CAPÍTULO 50
Sentada ao meu lado no banco do passageiro, Alison está em silêncio, com a cabeça encostada no vidro da janela fechada do carro enquanto assiste apaticamente as casas, lojas e restaurantes do lado de fora da rua passando diante de seus olhos. Quando entreguei a Charles as chaves do carro dela e seus cartões de crédito, ele pareceu completamente confuso. Não que eu o culpasse. Eu provavelmente também exibia a mesma expressão de incompreensão no rosto. O que devia ter sido uma simples conversa tinha assumido uma proporção gigantesca em um período de tempo muito curto para que pudéssemos assimilar.
— Eu não sei direito o que aconteceu. A sua mãe chamou Alison para conversar em particular e minutos depois ela saiu de lá transtornada, desesperada para ir embora. Quando perguntei o que houve, Alison disse que a mãe de vocês tinha expulsado ela de casa e pedido para que ela devolvesse a chave do carro e todos os cartões de crédito que ela tinha — falei, passando a mão pelo rosto, com um suspiro pesado. — Eu vou te dizer, Charles. Não faço a menor ideia do que as duas conversaram, mas porra nenhuma justifica uma coisa dessas. Eu estou me segurando muito para não entrar na merda do escritório da sua mãe e perguntar se ela enlouqueceu.
— Essa parte você deixa comigo — ele disse, com o semblante mudando de confusão para uma seriedade sombria. Eu conhecia aquele olhar. Era o instinto que todo irmão mais velho sentia em partir em defesa do mais novo quando ele precisava de ajuda. — A minha mãe é... Ela tem problemas. Não estou falando quanto a personalidade, porque está óbvio que ela é uma pessoa muito difícil de se lidar. Ela foi diagnosticada com transtorno bipolar há uns três anos atrás. Meu pai me contou em segredo, porque a mamãe não queria que minha irmã e eu soubéssemos. Ela já sofria dessa condição quando éramos crianças, mas não sabia. Assim que ela descobriu, começou a se tratar. Estava melhor com a medicação, apesar de ainda ter alguns episódios depressivos ocasionais. Alison nunca percebeu porque nossos pais se mantinham longe de casa, principalmente durante esses períodos, sempre sob a desculpa de estarem viajando a trabalho.
— Puta merda, Charles — eu xinguei, pego completamente desprevenido com aquela confissão. — Eu não sei nem o que te dizer. Guardar um segredo desses por tanto tempo deve ter sido horrível, ainda mais da sua irmã. É tão errado que o seu pai tenha te pedido para suportar uma situação dessas. Não deveria ser sua obrigação lidar com tudo sozinho e fingir que não sabia de nada. Meu Deus, isso tudo é uma merda.
— Eu estou acostumado a assumir esse tipo de responsabilidade. Minha mãe me treinou muito bem para suportar com cara de paisagem qualquer desconforto ou situação desagradável, por pior que fosse — ele tentou sorrir, como se estivesse falando do clima e não da criação traumática que teve com a bipolaridade da mãe. — Já tenho notado as manias dela se apresentando de modo mais incisivo nos últimos dias, mas esse surto com a Alison só confirma as minhas suspeitas de que ou ela parou com o tratamento, ou os remédios não estão mais fazendo o efeito devido. Mas isso não vai ficar assim, isso eu te garanto. Uma situação como essa é insustentável. No mais, eu só peço que cuide da minha irmã enquanto eu não resolvo as coisas. Ela sempre se esforçou muito para obter a aprovação da mamãe. Essa expulsão repentina deve estar sendo difícil de suportar.
— Eu não vou sair do lado dela — prometi.
E aqui estava eu, dirigindo com um olho no trânsito e outro em Alison, que parecia perdida em algum lugar dentro de si mesma. Quando a encontrei sentada sozinha dentro do carro, com o olhar disperso e o corpo tão imóvel que parecia nem respirar, chamei por seu nome, e quando ela não respondeu, quase entrei em pânico. Mas foi só eu tocá-la para que ela se desfizesse em meus braços, perdendo o controle como uma criança desconsolada ao encontrar abrigo. Eu nunca a tinha visto assim, tão vulnerável, tão fragilizada. Cada soluço dolorido que escapava da garganta dela era um soco em meu estômago, que se contorcia em agonia por não poder fazer nada para aplacar sua tristeza além de abraçá-la. A puxei para o meu colo, segurando-a com firmeza e acariciando suas costas, que tremiam violentamente por causa do choro.
