Em pessoa, sr. LB — ela sorriu abertamente para o meu pai, que caminhava até nós com seu clássico terno risca de giz sob medida.

Um fato bastante importante sobre o meu velho era o de que ele, – apesar de ser super sério e exigente no que dizia respeito aos estudos, – tinha uma maneira bem específica de demonstrar afeto: fazer pegadinhas no dia do nosso aniversário, dar sustos no Halloween e fazer com que eu e as minhas irmãs passássemos pelas situações mais constrangedoras possíveis sempre tendo uma câmera em mãos era o jeitinho dele de expressar o amor que sentia pela gente. (Amor esse que devia ser muito grande, porque o cara tinha uma coleção de DVDs com os vídeos mais hilários que se pudesse imaginar dos filhos passando vergonha.)

E, por mais que me doesse admitir, eu tinha herdado um pouco desse senso de humor: provocar as pessoas era a atividade mais divertida na vida. Fala sério, não tinha coisa melhor.

O problema era que, assim como eu, Alison também era uma grande apreciadora da arte da provocação, o que fez com que papai instantaneamente gostasse dela. Perdi as contas de quantas vezes no passado tive que explicar que ela não viria mais aqui. Ele sentiu a falta dela.

Apesar de não mais do que eu.

— Super Ali! Que milagre! Faz séculos desde que vi você pela última vez — papai exclamou, seu sotaque francês puxando o R de cada palavra. — Adorei as tranças que fez no cabelo. Ficaram muito bem em você.

— Muito obrigada, sr. LB — Alison sorriu novamente, passando a mão rapidamente pelas tranças em sua cabeça. Sem nem perceber, me vi sorrindo também. Alison tinha o tipo de sorriso de quem parecia estar à beira de uma risada, tão alegre que contagiava qualquer um que estivesse por perto. Fazia algum tempo que eu não a via sorrindo daquele jeito. Pelo menos não quando se dirigia a mim. — O senhor também está ótimo. Não mudou nadinha, hein?

— Eu sei, certo? Todos me dizem que estou envelhecendo como vinho. Pelo visto a beleza será um fardo que terei que carregar até o fim da vida.

Ela gargalhou.

— E que fardo pesado será esse, não é mesmo?

Papai fez uma careta de dor.

Oh, oui! Minhas costas já doem! — ele fingiu, antes de dar uma de suas piscadelas. — Mas brincadeiras à parte, a que devo a honra de sua visita? Você sumiu, garota. Estava aqui quase todos os dias e de repente não apareceu mais.

Alison engoliu em seco.

— Bem, eu...

— O que aconteceu foi que ela ficou metida, pai. Sem tempo algum para os amigos guitarristas, apenas para os bailarinos — alfinetei, balançando a cabeça em pura lástima. — Mas a vida é assim. Os de verdade eu sei quem são.

— Não foi bem assim que aconteceu — Alison disse, abrindo um sorriso nervoso no rosto. Eu queria só ver como ela ia se safar dessa. — Eu estive muito ocupada tentando conciliar os projetos do clube de dança que fundei no colégio com os assuntos da escola e as aulas que ministro no estúdio de dança infantil do centro da cidade. Com tudo isso, acabou não sobrando muito tempo para vir aqui. 

Reprimi uma careta, já sabendo o que viria em seguida: depois de toda essa narração do quão corrida e devotada era a vida da Santa Ali, eu pareceria um completo idiota mimado em comparação.

— Ah, eu sei onde fica. O centro comunitário para crianças, não é? É um trabalho maravilhoso o que você está fazendo — meu pai se virou na minha direção, reprimenda silenciosa brilhando em seus olhos. — Sabe, Alison, você deveria arrastar o Zaden com você. Ele precisa ter algo de útil para fazer durante o tempo em que está impossibilitado de tocar na banda. Acredito que ser voluntário num lugar como esse é exatamente o tipo de ocupação que ele precisa.

Ela hesitou, e eu sabia o porquê: aceitar a ideia do meu pai significaria ter que passar mais tempo comigo em seu encalço, o que definitivamente não fazia parte dos planos dela.

E ainda tinha a coragem de olhar na minha cara e dizer que não me evitava.

— Hã, acho que Zaden não vai ter muito o que fazer por lá estando com o braço quebrado...