— Je suis là, mon amour. Você não está sozinha. Eu vou cuidar de você. Sempre nós dois, lembra? A primeira e a última letra do alfabeto. Eu sempre vou estar logo atrás de você — murmurei contra seu ouvido, diversas vezes para que não esquecesse.
Não sei por quanto tempo Alison chorou, mas uma hora ela simplesmente parou. Ela não foi se acalmando aos poucos; em um momento ela só respirou fundo e parou de chorar, estabilizando a própria respiração. Seus olhos castanhos estavam tão inchados que quase não se abriam. Beijei cada uma de suas pálpebras, desejando que isso fosse o suficiente para absorver toda a tristeza das lágrimas que ela havia derramado. Naquele segundo, Alison encostou a testa na minha sem dizer nada, apenas descansando. Fechei os olhos, apreciando o cheiro da sua pele e o som constante da sua respiração.
Só por um minuto.
E então ela deslizou do meu colo e se recolheu no banco do passageiro, passando o cinto de segurança sobre o peito e apoiando a cabeça no vidro da janela com um suspiro tão baixo que quase pensei ter sido reproduzido pela minha imaginação.
— Você pode me levar até a minha casa para eu pegar umas coisas antes de sair de lá? Não quero correr o risco de ir depois e esbarrar com a minha mãe — balbuciou.
Isso foi tudo o que Alison disse durante o percurso até a casa dela, onde entrou e foi diretamente para o seu quarto para pegar roupas e tudo o mais de que precisava. Seguindo-a pelas escadas até o andar de cima, me ofereci para ajudá-la, mas ela simplesmente me deu um sorriso fraco de agradecimento e balançou a cabeça negativamente, recusando.
— Eu insisto — falei, sem aceitar ficar apenas observando-a andar de um lado para o outro em busca de seus pertences. — Me diga onde estão suas malas que eu pego para você.
Finalmente se rendendo, Alison gesticulou para a porta de seu closet e eu segui seu direcionamento, entrando e encontrando logo de cara duas malas de um roxo metalizado no topo de uma prateleira. Retirando-as de lá sem esforço, posicionei as duas em cima da cama e as abri, para que Alison não tivesse nenhum trabalho adicional ao colocar suas coisas lá dentro.
Ela não demora muito, no entanto. Coloca na mala muitas blusas e casacos, algumas calças, umas poucas saias e uns três vestidos. O restante de suas roupas é inteiramente composto por peças de balé e roupas de ginástica: uma infinidade de collants de todos os modelos e cores, meias, saias, leggings, conjuntos de moletom, tops e outras peças que não sei nomear corretamente. Uma necessaire de tamanho considerável cheia de produtos de beleza e higiene pessoal é adicionada em seguida e tento não prestar muita atenção quando ela coloca suas peças de roupas íntimas meticulosamente em um saquinho especial para viagem antes de fechar a mala de uma vez. Na outra mala, ela põe os sapatos e, de novo, a maioria deles é composta por suas sapatilhas de balé. Ao guardar seu notebook, fones de ouvido e carregador em uma maleta, ela está pronta.
Finalmente posso me sentir útil outra vez e desço carregando sua bagagem para guardá-la no porta-malas do carro. Foi uma boa ideia ter vindo dirigindo hoje.
— Tem certeza de que não está esquecendo de nada? — pergunto, quando Alison abre a porta do passageiro para entrar no carro.
Ela encara a fachada da sua casa uma vez e então assente, sumindo da minha visão ao deslizar para dentro do veículo e fechar a porta.
Suspiro, consternado com a ausência de palavras dela. Tenho total consciência de que sou o tagarela de nós dois, mas Alison não é exatamente silenciosa. Ela sempre tem algo a dizer. Uma resposta na ponta da língua é a marca registrada dela. Quero ouvi-la, saber o que tem pensado. Quero consolá-la. Mas não posso fazer isso se ela não falar comigo.
— Muito bem — eu digo, quando estamos de volta à estrada. — Você vai dormir comigo, não é? — pergunto, virando o rosto por um instante para olhar para ela.
Alison franze a testa, me encarando em completa confusão.
— Do que você está falando?
— De você saindo de casa, das suas malas na traseira do meu carro. Você vai ficar comigo, certo?
— Meu Deus, não. Pelo amor de Deus, não — ela nega, quase suplicante, cobrindo os rosto com as mãos.
— Por que não? Com quem você planeja ficar, então? — questiono, com a mesma testa franzida com a qual ela me olhou segundos atrás.
— Eu mandei uma mensagem para Amélia perguntando se podia ficar com ela por um tempo. Ela ainda não respondeu, por isso eu não disse nada, mas sei que posso contar com ela.
— Você pode contar comigo — esclareço, para o caso de ela ainda não ter percebido. — Sou seu namorado. Você deve ficar comigo. Além do mais, minha casa tem, no mínimo, o triplo da quantidade de quartos da casa de Amélia. Não é como se você fosse obrigada a dormir no mesmo quarto que eu. E Amélia nem sequer tem um carro. Como você iria para o colégio?
— Eu posso pegar o ônibus.
— O Instituto fica longe demais para que você vá de ônibus e consiga chegar a tempo para a aula sem ter que acordar ainda na escuridão para estar lá — argumentei, na intenção de fazê-la enxergar que o lugar dela era comigo. — Eu tenho um carro e duas motos. Estou de férias do trabalho. Posso te levar e te buscar na hora que você quiser. É muito simples. É prático.
Alison deu uma risada desprovida de humor, tirando as mãos do rosto e deixando-as cair sobre o colo.
— Zaden, iria sinceramente me matar de vergonha chegar na sua casa sem avisar com duas malas de roupas enormes como se eu estivesse de mudança. O que as suas irmãs iriam dizer? Pior: o que a sua mãe ia pensar de mim? E o clima chato depois da descoberta da traição do seu pai? — Pude senti-la buscando os meus olhos, mas eu teimosamente me recusei a desviá-los da estrada. — Não vou nem discutir. Você sabe que eu estou certa. Até se eu chegasse de surpresa na casa do Bryan seria menos pior do que chegar de surpresa na sua casa.
Arregalo os olhos, apertando os dedos ao redor do volante. A mera possibilidade de Alison dormindo no mesmo lugar que outro homem que não fosse eu já era o suficiente para me deixar estupidamente aborrecido.
— Alison, por favor. Não me tira do sério. Você não vai dormir na casa do Bryan merda nenhuma. Isso não tem cabimento, cacete. Você disse que não queria que eu sentisse ciúme dele e eu me esforcei pra caralho para não sentir, então não me fala que acha que seria melhor dormir na casa dele do que na minha. Só porque eu controlo o meu ciúme, não significa que eu não sinta, porra — respirei fundo, sentindo uma veia latejar na testa. — Meu Deus. Fiquei até com dor de cabeça.
Alison parece não entender o motivo da minha chateação.
— Zaden... Você sabe que o Bryan é gay, não sabe? — ela pergunta, incerta.
— E o que uma coisa tem a ver com a... — paro de falar, só então me dando conta do que ela acabou de dizer. — Espera. O BRYAN É GAY?! — exclamo, sem acreditar.
Ela protege os ouvidos com as mãos por causa do súbito aumento no volume da minha voz, uma risada baixa escapando por entre seus lábios. Tento não deixar transparecer, mas com aquele simples som, sinto toda a minha irritação derreter como a cera de uma vela. Não tinha sensação melhor do que vê-la sorrir e saber que eu era a causa – ainda que na situação atual, a causa tenha sido o papel de bobo que eu fiz.
— É, Zaden. O Bryan é gay. Eu achei que você sabia — ela disse, sacudindo a cabeça enquanto ria mais um pouco. Seus olhos estavam tão inchados por causa do choro que quase não se abriam. — Por isso pedi para que você parasse de sentir ciúmes dele. Porque para mim parecia uma coisa completamente ilógica.
— E como eu ia saber se você não me dissesse? — indaguei, ainda perplexo com o papelão que eu havia feito durante todo aquele tempo. — Acho que esse mico que eu passei agora foi maior do que ter caído do palco na frente de toda aquela gente e ter saído de lá carregado. Era só você ter me dito. Não custava nada — murmurei, incrédulo. — Você realmente sente algum prazer estranho em me torturar.
— Sinto mesmo — ela admite, fungando. — Mas eu juro que não foi intencional dessa vez. Eu só não te disse porque achei que estava óbvio. E você já viu ele e o Peter juntos. Está na cara que o Bryan gosta dele.
Ao ouvir aquela observação, sinto como se uma luzinha tivesse sido acesa nos confins da minha mente.