— Claro que vou — eu a cortei, prontamente. — Talvez não para dançar, mas posso me voluntariar para fazer qualquer outra coisa que estejam precisando.

— É assim que gosto de ver! — Papai deu um tapinha em minhas costas, orgulhoso. — Muito bem, filho. Não deixe que esse pequeno acidente te mantenha parado. Bem, sendo assim, vou me despedir de vocês dois — ele ergueu o punho, conferindo o relógio. — Tenho alguns assuntos para tratar na empresa. Divirtam-se.

— Tchau, pai.

— Tchau, sr. LB. Foi bom rever o senhor — Alison acenou, com um sorriso sincero no rosto.

— A recíproca é verdadeira, Super Ali. Apareça mais, hein? — ele acenou de volta, antes de cumprimentar Steve, o chofer, que segurava a porta do carro aberta para que ele entrasse.

Nós dois ficamos parados observando meu pai ir embora por um minuto, até eu sentir um chute na minha perna.

— Porra, Alison! — resmunguei, pressionando os lábios com a dor. — O meu braço estar do jeito que está já não é o suficiente para você? Quer me deixar manco também?

— O que você pretende indo ao centro comunitário? — ela perguntou, cruzando os braços. — Lá é um local sério, sabia? Não é uma piada.

— Eu sei disso. Estava falando sério quando disse que queria ajudar — suspirei, frustrado. — Olha pra mim, Alison. Você acha mesmo que eu gosto de estar preso em casa o dia inteiro? Que sinto prazer em ficar dependendo de outras pessoas pra fazer quase tudo? Você acha mesmo?

Ela baixou o olhar para a tipoia em meu ombro, mordendo o lábio inferior cheia de culpa.

— Não. Eu não acho. Sinto muito.

— Eu não quero que você sinta pena. Foi uma decisão estúpida. A culpa foi toda minha — eu ri, completamente arrasado. — Me sinto um fracasso por não poder estar com os rapazes me preparando para entrar em turnê. Nós estávamos esperando por isso desde o início, você sabe. Sempre foi o nosso sonho. Eu faria qualquer coisa para estar lá com eles. Eu só... não queria ter estragado tudo.

— Para com isso, Zaden — quase me sobressaltei ao sentir o peso da mão de Alison sobre meu ombro. Ela não me tocava. Nunca. Sempre tomava bastante cuidado para não encostar a pele na minha. Fico em estado de choque por um momento. — Você não estragou tudo, está bem? Você só caiu e se machucou. Foi por um motivo besta? Sim, mas poderia ter acontecido com qualquer um. Poderia ter acontecido comigo durante um salto ou uma pirueta, ou com qualquer pessoa que tropeçasse e caísse na rua. Então... só para com isso, ok? Você não é um fracassado.

Ter Alison me apoiando assim é tão estranho e familiar ao mesmo tempo que não consigo ter outra reação além de simplesmente ficar ali, parado em silêncio, encarando aqueles seus olhos de um castanho tão denso quanto o café enquanto me pergunto pelo que acredito ser a milésima vez o que fez com que ela me abandonasse.

— O que foi? Você quer um abraço?

Ergui as sobrancelhas com a proposta.

— Por quê? Se eu disser que sim você vai me dar um?

A sombra de um sorriso perpassou pelo seu rosto moreno.

— Não.

— Eu sabia que você ia dizer isso.

— De alguma coisa você tinha que saber, não é? — ela me olhou de lado, enquanto andávamos até a varanda da minha casa. — Mas voltando ao tópico do centro comunitário... sei que você quer ir, mas o que pretende fazer quando chegar lá? Você não pode dançar com o braço e o ombro imobilizados. Não pode ensinar nenhuma criança a tocar guitarra. Então o que você vai fazer?

— Eu posso dar aulas de canto.

— Talvez.

— Posso ensiná-las a andar de skate. Sou um professor excelente. Você lembra que fui eu quem te ensinei a...

— Sim. Eu lembro — ela suspirou, massageando as têmporas. — Andar de skate, Zaden? Sério? Você quer cair outra vez?

— Talvez você tenha um ponto, apesar de eu achar mais provável eu tropeçar no vento do que enquanto ando de skate.