— Caramba, você tem razão. Eu bem que achava que eles se olhavam com afeto demais para ser só amizade. Nossa, como eu fui burro — falei, sentindo meu rosto ardendo tamanho era o meu embaraço. — Sério, eu acho que se tem um de nós que pode morrer de vergonha hoje, esse alguém sou eu. Juro pra você que nunca senti tanta vergonha na minha vida — murmuro, olhando para a frente, para a janela, para o retrovisor, para literalmente qualquer coisa que não seja Alison.
Estou tão compenetrado em evitar fazer contato visual com ela que quase me assusto quando sinto sua mão alcançar a minha no console do carro.
— Sabe, você não precisa sentir vergonha. Mal entendidos acontecem. Mas da mesma forma que te pedi para não sentir ciúme do Bryan, você pode me dizer quando eu fizer algo com outra pessoa que te deixe desconfortável. Apesar de sentir um pequeno prazer em te torturar, nunca quero te chatear ou magoar de propósito. Então vamos sempre conversar e entrar em um consenso juntos, ok? — ela disse, acariciando o contorno das veias do dorso da minha mão com o polegar. — E você pode sentir ciúme. No entanto, quero deixar claro que não precisa. Você é meu número um. Dentre todas as pessoas, de todos os lugares do planeta. Eu sempre vou escolher você.
Meu coração entra em combustão por dentro, contente e disparado de felicidade. Eu confio em Alison de olhos fechados e mãos atadas. A causa do meu ciúme não é e nunca vai ser desconfiança. Mas a separação pela qual passamos no passado foi muito repentina; em um momento eu a tinha e no outro não mais. Me sinto inseguro às vezes. Como se até mesmo uma corrente de ar forte demais pudesse tirá-la de mim. Mas não quero continuar assim, deixando a sombra de algo que já ficou para trás se interpor no nosso relacionamento. Eu vou superar isso, prometo a ela e a mim mesmo, selando meu comprometimento depositando um beijo em nossas mãos entrelaçadas.
— Eu não cheguei a comentar, mas meu pai está ficando em um hotel por enquanto. Minha mãe precisa de um tempo para decidir o que fazer quanto ao casamento deles e ele resolveu sair de casa para dar mais espaço a ela. Zelina o perdoou, é claro. Ela pode ter quase trinta anos, mas é e sempre vai ser a primeira filha, a garotinha do papai. Zaya está magoada com toda a situação e se mantém ao lado da nossa mãe vinte e quatro horas por dia, mas eu a conheço; não vai demorar muito até que ela volte a falar com o nosso pai. Zoe sente falta dele em casa, mas de resto, até que está lidando bem — suspirei, pensando nas minhas irmãs. — Minha preocupação maior é a Zara.
— Como ela está? — Alison perguntou, seu polegar deslizando suavemente para cima e para baixo na minha mão.
— Bem mal. Passa a maior parte do tempo trancada no quarto. Mal come. Mal fala comigo ou com as meninas. Ela sempre foi meio punk, mas agora está uma emo completa. Maquiagem escura ao redor dos olhos, roupas pretas. Nunca escuta o que ninguém está dizendo porque está sempre com fones de ouvido. Eu tenho medo que isso piore e evolua para algo maior, como um quadro de depressão. Estou dando um tempinho para ela antes de tomar a decisão de levá-la para terapia — falei, olhando para Alison por cima do ombro. — É por isso que eu digo que ninguém vai se importar ou dizer nada sobre você ficar conosco por um tempo. Toda família tem seus problemas. Quem somos nós para dizer alguma coisa? Além disso, a Zara iria adorar te ter por lá. Talvez ela se abra com você.
Alison encostou a cabeça no apoio do banco, inclinando-a para o lado enquanto parecia pensar a respeito.
— Eu também adoraria ter você comigo — acrescentei, em um sussurro, tentando não pressioná-la. — Mas se você decidir que ficar com a Ames é mesmo a melhor opção, eu te deixo lá agora mesmo.
Ela me olha em silêncio, analisando meu rosto com uma expressão que não consigo ler. Seus pensamentos parecem correr a mil por hora dentro de sua mente, até que de repente, como se alguém tivesse apertado o botão de "pause", os traços da sua face relaxam, se tranquilizando.
— Eu vou — ela assente. — Ficar com você, eu quero dizer. Se você ligar agora para a sua mãe para avisar que eu estou indo e ela disser que não vou ser um incômodo, então eu vou e aproveito para tentar ajudar a Zara como eu puder.
— Fechado — eu disse, deslizando o dedo sobre o painel do carro para clicar no número da minha mãe na lista de contatos. Tamborilei pacientemente os dedos no volante enquanto esperava que ela atendesse.
— Não deixe ela saber que eu estou aqui. Fale como se eu não estivesse ouvindo. E não use o termo "expulsa de casa" — Alison acrescenta.
— Ok — digo, achando graça do tom desesperado dela. No terceiro toque, minha mãe finalmente atende:
— Filho? Está tudo bem?
— Oi, mãe. Tudo bem, sim. E por aí, está tudo bem?
— Claro. As meninas e eu estamos assando cookies para comermos depois do jantar. Pierre não diz nada, mas sei que ele está louquinho por estarmos invadindo a cozinha dele — ela dá uma risadinha, e sinto os músculos das minhas costas relaxarem ao sentir a sinceridade no som. Ela está bem, digo a mim mesmo, aliviado. — Por que você ligou?
— Aconteceu um problema na casa da Alison. A mãe discutiu com ela, os nervos se alteraram e ficou uma situação bem chata. Alis disse que ia dormir na casa de uma amiga, mas acabou que ela não vai poder ficar lá — olho de esguelha para Alison, que parece estar lidando com uma levíssima vontade de me esganar. — Eu a chamei para ficar com a gente. Tudo bem ela ficar lá em casa, né?
— Mas é claro que sim! Não sei nem porque você ainda pergunta. Se tem algo que nós temos, é espaço. Ainda mais para a Alison. Eu fiquei tão feliz quando você me disse que estavam namorando! Já estava mais do que na hora de trazê-la aqui. Uma pena que sejam em circunstâncias não muito agradáveis, mas ainda assim é evidente que ela é mais do que bem vinda para ficar conosco pelo tempo que quiser.
— Obrigado, mãe. Eu disse que não seria problema nenhum, mas a senhora conhece a peça, né? A garota é teimosa... — falei, me divertindo até aos ossos vendo Alison arregalar os olhos de exasperação e não poder dizer uma palavra sequer para me impedir de continuar. — Parece que só piorou com o passar dos anos.
Minha mãe gargalhou.
— Ora, seu menino terrível. Eu sei que você adora — ela disse, astuta como sempre. — Diga a Alison que mandei um beijo e que a estamos esperando. Até mais tarde, meu filho — se despediu.
— Até, mãe. Te amo — digo, antes de encerrar a chamada. — Está mais tranquila agora, ma belle? — me viro para Alison, que balança a cabeça de um lado para o outro em um gesto de pura reprovação.
— Primeiro: você é um idiota. Segundo: sim, estou mais tranquila. Já que a sua mãe pareceu não ver problema, acho que tudo bem eu ir, então. Mas saiba que ainda estarei morrendo de vergonha. Toda essa situação é bem humilhante — disse ela, encolhendo os ombros. — Não sei se já disse antes, mas obrigada por me oferecer um lugar para ficar. E por me ajudar com as malas. E por me aguentar chorando na sua camisa e ficar te fazendo dirigir de um lado para o outro. Me desculpa por todo esse transtorno.
— Alis... — repreendi, querendo que ela parasse com aquele papo de pedir desculpas como se estivesse me obrigando a fazer algo contra a minha vontade.
— Não. É sério, Zaden. Me desculpa mesmo — ela insistiu, apertando minha mão. — E mais uma vez, obrigada.
— Alison. Você não tem que se desculpar. Eu faço isso porque... — travei no meio da frase, quase deixando escapar um "porque eu te amo" de forma completamente despreparada. Tossi, clareando a garganta, enquanto girava o volante para pegar a curva com retorno para a minha casa. — Ora, porque eu quero. Você é minha namorada. Você é minha melhor amiga. Você é da família. Então pare de se desculpar, está bem?
— Está bem — sussurra, cedendo.
E então cai em silêncio outra vez.
🩰
Alison Walters
Louise – a mãe de Zaden, – tinha me recebido com um abraço tão forte que fez com que eu me sentisse mal por não ter vindo visitá-la antes. Se o senhor LB era o homem que estava sempre descontraindo e fazendo todo mundo rir, a senhora LB era a mulher que fazia com que todos se sentissem queridos. Não me lembro de uma vez sequer em que vim à Mansão LeBlanc e ela não se sentou comigo para conversar sobre minhas aulas de balé, sobre a escola ou até mesmo para reclamar de Zaden ou contar fofocas sobre o que as filhas mais novas estavam aprontando. Ela fazia com que eu me sentisse à vontade, ouvida. Importante.