— Você é tão cheio de si que eu chego a sentir dó.

Estalei os dedos, lembrando de mais uma coisa:

— Histórias! Eu sou um ótimo contador de histórias! — exclamei, animado. — Lá com certeza tem um clube de leitura, não é?

— Sim, tem um clube de leitura — ela suspirou, parecendo finalmente se dar por vencida. — E estão mesmo precisando de voluntários.

— Viu só? Eu disse que encontraria alguma coisa.

— Ebaaaa — Alison levantou os braços, balançando-os com falso entusiasmo. — Agora vamos ter que passar quase a semana inteira juntos. Vai ser tão divertido.

Parei de andar, fazendo com que ela olhasse para mim.

— O que foi agora?

— Por que você se esforça tanto para continuar mantendo esse abismo entre a gente? — perguntei, mantendo a voz baixa. — Você... não sente falta?

Alison soltou o ar.

— Sinto falta do quê, Zaden? — ela devolveu, friamente.

Pressionei os lábios, tentando conter a onda repentina de ressentimento. Estava cansado de toda aquela atuação.

— Da relação que nós tínhamos — respondi, indo até ela. — Não sente falta das conversas, das risadas, da dança... — ela se encolheu, recuando um passo quando eu cheguei perto de mais. Parei de andar. — Que merda, você não sente a minha falta? A nossa amizade não significou nada pra você, Alison? Nada?

Ela desviou o olhar.

— Você não tem o direito de me questionar sobre uma coisa dessas. 

Inspirei fundo, tentando engolir a frustração.

— Responde a minha pergunta, Alison.

— Por que de repente você se importa? — perguntou, erguendo o queixo, toda a fragilidade de antes tendo desaparecido completamente. Tão teimosa. — Quase três anos se passaram, Zaden. E você nunca se importou. E agora o quê? Sente a minha falta porque não tem mais ninguém? É isso?

— Mas que... — sacudi a cabeça, atordoado. — Pelo amor de Deus, do que diabos você está falando? Eu sempre me importei. Acha mesmo que se eu não me importasse eu teria continuado insistindo? Que teria te mandado uma mensagem de "feliz aniversário" todos os anos enquanto você sempre inventava uma desculpa pra faltar no meu? Que teria me dado ao trabalho de compor um solo de guitarra só pra te pedir desculpas por uma merda qualquer que eu falei sem pensar e te magoou? Você acha que eu teria feito tudo isso se não me importasse?

— Zaden — ela pediu, e sua voz trêmula fez com que eu me acalmasse imediatamente. Para os que viam de fora, só existia uma Alison Walters: aquela que era sincera, destemida, talentosa e confiante. Mas aqueles que a conheciam mais a fundo sabiam que por trás de toda aquela fachada havia uma outra versão – uma que evitava a todo custo falar sobre seus sentimentos porque sempre acabava em uma posição vulnerável demais. E a coisa da qual ela menos gostava era de perder o controle das suas emoções.

— Eu nunca deixei de considerar você a minha melhor amiga, Alis. Nunca — falei, suavemente. — Só que às vezes parece que eu sou o único que ainda pensa na gente. Você não me procura, não me liga e mal fala comigo quando não estamos os dois irritando um ao outro. Você me viu indo pra Nova York e não me deu nem um aceno. Essas coisas... — engoli em seco. — Essas coisas doem, sabia? Mas mesmo sendo um cara orgulhoso, eu sempre fui aquele que ia atrás. Então você dizer que eu não me importo é um tanto ofensivo pra mim.

Esperei em silêncio que Alison dissesse alguma coisa, e quando eu já estava prestes a começar a falar outra vez, sua resposta finalmente veio:

— Eu sabia que não devia ter vindo — disse ela, partindo meu coração em mil pedaços antes de colocá-los novamente no lugar ao me envolver em um enorme abraço apertado. Soltei o ar que nem sabia que estava prendendo, sentindo meus músculos relaxarem uma tonelada com aquele toque.

Fechei os olhos, inspirando o cheiro dela – de protetor solar e morangos – sentindo a garganta arder por um segundo, enquanto envolvia sua cintura com força, os pelos da minha nuca se arrepiando com sua respiração em meu pescoço.

— Eu sabia que você não tinha me oferecido aquele abraço por acaso.

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