Sentimentos que raramente vinham à tona na presença da minha própria mãe. Ela estava sempre ocupada demais falando ao telefone, trancada no escritório criando croquis de novas peças para a grife ou se preparando para sair em mais uma das suas intermináveis viagens a trabalho. Nunca conseguia comparecer às minhas apresentações e quando me encontrava dias depois, nunca me perguntava como eu tinha me saído ou sequer pedia para assistir as gravações do espetáculo de balé. Encontrei um modo de ter algo em comum com a minha mãe através da minha paixão por sapatos, já que, como eram itens que faziam parte do trabalho dela, também a interessavam. Durante aqueles momentos fugazes, analisando os detalhes dos calçados e discutindo sobre quais eram os nossos favoritos, eu quase me sentia próxima dela.
Minha relação com a minha mãe sempre foi delicada. Nos seriados de TV, onde mãe e filha eram inseparáveis e contavam tudo uma para a outra, eu enxergava algo especial que eu poderia ter. No fim das minhas aulas de balé, quando as mães das minhas colegas vinham buscá-las, eu assistia de longe a troca de abraços e sorrisos orgulhosos, ansiando por um dia em que minha mãe também pudesse vir me buscar no final da aula. Eu tinha seis anos na época. Aos nove, desisti de esperar que fosse acontecer.
Tudo bem. Eu não era uma bebê chorona que precisava que minha mãe viesse me ver ou me elogiar por ser a primeira da turma a abrir escala ou conseguir fazer uma pirueta perfeita. Eu era admirada. Era invejada. Era a favorita da minha professora. Era quase perfeita. E no fundo, eu sabia que tudo o que a minha mãe realmente queria era que eu fizesse da perfeição a minha melhor amiga.
Afinal, essa era a única razão pela qual ela penteava e prendia o meu cabelo com tanta força que me provocavam fortes dores de cabeça durante o dia todo e me impedia de soltar. Para que nenhum fio saísse do lugar, é claro. Essa era a razão pela qual, aos dez anos, ela me deixou trancada em casa no dia de Natal quando viu que eu havia comido um pedaço da torta de amora antes do tempo e manchado o vestido novo que ela tinha costurado para mim. Minha mãe, meu pai e Charles haviam passado a noite na casa dos meus avós no Natal daquele ano. E eu tinha ficado em casa. Sozinha. Por causa de um vestido manchado.
Mas tudo ficaria bem se a perfeição e eu andássemos juntas. Se eu fosse a garota com o cabelo impecável, com as roupas mais bonitas e com o melhor desempenho no balé e na escola. Se virasse a noite estudando, se pulasse as refeições, se continuasse com os ombros eretos mesmo quando sentisse dor e aceitasse qualquer tarefa que me dessem e as concluísse com louvor. Se eu nunca derramasse uma lágrima em público ou se nunca demonstrasse estar nada menos do que perfeitamente bem. Quem sabe, talvez assim, eu pudesse ser uma daquelas meninas que recebiam um sorriso orgulhoso da mãe no final de tudo.
Não.
No final de tudo, ousei questionar a perfeição e fui descartada. Deletada. Expulsa. Sem cerimônia, sem adulações, sem mais nem menos.
Ela nem hesitou, pensei, enquanto me obrigava a sorrir e a assentir diante das perguntas da mãe de Zaden enquanto o jantar estava sendo servido. Nem se preocupou com para onde eu iria ou o que faria. Nem sequer piscou antes de me mandar embora ou fez menção de me pedir para voltar atrás.
Alguns minutos antes de nos sentarmos à mesa, Zaden havia deixado minhas malas em um quarto de hóspedes que ficava de frente para o dele. Não perdi tempo conhecendo o cômodo e fui direto cumprimentar Zaya – a segunda irmã mais velha de Zaden, que estava exatamente igual a última vez em que eu a havia visto, com cabelos loiros em um corte pixie e roupas vibrantes – e Zoe, que sempre parecia ter acabado de colocar o dedo na tomada de tão enérgica. Zara – como se para atestar tudo o que Zaden tinha me contado no carro, – tinha se recolhido muito antes de saber que eu estava vindo e parecia estar dormindo há algum tempo. Durante a refeição, a senhora LB estimulava Zaya a contar para mim todos os detalhes sobre a última viagem que ela tinha feito à Paris, ao passo em que ela parecia estar de saco cheio do assunto:
— Ninguém aguenta mais me ouvir falar sobre Paris — Zaya choramingou. — A senhora me faz contar essa mesma história em todos os jantares.
— Besteira. Todo mundo ama ouvir sobre Paris — sua mãe desconsiderou, com um gesto para que ela seguisse em frente e contasse sobre a viagem.
Apesar de não estar com apetite algum, me obriguei a engolir toda a comida do meu prato enquanto a ouvia. Ao menos eu só precisava me concentrar em continuar mastigando, ao invés de contribuir ativamente para a conversa, o que seria bem mais trabalhoso em meu estado de espírito atual.
Após o jantar, a senhora LB, Zaya e eu fomos nos sentar na sala de estar para beber uma xícara de chá de camomila quente e doce.
— Me ajuda a relaxar antes de dormir — a mãe de Zaden explicou, antes de levar sua xícara aos lábios.
— Aceita um cookie? — perguntou Zoe, a irmã mais nova, surgindo de repente com uma bandeja de biscoitos com gotas de chocolate. — Eu mesma que fiz esses.
— Jura? Então claro que aceito — sorri, capturando um cookie da bandeja que ela segurava orgulhosamente. Eu não costumava comer carboidrato àquela hora da noite, mas Zoe estava tão empolgada que valia a pena para fazê-la feliz. — Hmmm. Está muito bom. Continue treinando e vai melhorar ainda mais — falei, tentando a todo custo não fazer careta ao mastigar aquele biscoito que mais parecia rocha com pedacinhos de pedregulhos de tão duro.
— Pare de iludi-la. Estão péssimos — Zaya disse, sem nem se dar ao trabalho de fingir. — Essa coisa aqui entra pelo menos no top cinco piores doces que já comi na vida.
— Rá! Você só está com inveja porque a ideia dos cookies foi minha e não sua! — Zoe zombou, antes de mostrar a língua para a irmã e sair em disparada para oferecer um dos seus biscoitos de pedra para a mãe.
— Com uma autoestima dessas, só pode ter puxado ao Zaden — comentei, aproveitando que ele tinha subido para tomar banho e não estava por perto para me ver puxando assunto com a sua irmã através de alfinetadas a ele.
Zaya bufou.
— A influência dele a estragou. Isso mais o fato de ele mimá-la até os ossos.
Eu sorri, bebericando o meu chá.
— Ele a ama demais, só isso. Na verdade, ele ama muito todas vocês — falei, com carinho. — Volta e meia ele sempre arranja um jeito de trazer o nome de uma de vocês para a conversa, seja por preocupação, saudade, orgulho ou até irritação. É muito fofo de assistir. Tanto o Zaden irmão mais novo quanto como mais velho.
— Ah, meu Deus — Zaya me olhou por alguns segundos, antes de dar uma sonora gargalhada. — Você está tão apaixonada pelo meu irmão. Isso sim que é fofo de assistir. Não tive a chance de dizer antes, mas acho muito bom que vocês dois estejam juntos. Ele sempre foi louco por você, sem exageros. Continua sendo — ela disse, com um sorriso de canto de boca. — Faça ele feliz, ok? Zaden pode ser um pé no saco irritante e convencido, mas também é um cara nota mil. Eu não poderia pedir por um irmão melhor que ele.
— Eu também não poderia pedir por um namorado melhor. Para ser sincera, sempre acho que sou eu que tenho que melhorar — eu ri, deixando a xícara de chá em cima da mesa de centro diante de mim. — Mas não se preocupe. No que depender de mim, Zaden LeBlanc só terá motivos para exibir as covinhas do sorriso por aí.
— Isso é bom — Zaya balançou a cabeça enquanto sorria, contente. Mudando de posição e sentando sobre as pernas, ela se inclinou em minha direção como se fosse contar um segredo, baixando o tom: — Eu não quero ser indiscreta, mas fiquei curiosa. O que foi que aconteceu entre você e a sua mãe para você ter vindo ficar com a gente?
— Zaya — a voz de Zaden vindo de algum ponto atrás de mim preencheu meus ouvidos. — Se não quer ser indiscreta, então não seja. É fácil. É simples. É educado.
— Meu Deus, você é tão chato — ela disse, revirando os olhos antes de se levantar de sua poltrona com um salto. — Eu só fiz uma pergunta. Agora você fez com que eu ficasse sem graça.
— Ótimo. Se existe constrangimento, então ainda há alguma consciência a ser resgatada aí dentro. Fique feliz. Isso significa que podemos ter esperanças! — Zaden respondeu, enquanto ela se retirava da sala apressadamente. Virando para mim, ele perguntou: — Você não quer ir para o quarto? Já está tarde e você ainda nem desfez as malas. Deve estar cansada.
Eu assinto com a cabeça, me levantando do meu assento estofado enquanto escondo um bocejo com as costas da mão. Estou mesmo cansada.
— Boa noite, senhora LB. Obrigada mais uma vez por me receber — agradeci, me despedindo dela antes de ir em direção às escadas.
— Boa noite, querida. E não agradeça; você é de casa — ela disse, acenando para mim antes de se inclinar para pescar um dos cookies que Zoe havia deixado na mesinha de centro. Coitada. Seria mais uma vítima dos dotes culinários catastróficos da filha.
Já no andar de cima, dentro do quarto de hóspedes onde eu dormiria, eu me sentei na beirada da cama, sentindo a textura do edredom em tons pastéis de azul. Era macio e parecia bem quente, do jeito que eu gostava. O cômodo era uma suíte com janelas para o jardim lateral da casa e tinha um tamanho considerável, mas nada que chegasse perto do espaço que eu tinha no meu próprio quarto. Era estranho, para dizer o mínimo, passar a noite em outro lugar que não fosse ele.
— Perdoa a minha irmã pela inconveniência agora pouco. Ela é completamente sem filtro às vezes — Zaden disse, sentando ao meu lado. Agora que tinha tomado banho, ele estava usando uma calça de moletom preta com uma regata branca, a correntinha prateada em seu pescoço desaparecendo sob o tecido. Sua pele cheirava a sabonete: almiscarada, refrescante e convidativa.
— Não foi nada demais. É normal que ela esteja curiosa. Eu teria contado se você não tivesse interrompido — respirei fundo, me permitindo deitar na cama para aliviar um pouco da tensão em meus ombros. — Minha mãe ficou brava por causa do meu atraso. Falou que descobriu sobre a minha suspensão da equipe de dança e disse que aquele era um sinal para que eu parasse de sonhar e desistisse de vez da carreira como bailarina. Disse que eu teria um futuro melhor se escolhesse estudar moda e seguisse os passos dela na empresa. No instante em que eu disse que não faria isso, ela simplesmente surtou e me expulsou de casa. Não tem muito mais o que contar — concluí, encarando o teto do quarto.
Sinto o colchão ceder levemente debaixo do meu corpo quando Zaden também se deita, sua cabeça a poucos centímetros de distância da minha, nossos cotovelos e coxas se tocando de raspão.
— Eu sinto muito, Alison. Você não merecia estar passando por isso — ele sussurra, seus dedos buscando os meus cegamente e ainda assim encontrando o caminho até eles sem dificuldade. — Eu não entendo porque existe esse pensamento de sermos condicionados a fazer as mesmas coisas que os nossos pais. Somos indivíduos com vontades e aptidões independentes das deles. E você é tão talentosa, Alis. Você... Eu não consigo nem descrever. Você nasceu para isso. É tão nítido para mim. Quando eu te vejo dançando, parece que você... que você brilha. Que você voa, tão alto que nem mesmo a gravidade conseguiria te puxar de volta para o chão.
Fecho os olhos, tentando conter a ardência dentro deles. Eu sou tão grata por você me enxergar. Por você saber quem eu sou por dentro. Por ficar do meu lado e me dar forças quando o mundo parece não querer que eu me mantenha de pé. Por não desistir de mim quando eu sinceramente teria desistido.
Deslizo para mais perto de Zaden, envolvendo seu pescoço e cintura em um abraço, uma das minhas pernas se encaixando entre as dele. Acaricio seus cabelos, sentindo a maciez daqueles fios dourados que parecem estar sempre prestes a cair sobre seus olhos. Respiro seu cheiro, toco sua pele, absorvo seu calor. Fico em silêncio por um tempo, só ali; existindo ao lado dele em uma realidade onde só nós dois importamos. Onde eu sou inevitavelmente dele e ele inevitavelmente meu.
— Eu não sinto muito — sussurro contra o seu ouvido. — Não consigo sentir muito quando estou aqui com você.
Os lábios de Zaden encontram os meus no escuro. E por hoje, deixo minhas preocupações de lado.
Mas o amanhã chega. E com ele, minha obsessão em me tornar a melhor bailarina que o mundo já viu.
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